Accueil
Encyclopédie internationale
des histoires de l’anthropologie

Antropologia afrorreligiosa na encruzilhada: por outras histórias da disciplina no Brasil

Mariana Ramos de Morais

PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

2025
Pour citer cet article

Morais, Mariana Ramos de, 2025. “Antropologia afrorreligiosa na encruzilhada: por outras histórias da disciplina no Brasil”, in Bérose - Encyclopédie internationale des histoires de l'anthropologie, Paris.

URL Bérose : article3890.html

Télécharger en pdf

Publié dans le cadre de HITAL - Histoire transatlantique des Anthropologies d’Amérique Latine / International Research Network - INSHS (CNRS), dirigé par Christine Laurière ; Équipe du Departamento de Antropologia/Museu Nacional/UFRJ, LACED, sous la direction d’Antonio Carlos de Souza Lima.
Publié dans le cadre du thème de recherche «Histoire des anthropologies au Brésil», dirigé par Stefania Capone (CNRS) et Fernanda Arêas Peixoto (Universidade de São Paulo)

Résumé :
Cet article aborde les relations entre les pratiques afro-religieuses et anthropologiques, prisme à travers lequel sont retracées à nouveaux frais les histoires de l’anthropologie des religions afro-brésiliennes. Le rappel historique débute avec les études inaugurales du début du XXe siècle et se poursuit jusqu’aux premières décennies du XXIe siècle, en observant les changements à l’œuvre dans ce domaine, en particulier en ce qui a trait à l’implication des chercheurs dans les pratiques religieuses qu’ils étudient. L’attention se porte sur les procédures théoriques et méthodologiques adoptées par plusieurs auteurs de différentes traditions dans la mesure où ce domaine de l’anthropologie rassemble des chercheurs brésiliens et étrangers formés au Brésil et ailleurs, et incluant également des personnes « afro-religieuses ».
Le propos de l’article est développé en deux temps. On revient d’abord sur la constitution de l’anthropologie des religions afro-brésiliennes en discipline, en soulignant l’implication des chercheurs avec les groupes étudiés, en particulier les praticiens du candomblé. On évoque ensuite les auteurs dont l’importance est actuellement soulignée au sein d’une anthropologie qui revendique de plus en plus la présence d’auteurs noirs dans son histoire et sa pratique. Dans ce mouvement de relecture des histoires de l’anthropologie des religions afro-brésiliennes, sont mis en avant des protagonistes « afro-religieux » qui ont agi comme des chercheurs de leurs propres pratiques (et d’autres) et qui sont devenus anthropologues.

Boa noite, moça ; boa noite moço...
Aqui na Terra é o nosso templo de fé,
“Fala, Majeté !”
Faísca da cabaça de Igbá
Na gira... Bombogira, Aluvaiá !
Num mar de dendê... Caboclo, andarilho, mensageiro
Das mãos que riscam pemba no terreiro
Renasce Palmares, Zumbi Agbá !
Exu ! O Ifá nas entrelinhas dos odus
Preceitos, fundamentos, Olobé
Prepara o padê pro meu axé
Exu Caveira, Sete Saias, Catacumba
É no toque da macumba, saravá, alafiá !
Seu Zé, malandro da encruzilhada
Padilha da saia rodada... Ê mojubá ! [1]

Abre caminho : introdução

Essa epígrafe é uma saudação a Exu : aquele que abre os caminhos e tem a encruzilhada como morada [2]. A encruzilhada é seu domínio ritual e simbólico ; lócus que potencializa e materializa forças ; lugar de encontros, de atravessamentos, que podem evidenciar assimetrias, mas também momentos de criação. Recorro a ela neste texto para pensar sobre o encruzamento do universo afrorreligioso – que é fundado no chão dos terreiros e extrapola suas cercanias – com a antropologia – instituída e disciplinada academicamente, sendo alicerçada pela experiência de campo [3]. Faço uso da encruzilhada, dessa forma, como um operador conceitual, tal como proposto por Leda Maria Martins (1997, 2023), uma vez que ela nos oferece “a possibilidade de interpretação dos trânsitos sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e dialogam, nem sempre amistosamente, registros, concepções e sistemas simbólicos diferenciados e diversos” (MARTINS, 1997, p. 28). A encruzilhada permite-me, assim, abordar interseções entre as práticas afrorreligiosas e antropológicas, a partir das quais busco contar – e também recontar – histórias de uma área específica da antropologia feita no Brasil : a da antropologia das religiões afro-brasileiras.

Proponho, desse modo, miradas à antropologia das religiões afro-brasileiras desde seus estudos inaugurais, na viragem do século XIX para o século XX, até as primeiras décadas deste século XXI. Um longo período a percorrer em páginas diminutas, exigindo-me, portanto, miradas breves. Nessas miradas, serão apontadas as variadas formas de envolvimento dos pesquisadores com as religiões afro-brasileiras, especialmente com o candomblé. Com isso, busco destacar os procedimentos teórico-metodológicos adotados, advindos de diferentes tradições. Nota-se que essa área da antropologia congrega pessoas de nacionalidade brasileira ou estrangeira, com formação no Brasil e alhures, e inclui afrorreligiosos.


Durante o longo período abordado neste artigo, a própria antropologia mudou muito. Se o seu método clássico de pesquisa – a observação participante – continua a impulsionar a experiência de campo, novas questões éticas incidiram nessa mudança. Entre o final do século XIX e o início do século XX, momento inaugural do campo afrorreligioso, por exemplo, a iniciação para fins de pesquisa não estava em questão como hoje. A relação que o pesquisador estabelecia com o grupo pesquisado nem sempre era informada ou apresentada como uma questão metodológica, tampouco ética.

Especialmente a partir dos anos 2000, observa-se uma investida de praticantes dessas religiões na antropologia. Nessa nova posição, enquanto antropólogos portanto, esses praticantes passam a registrar sua própria cultura. Longe de se limitar aos estudos sobre as religiões afro-brasileiras, esse movimento pode ser observado também no mundo contemporâneo pós-colonial, com base na emancipação de povos originários. Depois de um longo período de submissão forçada, diferentes povos passam a se encarregar da produção etnográfica sobre eles mesmos e mobilizá-la enquanto capital simbólico (RAMOS, 2007, p. 21).

Dois movimentos são propostos neste artigo. Primeiramente, apresenta-se uma revisão da conformação da antropologia das religiões afro-brasileiras, seguindo o percurso que a literatura sobre os estudos afrorreligiosos tem traçado (PRANDI, 2007 ; SILVA, 2002), com atenção ao envolvimento dos pesquisadores com os grupos estudados. Em seguida, essa revisão é retomada recuperando autores que têm sido destacados por uma antropologia que reivindica, de forma crescente, a presença de autores negros na sua história e na sua prática [4]. Essas vozes são de intelectuais nem sempre reconhecidos como cânones científicos. Nesse movimento de recontar histórias da antropologia das religiões afro-brasileiras, afrorreligiosos que atuam como pesquisadores de suas próprias práticas e outros que se tornam antropólogos ganham destaque. Antes de dar sequência ao texto, um lembrete : como dito acima, são apenas miradas à antropologia das religiões afro-brasileiras. Lacunas haverá, portanto. Que elas impulsionem outras leituras.

Corre gira : iniciação como método de pesquisa ?

Os trabalhos de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) são comumente apontados como inaugurais dos estudos sobre as religiões afro-brasileiras. Nascido no Maranhão, estado do Nordeste do país, teve formação em medicina, tornando-se professor da Faculdade de Medicina da Bahia (outro estado do Nordeste). Foi também escritor, pesquisador das áreas de saúde pública e medicina legal e etnógrafo. Ele se aproximou, no fim do século XIX, do candomblé praticado em Salvador, capital da Bahia, para buscar entender a influência da presença de africanos e seus descendentes na formação da nação brasileira.

Envolto de premissas racistas, condizentes com os paradigmas de sua época, Nina Rodrigues elaborou aquela tida como uma “etnografia detalhada e verossímil da religião afro-brasileira” (FRY ; MAGGIE, 2006), em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos (RODRIGUES, 2006 [1896-1897]), publicado primeiramente em capítulos nos anos de 1896 e de 1897 [5]. Parte de seus dados etnográficos foram produzidos a partir da sua experiência no terreiro do Gantois, na capital baiana, onde ele foi consagrado ogã. O principal fundador dos estudos religiosos afro-brasileiros tinha, portanto, um envolvimento com a prática religiosa que pesquisava.

Ogã pode ser descrito como um título concedido a homens influentes que se relacionam com os candomblés e que são considerados protetores do terreiro ao qual estão vinculados. Além disso, também é um cargo ritual com diferentes especificidades, a depender da vontade das divindades e da designação das sacerdotisas e dos sacerdotes. Esse cargo/título é exclusivo aos homens que não entram em transe. Ser escolhido como ogã é um sinal de distinção. E escolher um pesquisador para ocupar esse lugar tem sido uma das estratégias de sacerdotes e sacerdotisas para criar alianças com o intuito de garantir a proteção do terreiro e mesmo de demonstrar poder religioso e político entre seus pares (BRAGA, 1999 ; CAPONE, [1999] 2004).

Trata-se, como dito, de uma posição especificamente masculina que tem semelhança com uma posição feminina, a de equede : ambas são ocupadas por adeptos que não passam pelo processo de possessão pelas divindades. Um ogã ou uma equede serão sempre um ogã ou uma equede, independentemente do tempo de iniciação. Já com os iniciados que passam pelo processo de possessão pode haver uma mudança no posto que ocupam conforme a hierarquia do culto. Independentemente do gênero, esses são denominados iaôs. Antes de concluir as etapas do seu processo iniciático, a/o iaô fica sujeito aos ogãs e às equedes, às/aos iaôs iniciadas/os antes dela/e e, claro, à/ao chefe do terreiro ao qual está vinculado [6].

Em seus escritos, Nina Rodrigues defendia as religiões afro-brasileiras contra as violentas investidas policiais. À época, o candomblé, o tambor de mina, o xangô e outras práticas afrorreligiosas não eram reconhecidas como religião e, sim, tachadas de feitiçaria, de magia, de curandeirismo, considerados crimes conforme as normas de então, como o Código Penal de 1890, que servia de amparo legal para as perseguições aos terreiros. Nina Rodrigues assinalava, contudo, que a Constituição Federal de 1891 – a primeira do período republicano – garantia a liberdade de consciência e de culto. Além disso, ele criticava a abusiva violação dos templos pela polícia.

Nina Rodrigues realizou suas pesquisas sobre o candomblé em um momento no Brasil marcado por embates políticos, incluindo conflitos armados, que haviam incidido na abolição da escravidão (ao menos na letra), em 1888 e, no ano seguinte, em 1889, na proclamação da República. As últimas décadas do século XIX foram de mudanças também na relação do Estado com a Igreja Católica. A Constituição de 1891 indicava não haver mais uma religião oficial no Brasil, como fora o catolicismo. Esse foi um reflexo do processo de secularização observado na sociedade de forma mais ampla, que impactava a cena acadêmica, com a valorização de um dado saber científico em detrimento de argumentos de base religiosa [7].

O interesse em produzir ciência teria, dessa forma, motivado a entrada de Nina Rodrigues no mundo dos candomblés, tendo sido incorporado à membresia de um deles. O estudo sobre a religião dos “negros baianos” era uma via para que ele buscasse entender as diferenças entre as “raças” que compunham a nação que se intentava erigir no final do século XIX. A presença de um forte contingente populacional de negros, indígenas e mestiços era, aos olhos da elite intelectual branca que patrocinava o projeto político da nascente República, um empecilho ao desenvolvimento do Brasil. E, para propor uma “solução” ao “problema”, diferentes teses estavam em disputa à época. Nina Rodrigues era pessimista quanto ao futuro do país, pois, sendo a mestiçagem inescapável, o povo brasileiro estava fadado à degeneração, como defendeu em As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, publicado em 1894.

É notória a imagem paradoxal associada a Nina Rodrigues. Embora tenha pioneirismo reconhecido ao tratar de temas “raciais”, sobretudo nos estudos sobre as religiões afro-brasileiras, ele também é tido como um “autor maldito”, por defender as diferenças ontológicas existentes entre as diversas “raças” no Brasil, apontando a mestiçagem como sinal de degenerescência (SCHWARCZ, 2006, p. 47). Ou, como destacado por Mariza Corrêa (2006, p. 62), ao se referir ao livro O Animismo fetichista dos Negros Baianos :

Acho que ele [o mencionado livro] é importante também por mostrar as ambigüidades de um pesquisador que, ao mesmo tempo que adere ao ‘racismo científico’ de sua época, tem uma enorme empatia pelos sujeitos pesquisados, empatia que, aliás, aparece também em Os africanos no Brasil. Breves vinhetas ao longo desse livro, mostram o antropólogo inscrito no médico que se queria um observador objetivo da cena religiosa dos negros, mas que ficava quatro horas no frio da madrugada, esperando que baixasse o santo em Olímpia, ou que observava os lindos efeitos coloridos de uma pedra ritual mergulhada numa mistura de cera.

No trecho acima, Mariza Corrêa cita a “empatia” de Nina Rodrigues pelos “sujeitos pesquisados” e, para exemplificar sua afirmativa, menciona breves cenas de Os africanos no Brasil, seu livro póstumo em que também são apresentados seus dados etnográficos. As cenas descritas informam do acesso que o “médico-antropólogo” tinha aos candomblés, que têm seus festejos públicos, mas restringem a maior parte de suas atividades aos iniciados. Nina Rodrigues se enveredou pelos terreiros soteropolitanos quando a antropologia nem mesmo era institucionalizada no Brasil. Certo que já circulavam por aqui textos de autores que foram basilares para a constituição das ciências sociais, de forma mais geral, tendo sido o próprio Nina Rodrigues leitor de um dos pais fundadores da antropologia de matriz britânica, Edward Burnett Tylor (1832-1917).

Nina Rodrigues não foi, contudo, o único a se envolver com a religião que estudou. Na década de 1930, também no Gantois, Arthur Ramos (1903-1949) – que fazia parte do grupo de profissionais da medicina que se afirmavam integrantes da “Escola Nina Rodrigues”, por vezes referenciada como “Escola Baiana” –, foi suspenso para ogã [8]. Como seu “mestre”, ele seguiu da medicina para a antropologia investindo no estudo sobre o negro, acrescentando nessa trajetória o aporte da psicanálise. Estudioso e atento às mudanças de paradigma decorrentes das críticas ao evolucionismo, Ramos recuperou trabalhos deixados por Nina Rodrigues, buscando atualizá-los com um arcabouço conceitual que passou a ser difundido no início do século XX. Assim, relativizou o determinismo biológico de Nina Rodrigues, apontando a potencialidade de seu material para se pensar as “sobrevivências” africanas no Brasil.

Ao descrever o cerimonial em que recebeu a distinção, Ramos afirmou “(...) para fins de pesquisa científica, nos submetemos, eu e meu prezado amigo, o Dr. Hosannah de Oliveira, docente da Faculdade de Medicina da Bahia, às cerimônias de iniciação de ogãs, no terreiro do Gantois” (RAMOS, [1934] 2001, p. 62). O fato de ele explicitar seu envolvimento com a religião que estudava merece atenção. Observo que a informação constava de uma publicação acadêmica. Ramos estava, dessa forma, se dirigindo aos seus pares. Relatar sua experiência nesse contexto poderia chancelar as informações que apresentava, dando-lhe autoridade para abordar o tema. A justificativa dada para tal envolvimento, “para fins de pesquisa científica”, indicava tratar-se de um procedimento metodológico. Estava, assim, dando cientificidade à sua experiência ritual.

Ramos desempenhou um papel importante no estabelecimento da antropologia como disciplina no Brasil. Formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, ele teve atuação em sua área de origem, ampliando também para outros campos como a psiquiatria e a educação, antes de assumir, em 1946, a cátedra de antropologia na então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1949, dirigiu o Departamento de Ciências Sociais da Unesco, em Paris, onde faleceu naquele mesmo ano. Ele estabeleceu uma interlocução com pesquisadores estrangeiros, com reconhecimento nos estudos das relações raciais e também na formação do campo afro-americano (CAPONE, 1999 ; 2024).

Aliás, durante as primeiras décadas do século XX, o Brasil foi destino de muitos pesquisadores estrangeiros. Até a década de 1940, a maioria dos estudos sobre o Brasil eram produzidos por pesquisadores, viajantes e cronistas vindos de outros países (CARDOSO DE OLIVIERA, 1999, p 21). Alguns desses pesquisadores tiveram especial atenção às religiões afro-brasileiras, como o americano Donald Pierson (1900-1995). Ele desenvolveu sua pesquisa de doutorado sobre as relações raciais na Bahia e, para esse fim, esteve em Salvador de 1935 a 1937. Pierson também se tornou ogã de um terreiro de Salvador, o Ilê Ogunjá. Em 1939, ele voltou ao Brasil para servir como professor catedrático de sociologia e antropologia social na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, fundada em 1933 (CORREA, 2013, p. 206) [9].

São Paulo também acolheu um outro estrangeiro, que se enveredou pelos estudos sobre relações raciais, tendo se dedicado de forma detida às religiões afro-brasileiras. Vindo da França, Roger Bastide (1898-1974) chegou ao Brasil em 1938 para assumir, na recém-criada Universidade de São Paulo, a cadeira de sociologia, anteriormente ocupada por Claude Lévi-Strauss. Para compreender o mundo dos candomblés – foco de sua tese –, ele se valeu dos aportes da antropologia para propor sua própria abordagem metodológica, uma abordagem “de dentro”. E defendeu esse posicionamento em diferentes momentos de sua trajetória acadêmica.

Ao apresentar um conjunto de estudos representativos do que considerava as diferentes etapas de sua jornada espiritual como pesquisador em busca do conhecimento do mundo dos candomblés, Bastide reiterava esse posicionamento, defendendo, inclusive, a iniciação como método :

Certamente todos os homens são idênticos, porém o pensamento puro não existe, pois no seu funcionamento ele sempre se colore segundo as exigências das diferentes culturas no interior das quais se desenvolve. Compenetrei-me portanto que deveria, no momento de entrar no Templo, deixar-me penetrar por uma cultura diversa da minha. A pesquisa científica exigia de mim a passagem preliminar pelo ritual da iniciação. (BASTIDE, 1973, p. XI)

A cerimônia que ele considerou como um “ritual de iniciação” foi a “lavagem de contas”, tendo dedicado um breve estudo sobre a experiência, ocorrida em 1951, no terreio Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador (BASTIDE, 1973). As contas são colares rituais que podem proteger quem os usa, desde que primeiro sejam preparados e consagrados a uma das divindades do candomblé em uma cerimônia, como a “lavagem de contas”. Além da função protetora, a conta indica uma afiliação religiosa. No entanto, como aponta Stefania Capone ([1999] 2004), o fato de passar por essa cerimônia não faz com que quem porte o colar seja reconhecido como um iniciado pelos demais membros do terreiro e sim como um futuro noviço ou um candidato à iniciação.

O próprio Bastide apresentava uma ponderação sobre essa cerimônia, entendida por ele como um primeiro grau de iniciação ao candomblé (BASTIDE, 1973, p. 373). Apesar disso, após ter tido suas contas consagradas, ele passou a se identificar completamente com a religião que estudou, chegando a afirmar Africanus sum na introdução de As religiões africanas no Brasil (BASTIDE, 1995). Numa perspectiva contemporânea, tal afirmação por parte de um pesquisador branco e europeu pode parecer ingênua ou ser mesmo criticável. Contudo, para além da evocação de uma proximidade afetiva, esse testemunho pode ser lido como uma forma de nos mostrar que a experiência de iniciação foi um esforço para Bastide “nascer novamente” numa sociedade diferente da sua, como observa Maria Isaura Pereira de Queiroz (1983).

Ter passado pela cerimônia da “lavagem de contas” no Ilê Axé Opô Afonjá teria ajudado Bastide a ser aceito em um grupo de culto a Xangô, na África. Xangô é uma divindade iorubá, considerada no Brasil o deus da justiça, muito reverenciado no terreiro onde Bastide teve suas contas consagradas justamente a essa divindade. Ele conta que durante sua viagem ao Benim e à Nigéria com seu amigo Pierre Verger (1902-1996), em 1958, sua filiação religiosa foi reconhecida por sacerdotes africanos, pois portava suas contas recebidas no Brasil. Na ocasião, foi acolhido na sociedade Xangô, em Ifanyin, onde recebeu o nome de Aroxelo Malogbo (MORIN, 2017, p. 464).

Talvez, o caso mais conhecido no Brasil de um pesquisador estrangeiro que se envolveu com as práticas afrorreligiosas tenha sido o de Pierre Verger, que incorporou, inclusive, seu nome iniciático ao seu nome de família, passando a assinar Pierre Fatumbi Verger. Francês, como seu amigo Bastide, ele chegou ao Brasil em 1946. E foi o próprio Bastide que sugeriu que ele fosse à Bahia conhecer os candomblés. Sem uma formação acadêmica formal, Verger investiu inicialmente no campo afrorreligioso enquanto fotógrafo e, aos poucos, tornou-se um etnógrafo, tendo posteriormente entrado para os quadros do Centre Nacional de la Recherche Scientifique (CNRS), na França. Paralelamente, ele passou por experiências afrorreligiosas no Brasil e na África : foi ogã do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e se iniciou em Ketu no culto de Ifá, um dos oráculos iorubás. Essa dupla afiliação permitiu-lhe acessar certos rituais e conhecimentos do candomblé no Brasil e do culto de Ifá, especialmente no Benim e na Nigéria [10].

Parte das viagens de Verger ao continente africano tiveram financiamento do Institut Français d’Afrique Noire, demonstrando o interesse do governo francês. De 1948, em sua primeira viagem à África, a 1958, quando retornou com Bastide, foram-lhe concedidas quatro bolsas (SOUTY, 2007). Já Bastide, que tinha assumido uma cadeira na Sorbonne, também foi à África naquele 1958 integrando uma missão do referido instituto, com o objetivo de encontrar raízes das religiões afro-brasileiras. Assim, a busca do Brasil na África que os dois empreenderam juntos nessa viagem respondia também a interesses do governo francês, que mantinha colônias naquele continente. Naquela época, não era apenas o governo francês que tinha interesses políticos e econômicos na África. O governo brasileiro já ensaiava uma aproximação diplomática com alguns países africanos, que culminou na adoção de medidas estratégicas na política externa, reverberando nas décadas de 1960 e 1970 (CAPONE, [1999] 2004 ; SANTOS, 2005).

Em 1959, Verger retornou à África juntamente com Vivaldo da Costa Lima (1925-2010), vinculado ao recém-criado Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Costa Lima teve como formação primeira a odontologia. Foi se enveredando pelo estudo do candomblé, guiado pela antropologia, disciplina que passou a lecionar na UFBA, onde fez carreira e foi condecorado professor emérito. No terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, ele recebeu o título honorífico de Obá de Xangô, tal como Verger. De início, sua experiência afrorreligiosa não foi, portanto, motivada pelo interesse de pesquisa, como conta o próprio Vivaldo da Costa Lima ao rever sua trajetória acadêmica :

À medida que eu fui adquirindo um conhecimento por informação, pela vivência, pela pesquisa, por aquilo que muitos anos depois um antropólogo norte-americano, chamado Clifford Geertz, denominou de “descrição densa”, isto é, não apenas a descrição superficial ou dos fatos evidentes de uma etnografia de campo, mas a parte, a vivência, a participação, aquilo que alguns antropólogos americanos chamam de observação participante, que não é exatamente isto, porque eu não participava para observar, eu observava participando, e há uma certa diferença metodológica nisso. Eu não fui para o Candomblé para estudar Candomblé, eu já ia ao Candomblé antes. Porque eu ia ao Candomblé, é que eu pude fazer essas pesquisas e, mais tarde, sistematizar essas pesquisas. (FARIAS, RODRIGUES, 2009, p. 271-272)

A antropóloga argentina Juana Elbein dos Santos também já tinha uma experiência com o candomblé antes de desenvolver a pesquisa que lhe rendeu, em 1972, o título de doutora em etnologia na Sorbonne, sob a direção de Roger Bastide. Sua relação foi estabelecida com o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, que conheceu em 1964. Na esteira da abordagem de seu orientador, ela propôs uma pesquisa numa perspectiva “desde dentro”. Segundo ela, o candomblé é uma experiência iniciática, a partir da qual o conhecimento é apreendido por meio de uma vivência no nível do indivíduo e do grupo ([1972] 2012). A antropóloga defende a iniciação como prática metodológica [11] :

Estar ‘iniciado’, aprender os elementos e os valores de uma cultura ‘desde dentro’ mediante uma inter-relação dinâmica no seio do grupo, e ao mesmo tempo poder abstrair dessa realidade empírica os mecanismos do conjunto e seus significados dinâmicos, suas relações simbólicas, numa abstração consciente ‘desde fora’, eis uma aspiração ambiciosa e pouco provável. Em todo caso o presente estudo pretende ver e elaborar ‘desde dentro para fora’”. (SANTOS, [1972] 2012, p. 17) [12].

Embora iniciada no candomblé, Juana Elbein dos Santos declarou não se considerar religiosa (SILVA, 2000, p. 102), evidenciando assim a ambiguidade da relação entre o pesquisador e a religião que estuda [13]. Ela teve, porém, um papel importante no movimento de reafricanização do candomblé, particularmente de tradição iorubá. Esse movimento desenvolveu-se especialmente a partir da década de 1980, contando ainda com a participação de lideranças de terreiro, artistas, políticos, intelectuais do Brasil e de outros países da diáspora negra em acordo com os países africanos, particularmente Nigéria e Benim. Seu livro Os nagôs e a morte ([1975] 2012), resultado de sua tese, tornou-se uma espécie de best-seller no mundo afrorreligioso, sendo usado em muitos terreiros como fonte de consulta.

Bastide apoiou também o trabalho de Gisèle Cossard (1923-2013), antropóloga/socióloga francesa, nascida no Marrocos, que se tornou Omindarewá após sua iniciação no candomblé nos anos 1960, no estado do Rio de Janeiro, sudeste do Brasil. Omindarewá é o nome iniciático que Gisèle Cossard recebeu de seu pai de santo, Joãozinho da Goméia (1914-1971), então muito famoso no Brasil. Praticante do candomblé de tradição angola, Joãozinho da Goméia abriu seu terreiro primeiramente em Salvador e depois se mudou para uma cidade na periferia do Rio de Janeiro. Sob a direção de Bastide, Cossard defendeu sua tese de doutorado em sociologia na Sorbonne, em 1970, sobre candomblé angola. Foi uma das primeiras pesquisas sobre esta modalidade de culto, ainda negligenciada nos estudos das religiões afro-brasileiras. Porém, Omindarewá não seguiu carreira acadêmica. Ela dedicou sua vida aos cultos às divindades africanas, tendo aberto seu próprio terreiro, em 1975.

Estas breves miradas à antropologia das religiões afro-brasileiras privilegiaram até aqui pesquisadores que adotaram a iniciação no candomblé como método de pesquisa e/ou que já mantinham uma relação com terreiros que pesquisaram. Esse posicionamento, porém, não foi unânime. A iniciação no candomblé também implica subordinação às sacerdotisas e aos sacerdotes, bem como às regras religiosas, que impedem o iniciado de tornar públicas certas experiências e conhecimentos adquiridos no processo iniciático e durante a prática da religião. Um dos antropólogos que demonstrou ser contrário à iniciação como método foi René Ribeiro (1914-1990), para quem essas limitações podem causar prejuízo à “objetividade” da pesquisa científica, valor a seus olhos necessário para a produção do conhecimento acadêmico (SILVA, 2000).

Esse posicionamento de René Ribeiro, entretanto, não ecoou de forma contundente na geração seguinte de pesquisadores das religiões afro-brasileiras. Pelo contrário. Como afirmou Vagner Gonçalves da Silva,

Depois de Roger Bastide e Pierre Verger, as fronteiras entre observação e “comunhão” revelaram-se muito tênues, e “tornar-se nativo” virou uma palavra de ordem para várias gerações de antropólogos que pesquisaram o candomblé e as religiões afro-brasileiras em geral, a partir dos anos 70, quando, inclusive, essas religiões já desfrutavam de uma aceitação social muito maior com a divulgação de seus valores nos meios artísticos e intelectuais” (SILVA, 2000, p. 99-100) [14].

Cito, como exemplo, dois antropólogos que constituíram seus próprios terreiros, ou seja, tornaram-se sacerdotes e tiveram como foco de suas pesquisas fundamentos das religiões afro-brasileiras, notadamente do candomblé. Com doutorado em antropologia pela Universidade de São Paulo (obtido em 1983), José Flávio Pessoa de Barros (1943-2011) teve carreira acadêmica no Rio de Janeiro, atuando em instituições como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Universidade Cândido Mendes. Ele era babalorixá e especialmente seus trabalhos sobre a botânica afrorreligiosa são referência no campo. Outro antropólogo destacado aqui é Júlio Braga. Com formação inicial em filosofia, foi orientado no mestrado por Vivaldo da Costa Lima, tendo também realizado pesquisa na África, para onde foi pela primeira vez em 1967 pelo CEAO/UFBA. Em 1977, recebeu o título de doutor em antropologia pela Universidade Nacional do Zaire, com uma pesquisa sobre um dos oráculos do candomblé, o jogo de búzios. Sua carreira como docente foi desenvolvida na Bahia, na UFBA e também na Universidade Estadual de Feira de Santana. Paralelamente à sua carreira acadêmica, ele passou pelos processos iniciáticos no candomblé, tornando-se um babalorixá.

O contexto em que esses últimos antropólogos desenvolveram suas pesquisas era muito distinto de quando Nina Rodrigues inaugurou os estudos afrorreligiosos. Houve mudança não apenas na forma como as religiões afro-brasileiras passaram a ser aceitas na sociedade brasileira como também na própria antropologia feita no Brasil. A disciplina, que nos tempos de Nina Rodrigues voltava-se para o estudo do “exótico” e era adjetivada física, biológica ou criminal, passara a social e a cultural, sendo lecionada nos quadros universitários a partir dos anos 1930. Seus praticantes se organizavam institucionalmente, tendo criado a Associação Brasileira de Antropologia, em 1955. E, na década de 1960, começavam a surgir os primeiros cursos de pós-graduação em antropologia. A mudança, ou melhor, as mudanças eram observadas também nas relações estabelecidas entre pesquisadores e pesquisados, quando o interesse pela “diferença” passou a motivar a ida das antropólogas e dos antropólogos ao campo (PEIRANO, 1999). Era, entretanto, uma área ainda com predominância de homens brancos, que carregava a herança do encruzamento dos estudos antropológicos com os estudos africanistas [15]. Uma herança que fez de Salvador, considerada à época a Roma Negra, o principal destino, até então, daqueles que se interessavam em estudar o candomblé. A partir dos anos 1960, porém, o candomblé passou por uma expansão no território nacional, angariando novos adeptos por todo o país, como ocorria também com a umbanda.

Naquele momento, as religiões afro-brasileiras já não se restringiam a um grupo étnico-racial, sendo abertas a todos, ou seja, se tornaram universais (PRANDI, 1991). Mesmo assim, eram tomadas como repositórios das tradições africanas pelo movimento negro que reorganizava sua luta contra o racismo na década de 1970. Como parte do movimento de reafricanização, que ganhou força a partir dos anos 1980, os afrorreligiosos, por seu turno, reafirmavam seus vínculos históricos e rituais com a África para fazer frente à folclorização de suas práticas (CAPONE, [1999] 2004). Essas dinâmicas contribuíram para que uma outra história da antropologia das religiões afro-brasileiras pudesse ser contada, enaltecendo-se a participação de intelectuais negros e concedendo autoridade aos próprios afrorreligiosos.

Na encruza : antropologia afro-brasileira revisitada

Em 1935, a etnografia de Raimundo Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos, antes publicada em capítulos no Brasil, ganhou uma edição organizada por Arthur Ramos. Ele dirigia à época a coleção Biblioteca de Divulgação Científica, na Companhia Editora Nacional (posteriormente, Civilização Brasileira), que lançou a nova edição [16]. Na introdução da obra de seu “mestre”, Ramos informava aos leitores :

A Biblioteca de Divulgação Cientifica sente-se especialmente honrada em incluir, na sua coleção, este volume do grande mestre baiano. Na realidade, foi este o primeiro estudo cientifico, realizado no Brasil, sobre o fetichismo negro, e sobre ele se fechou um largo período de silenciosa incompreensão. Pode-se dizer que depois de Nina Rodrigues quase nada mais se escreveu sobre a questão da raça negra no Brasil e especialmente dos seus sentimentos religiosos. Agora, que novamente surge em foco a questão, onde especialistas na sociologia, na lingüística, na etnografia, na antropologia, se reúnem para discutir teses, erguer equações, armar em fim [sic] o problema negro sob prismas novos e dentro do clima da época, será justa esta reivindicação do nome do grande professor baiano, o iniciador de tais estudos, no Brasil. (RAMOS, [1935]

Nessa coleção, outros volumes também foram dedicados ao debate racial. Um deles, publicado em 1938, foi Costumes africanos no Brasil, de Manuel Querino (1851-1923). Querino realizou seus estudos sobre os “costumes africanos” na década seguinte à morte de Nina Rodrigues. Os “costumes” elencados por Querino incluíam práticas afrorreligiosas. Nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, ele foi abolicionista, escritor, jornalista, professor de desenho, pintor, um dos fundadores da Academia e da Escola de Belas Artes da Bahia. Seu trabalho já circulava desde o início do século XX entre os interessados na temática racial, haja vista a publicação de seu livro em uma coleção que se tornou uma referência acadêmica. No entanto, as menções aos seus trabalhos sobre a população negra no Brasil eram, muitas vezes, acompanhadas de comentários que diminuíam sua importância frente a outros trabalhos considerados “científicos”.

O próprio diretor da coleção, Arthur Ramos, ao prefaciar o livro, afirmou : “Sem o rigor methodologico e a erudição científica de Nina Rodrigues, foi, contudo, Manuel Querino um pesquisador honesto, um trabalhador incansável, impulsionado por aquele interesse insuspeito que provinha das suas próprias origens africanas” (RAMOS, 1938, p. 5). E, em outra passagem do prefácio, reiterava esse posicionamento, ao mesmo tempo em que justificava a publicação daquele número que reunia alguns estudos de Querino :

A memória sobre ‘A raça africana e seus costumes na Bahia’, apresentada ao 5º Congresso Brasileiro de Geografia, é ‘um dos mais consideráveis que temos sobre a raça africana no Brasil’, como o julgou João Ribeiro. E com razão. Porque, apezar das falhas, e algumas de certa gravidade, que tiram a esse trabalho o cunho rigorosamente científico, ele permanece como um dos marcos mais sólidos de documentação honesta sobre o Negro no Brasil.
Muita coisa mesmo que tinha passado despercebida ao próprio Nina Rodrigues, não escapou ao olhar investigador do modesto professor negro, que nos desvãos ignorados do candomblé do Gantois ou diretamente em sua residência no Matatú Grande, se rodeava de velhos africanos, paes e mães de santo, que o fizeram senhor dos mistérios das suas práticas religiosas e mágicas, das tradições do Continente Negro aqui diluídas, ou dos segredos desta culinária esquisita que impressionou, desde a infância, o paladar brasileiro. (RAMOS, 1938, p. 6)

Arthur Ramos reconhecia, assim, lapsos na obra de Nina Rodrigues, essa de caráter científico, nos seus termos. Reconhecia, também, a importância dos estudos de Manuel Querino, embora Ramos os desguarnecesse da cientificidade. A importância atribuída aos trabalhos de Querino fundamentava-se no fato de ele ter obtido as informações sobre os “costumes africanos” diretamente de quem os detinha, mas não de forma superficial. Querino tinha uma experiência “de dentro”. O fato de ser negro teria, no entendimento de Ramos, lhe possibilitado a vivência na intimidade dos terreiros, até mesmo se tornando um “senhor dos mistérios de suas práticas religiosas e mágicas”. Essa vivência, traduzida no detalhamento das práticas afrorreligiosas em A raça africana e seus costumes na Bahia, tem sido uma das bases para que Querino seja, especialmente nesses anos 2000, afirmado como o primeiro etnógrafo negro brasileiro (GLEDHILL, 2020, 202 ; D’AMATO, 2023).

A exclusão desse autor da “linhagem nobre” dos estudos afro-brasileiros representados pelos herdeiros da “escola bahiana” (SILVA, 2006, p. 74) reflete a maneira como o racismo epistêmico opera. Dedicando-se ao estudo sobre a vida e a obra de Querino, Sabrina Gledhill defende seu pioneirismo, demonstrando como seus apontamentos conferiam uma outra interpretação à presença dos africanos e seus descendentes na população brasileira : “(...) Querino foi o primeiro pesquisador a estudar a cultura africana no Brasil, e sua visão dos africanos - e particularmente da mistura racial - era muito mais positiva e otimista do que a postura racialista e pessimista adotada por Nina (como ele é conhecido) e pela maioria dos intelectuais brancos da época” (GLEDHILL, 2023, p. 1 ; minha tradução).

Além disso, a autora destaca a forma respeitosa como Querino tratava seus interlocutores e também a defesa dos candomblés empreendida por ele, que também era ogã do terreiro do Gantois, em Salvador :

Como ogã, Querino desempenhou o papel que se esperava dele e defendeu as comunidades religiosas, que eram regularmente submetidas a batidas policiais, seus membros eram espancados, humilhados e presos - às vezes mortos - e muitos objetos sagrados eram destruídos ou confiscados, mantidos em salas de armazenamento de provas e posteriormente entregues a museus. (GLEDHILL, 2023, p. 10 ; minha tradução)

E reconhecendo a importância dos trabalhos de Manuel Querido, para além dos estudos afrorreligiosos, Sabrina Gledhill sentencia : “O “autodidata” Querino merece, portanto, ser reincluído no panteão brasileiro dos antropólogos culturais precursores.” (GLEDHILL, 2023, p. 12 ; minha tradução [17]). Um posicionamento que tem reverberado, como indica a inclusão do verbete dedicado a Querino na Enciclopédia de Antropologia da Universidade de São Paulo : “[Querino] Desenvolveu precocemente trabalhos de natureza etnográfica no Brasil, muito embora não tenha sido reconhecido na época em que viveu e nem mesmo após a sua morte, em função do racismo reinante no país e em suas instituições” (D’AMATO, 2023).

Incorporar os estudos de Querino na história da antropologia das religiões afro-brasileiras, sem desqualificá-lo, não implica adicionar simplesmente mais um autor à narrativa. Implica, isto sim, considerar outra forma de abordagem como válida ; uma abordagem que atribuía às contingências socioculturais a causa da diferença entre brancos e negros e não à suposta inferioridade biológica dos negros, como apontavam autores como Nina Rodrigues. Os estudos de Querino contribuem, assim, para enfatizar a relevância da presença africana na formação da sociedade brasileira. Ele empreendia, adotando aqui os termos atuais, uma luta antirracista como também o faria outro baiano, Edison Carneiro (1912-1972) [18].

Nascido em Salvador, Edison Carneiro ficou conhecido como ensaísta, etnógrafo e folclorista. Esse intelectual negro teve formação em Direito, atuou como jornalista e era militante comunista. Carneiro teria sido convidado para se tornar ogã no Ilê Axé Opô Afonjá e no Ilé Ogunjá. Dentre os temas aos quais se dedicou, seus trabalhos sobre as práticas afrorreligiosas merecem destaque. Nos anos 1930, realizou uma importante pesquisa etnográfica nos terreiros soteropolitanos, tendo tido trabalhos também publicados na referida coleção dirigida por Arthur Ramos – Religiões Negras (1936) e Negros Bantos (1937). Assim como Ramos, ele não poupou seu conterrâneo, Querino, à sua pena afiada em um artigo em que apresenta uma abordagem sobre “Os estudos brasileiros do negro”. Ao traçar uma genealogia de tais estudos, iniciando-a com Nina Rodrigues, ele afirma :

Os estudos do negro, embora sem este caráter científico, deviam prosseguir com o negro baiano Manuel Querino, cuja intenção era exalçar o papel do colono africano na formação nacional. [...] e, sem ter ideia da direção em que se orientavam os estudos científicos, Manuel Querino explorou os mesmos caminhos trilhados por Nina – as religiões, o folclore, a história – e lhes acrescentou apenas o da culinária de inspiração africana. (CARNEIRO, [1953]1964, p. 107)

Carneiro também considerava que os estudos de Querino não eram investidos de cientificidade. Ele coadunava, dessa forma, com o posicionamento de Ramos, com quem mantinha uma relação profissional próxima, embora também fosse crítico a determinadas posturas do colega [19]. Diferentemente de Ramos, no entanto, Carneiro não conseguiu um posto universitário para dar sequência às suas investidas acadêmicas. A partir da década de 1950, integrou o “movimento folclórico brasileiro”, chegando a ser diretor da Campanha de Defesa do Folclore Nacional, de 1961 a 1964 [20]. Sua atuação no campo do folclore não o impediu, portanto, de ser considerado, nos dias de hoje, uma das “vozes negras na antropologia” [21]. Para além da relevância de seus escritos etnográficos, esse reconhecimento também advém do seu comprometimento para com os grupos com os quais lidava no âmbito de suas pesquisas. No caso dos praticantes do candomblé, em especial, Carneiro atuou no intuito de garantir-lhes liberdade religiosa, tal como ficou evidenciado no movimento que girou em torno do II Congresso Afro-Brasileiro, ocorrido em Salvador, em 1937, de que foi um dos organizadores (MORAIS, 2020).

Em 1934, já havia acontecido o I Congresso Afro-Brasileiro, em Recife (PE), organizado por Gilberto Freyre. Os dois encontros, ressalvadas suas diferenças, reuniram pesquisadores que, por distintas vias, debatiam as relações raciais principalmente no Brasil. Parte desses pesquisadores estavam vinculados a órgãos estatais de desenvolvimento e de implementação de políticas públicas higienistas. Para além do aporte da medicina, incluindo a psiquiatria, eles se apoiavam na antropologia da época para desenvolverem suas pesquisas sobre a população negra, dedicando especial atenção às suas práticas religiosas. Durante os referidos congressos, o debate não ficou restrito aos acadêmicos. Afrorreligiosos também estiveram presentes nesses fóruns como congressistas, um fato inédito até então. Além disso, eles abriram seus locais de culto, os terreiros, para a visitação dos participantes. Esses religiosos viam na aliança com os pesquisadores uma possibilidade de garantir proteção às suas práticas, diante do preconceito e da violência policial de que eram vítimas [22].

O Congresso da Bahia teve, inclusive, como seu presidente honorário Martiniano Eliseu do Bomfim (1859-1943), um famoso babalaô – sacerdote do culto de Ifá, um dos oráculos iorubás. Filho de africanos libertos de origem iorubá, ele nasceu em Salvador. Seu pai era comerciante e importava produtos africanos, fazendo também viagens à África. Em uma delas levou Martiniano para realizar seus estudos em Lagos, na Nigéria, onde ficou por onze anos, entre 1875 e 1886. Ele dominava o inglês e também o iorubá. Nos anos 1930, já na casa dos 70 anos, tornou-se uma referência para o povo de santo e era contatado por pesquisadores que se interessavam pelas práticas afrorreligiosas na Bahia.

Para Martiniano, os estudiosos poderiam ser aliados importantes na luta contra a repressão às religiões afro-brasileiras. E o babalaô se empenhou nisso. Como integrante da comissão executiva do Congresso da Bahia e seu presidente honorário, não assumia, assim, o papel de um simples informante dos pesquisadores ávidos por detalhes sobre as práticas dos africanos e seus descendentes. Ele sabia da importância conferida aos seus conhecimentos :

Eu sou altamente valorizado no Congresso [Afro-Brasileiro de Salvador], eu sou a pessoa que traduz os textos em nagô para eles. Eu sou o único descendente anagô que pode traduzir textos de nagô neste país, bem como na terra iorubá. Não há ninguém que pode ser igual a mim no ato de traduzir de e para a língua iorubá. (citado por AYOHOMIDIRE ; AMOS, 2012, p. 250-251)

A participação dos afrorreligiosos nos dois congressos ficou registrada nos seus anais. No de Recife, consta a comunicação assinada pela ialorixá Santa e pelos babalorixás Oscar Almeida e Apolinário Gomes. Trata-se do trabalho “Receitas e quitutes afro-brasileiros”, incluído nos anais do encontro (SANTA, ALMEIDA, GOMES, 1935), em que os autores listam pratos típicos da culinária afro-brasileira, presentes também nos rituais afrorreligiosos, e indicam o seu modo de fazer. Nos anais do Congresso da Bahia, constam contribuições do próprio Martiniano do Bomfim, como também dos sacerdotes Eugênia Anna dos Santos (Mãe Aninha), Manoel Bernardino da Paixão (Bernardino Bate Folha) e Manuel Vitorino dos Santos (Manuel Falefá da Formiga). Excetuando o texto do babalaô, que foi distinguido com o título de professor no sumário dos anais, os demais foram reunidos no Apêndice, separados, assim, dos textos daqueles que eram presumidamente doutos. Tal fato demonstra que os saberes eram (e ainda são) hierarquizados, mesmo entre os próprios afrorreligiosos.

Os Congressos Afro-Brasileiros foram, de fato, um marco na relação dos afrorreligiosos com a academia, possibilitando que, aos poucos, eles fossem reconhecidos como pesquisadores e não apenas “informantes”. Destaca-se o caso de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, também conhecido como Mestre Didi (1917-2013). Filho da Mãe Senhora, que foi ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, ele foi importante líder de culto dos egunguns, que são ancestrais divinizados. Além de suas atividades religiosas, foi escultor, escritor e pesquisador. Como pesquisador, Mestre Didi publicou trabalhos sobre diferentes aspectos da cultura iorubá no Brasil e na África, alguns dos quais foram escritos com sua esposa, a antropóloga Juana Elbein dos Santos, já mencionada neste texto. Nas décadas de 1960 e 1970, ambos realizaram viagens de pesquisa à África financiadas pela Unesco (SANTOS, 2014).

Em 1962, Mestre Didi publicou uma obra sobre o terreiro de candomblé ao qual pertencia, o Ilê Axé Opô Afonjá. O nome do terreiro deu título à obra, publicada pelo Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos, órgão à época vinculado ao Ministério das Relações Exteriores do governo brasileiro. Seu prefácio foi assinado por Pierre Verger, que apontou como um diferencial da obra o fato de ela ter sido escrita por um afrorreligioso :

Muitos livros já se escreveram sobre o Candomblé da Bahia. Sociólogos, antropólogos, economistas, médicos, diplomatas, psiquiatras, romancistas, musicólogos e autores dramáticos abordaram o assunto por simples curiosidade ou com profundo interesse, animados de aversão ou simpatia, e seus trabalhos são fruto de um estudo superficial ou relativamente sério da questão. Mas nenhum deles é, como Deoscóredes dos Santos, nascido na ‘seita’, nem é como ele membro de direito indiscutível e indiscutido. (SANTOS, 1962, p. 11)

O envolvimento do Mestre Didi com as religiões afro-brasileiras apresenta-se, portanto, como uma garantia do rigor das informações contidas em seu trabalho e confere ao seu autor uma certa superioridade face a pesquisadores que não “nasceram no seio do culto”, como até mesmo o próprio Verger. Enquanto professor da Sorbonne, Roger Bastide escreveu uma pequena nota introdutória na qual, como fez Verger em seu prefácio, destaca a filiação religiosa de Mestre Didi : “Livro de sábio, de filho da Seita e de admirável narrador” (SANTOS, 1962, p. 9).

Mestre Didi não foi o único pesquisador afrorreligioso em seu tempo. Embora as religiões afro-brasileiras sejam marcadas pela oralidade, o registro em livros, cadernos e apostilas tem sido um instrumento também adotado por seus praticantes. Os umbandistas, por exemplo, especialmente nas décadas de 1950 e 1960, publicaram inúmeras obras sobre sua religião, com o objetivo de codificar a prática religiosa. As obras escritas por afrorreligiosos multiplicaram-se com o passar dos anos. Algumas são autobiográficas, outras dizem respeito a vários aspectos da religião, como a cosmologia e a liturgia. Por vezes, essas obras são assinadas apenas pelos religiosos ou em coautoria com outros pesquisadores, com uma trajetória acadêmica em diferentes áreas, incluindo a antropologia.

Deixa a gira girar : autoridade aos afrorreligiosos

A partir dos anos 2000, com a implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial, em especial a política de cotas para o ingresso no ensino superior, ampliou-se o acesso de negros e indígenas à universidade. Cursar uma graduação e mesmo uma pós-graduação passou a ser uma possibilidade para uma parcela da população antes excluída desse universo. Essa conquista contribui para promover uma mudança – ainda que lenta – no conteúdo das disciplinas e nas formas de ensino e de pesquisa quando, no ambiente universitário, há abertura para a inclusão dos saberes ditos tradicionais, dentre eles os advindos das práticas afrorreligiosas. Esse é um ponto importante no atual contexto, embora os praticantes das religiões afro-brasileiras, como já foi mencionado neste artigo, não estejam restritos à parcela da população que se declara negra [23].

A antropologia feita no Brasil tem sido impactada por esse novo cenário, em que pessoas antes consideradas “informantes” se tornam pesquisadores. Por vezes, o processo de “estranhamento” nessa outra posição é explicitado nos trabalhos de pesquisa, como abordado por Rosiane Rodrigues de Almeida que já era uma mãe-de-santo, com terreiro aberto no estado do Rio de Janeiro, quando se iniciou na antropologia. Em sua tese de doutorado (ALMEIDA, 2019), ela explica que quando surgiu o seu interesse pela pesquisa científica até o momento em que foi “aceita” como antropóloga, teve que fazer dois movimentos : primeiramente, teve que se socializar no mundo acadêmico. Depois, teve que assumir o desafio de deixar a condição de “objeto de pesquisa” para se transformar em seu sujeito.

Sua pesquisa de doutorado foi sobre a luta do movimento afrorreligioso contra a violência sofrida pelos praticantes das religiões afro-brasileiras. Sua condição de mãe-de-santo, ela conta, favoreceu a sua entrada no campo, uma vez que ela já tinha relações com os afrorreligiosos atuantes nos movimentos sociais. Essa condição foi problematizada em sua tese. Ela a explicitou para defender a ideia de que o posicionamento do pesquisador não é nunca neutro, uma vez que sempre está guiado pelos efeitos da intersubjetividade. Assim demonstrou, se apoiando nas considerações de Sherry Ortner, que suas motivações de pesquisa, tanto pessoais como teóricas, estavam inscritas em um quadro de relações estabelecidas com diferentes agentes e que são de diversas naturezas : relações de afeto, de solidariedade, de poder, de rivalidade. Esse exercício reflexivo não é algo que concerne apenas aos religiosos que se tornam antropólogos, evidentemente. Nem mesmo somente aos antropólogos engajados nas religiões afro-brasileiras. Esse exercício concerne a todos que se propõem a lançar seu olhar sobre a vida social a partir da antropologia, mas ainda não era realizado quando dos primeiros estudos sobre essas religiões.

Expor o pertencimento ao universo que estudou e problematizá-lo seria uma maneira de lidar com essa dupla inserção no campo, como o fez Stefania Capone ([1999] 2004), em sua tese publicada sob o título A busca da África no candomblé : tradição e poder no Brasil. A autora – que tem uma trajetória distinta da de Rosiane Rodrigues de Almeida –, relata que havia passado por um processo iniciático anterior àquela pesquisa, realizada em um momento em que havia se desvinculado do terreiro. Diferentemente do que era o habitual quando de sua pesquisa nos anos 1990, ela não tratou o seu pertencimento apenas com uma breve menção no texto, mas colocou-o em questão, demonstrando as implicações que seu percurso pessoal tinha em seu trabalho etnográfico, uma vez que, para seus interlocutores, ela era “de todo modo, uma ‘iniciada’” (CAPONE, ([1999] 2004, p. 46).

O antropólogo Vagner Gonçalves da Silva também teve uma experiência iniciática no candomblé antes de realizar suas pesquisas de mestrado e de doutorado em antropologia sobre religiões afro-brasileiras. No entanto, por questões de cunho pessoal, ele se afastou da prática religiosa, sem se afastar, porém, da religião que seguiu sendo o foco de seu trabalho.

Mas, ter interrompido o processo de conversão e iniciação sem abandonar o interesse em dialogar com os membros desta religião foi a forma que encontrei para manter um trânsito constante entre o universo da academia e o dos terreiros, em cuja convivência ainda me sinto subjetivamente mobilizado. (SILVA, 2004, p. 47)

Em sua tese, Vagner Gonçalves da Silva (2000) se dedicou de forma detida na relação observador-observado no caso das pesquisas sobre religiões afro-brasileiras, enfatizando as consequências para o trabalho de campo do envolvimento religioso do pesquisador com o sistema de crenças observado. Para tanto, entrevistou antropólogos e lideranças afrorreligiosas que já haviam aberto seus terreiros para pesquisadores. A partir das trajetórias de seus interlocutores, ele demonstra como há diferentes formas de participação dos antropólogos nas religiões afro-brasileiras. E defende que a observação participante seja compreendida não apenas como técnica de construção de etnografias, mas também como um objeto do saber etnográfico.

Em uma publicação mais recente, Vagner Gonçalves da Silva (2021) já se posiciona como adepto das religiões afro-brasileiras e aponta como essa condição foi levada em consideração quando foi chamado a atuar como especialista em processos de patrimonialização de espaços de culto afro em São Paulo :

Como adepto religioso e antropólogo dedicado ao conhecimento da cultura afro-brasileira, fui acionado pelas lideranças para participar desses processos com finalidade de mediar e organizar os conhecimentos produzidos pelas comunidades em termos de estudos e laudos (pareceres) etnográficos-antropológicos e justificativas que pudessem validar, tanto do ponto de vista das comunidades como do Estado, esses processos de tombamento. (SILVA, 2021, p. 9) [24]

A minha experiência se assemelha à relatada por Stefania Capone e por Vagner Gonçalves da Silva. Minha vivência na umbanda e no candomblé precedem minhas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras, tendo me iniciado no candomblé durante o meu mestrado. Posteriormente, afastei-me, em parte, da prática religiosa mantendo o diálogo constante com membros dessas religiões. Desse modo, sou reconhecida por meus interlocutores como uma iniciada, sendo acionada em processos que envolvem a patrimonialização de elementos referentes ao universo afrorreligioso e à mobilização desses elementos no âmbito de políticas públicas, temas que também são foco de minhas pesquisas (CAPONE ; MORAIS, 2015 ; MORAIS, 2018). A patrimonialização desses elementos, vale lembrar, tem sido uma das vias adotadas pelos afrorreligiosos para lutarem por seus direitos e fazer frente aos atos de intolerância e racismo religioso dos quais são vítimas. Nesses processos, ganham relevância tanto as etnografias como a atuação do antropólogo, considerado como um “especialista da cultura”.

Esse lugar social conferido aos antropólogos também é usado estrategicamente por afrorreligiosos para fazerem o registro de suas próprias práticas, buscando uma afirmação no campo das religiões afro-brasileiras. Menciono como exemplo dois casos. Primeiramente, trata-se do trabalho da mãe de santo Ivete Miranda Previtalli, que se tornou antropóloga, tendo defendido seu mestrado e doutorado em antropologia, ambos dedicados ao candomblé angola, tradição à qual pertence. A pesquisa de mestrado foi realizada em Campinas, cidade paulista onde fica seu terreiro (PREVITALLI, 2008), e a pesquisa de doutorado foi realizada na própria cidade de São Paulo (PREVITALLI, 2012).

Além de contribuir para os estudos sobre o candomblé angola, em geral, suas pesquisas apresentam também um interesse político dentro do campo das religiões afro-brasileiras. Elas foram desenvolvidas em um momento em que praticantes do candomblé de tradição banta, como o candomblé angola, têm buscado demonstrar que essa tradição tem uma história, uma cosmologia e uma liturgia que lhe são próprias – diferentemente do que informavam estudos que visavam dar proeminência aos candomblés vinculados a tradições de matriz iorubá. Esses religiosos buscam, assim, se opor à ideia presente desde os primeiros estudos antropológicos sobre as religiões afro-brasileiras – aquela que informava uma superioridade do candomblé de tradição iorubá com relação aos de tradição banta.

Mesmo com a vasta literatura etnográfica do candomblé de tradição iorubá, Nílsia Lourdes dos Santos, mãe de santo de um terreiro dessa modalidade de culto, em Minas Gerais, investiu na antropologia para defender sua dissertação de mestrado Orí – O orixá maior sob a perspectiva do Povo Yorùbá. Em suas palavras :

Essa Dissertação tem por objetivo versar sobre a minha pesquisa etnográfica realizada na cidade de Ilè Ifé, estado de Osun na Nigéria. Apresento uma riquíssima pesquisa sobre Orí, o orixá maior dentre as 401 divindades do panteão yorúbá. As entrevistas se deram com os dezesseis principais sacerdotes do templo de Ifá nessa mesma cidade por determinação de sua majestade o Rei de Ilè Ifé. Também visitei para pesquisa o bàbálawò Kolapò filho do falecido sacerdote que iniciou o então jornalista Pierre Verger, na cidade de Ilobu, também estado de Osun. Tenho certeza que essa Dissertação irá corroborar e muito com os antropólogos quanto com a maioria dos sacerdotes de culto afro-brasileiro e seus adeptos. (SANTOS, 2020, s/p.)

Ao mesmo tempo em que aborda as facetas do orixá Orì, mãe Nílsia descreve sua própria experiência ao ser escolhida e condecorada como Iyalodè Ósún Ifé World Wide, pelo rei de Ilê Ifé, na Nigéria, título que lhe confere distinção nesse país africano e no Brasil.

No romper da madrugada : conclusão

As miradas à antropologia das religiões afro-brasileiras propostas neste artigo começaram com os estudos inaugurais deste campo, os de Raimundo Nina Rodrigues. Desde os primeiros estudos antropológicos realizados no Brasil, a própria sociedade brasileira tem sido a fonte a partir da qual os pesquisadores escolhem seus temas de pesquisa, dentre os quais se destacaram os modos de vida da população negra. A antropologia brasileira nasceu assim “em casa”. No entanto, esses primeiros estudos, como os de Nina Rodrigues, trataram inicialmente os negros como um “outro” inferiorizado, como seres “exóticos”. Essas ideias foram criticadas em diversos momentos do século XX, mas o preconceito racial segue como uma realidade no Brasil.

Observa-se que nos estudos antropológicos das religiões afro-brasileiras é comum o envolvimento dos pesquisadores com a prática pesquisada, fato que pode até mesmo contribuir para legitimar o estudo. O candomblé é uma das muitas religiões afro-brasileiras, assim como a umbanda, o batuque, o tambor de mina. A referência à África e o caráter iniciático é comum a todas a elas, que guardam suas especificidades. Dessa forma, para acompanhar o cotidiano dessas religiões, mesmo que “para fins de pesquisa científica”, é necessário investir de alguma forma nelas. Como afirma Stefania Capone ([1999] 2004), o envolvimento dos pesquisadores no candomblé é uma consequência lógica das condições da pesquisa de campo e do método etnográfico. Esse envolvimento pode, assim, ser justificado tendo como base o método clássico de investigação antropológica : a observação participante.

A “iniciação” de afrorreligiosos na antropologia nessas últimas décadas ocorre em um contexto em que os saberes ditos tradicionais passam a ter certa valorização em circuitos acadêmicos no Brasil, em que há uma crítica à produção do conhecimento baseada na episteme eurocêntrica (SOUZA LIMA, 2018 ; CARVALHO ; VIANNA, 2017 ; GUIMARAES et al., 2016). Essa crítica é ancorada nos debates em torno do decolonial, pós-colonial, contracolonial (que não são tomados aqui como sinônimos) – sendo esse último termo, contracolonial, cunhado pelo intelectual e ativista quilombola, também poeta e escritor, Antonio Bispo dos Santos (1959-2023), conhecido como o Nêgo Bispo, que era uma presença constante nesses circuitos (SANTOS, 2023). Soma-se a isso a atuação dos movimentos negros contra o racismo que incide na implementação das ações afirmativas, em especial, nas políticas de cotas que têm mudado o perfil socioeconômico e étnico-racial dos estudantes de ensino superior, com a ampliação do ingresso de pessoas negras e indígenas.

Pensar a encruzilhada como forma de construção do conhecimento, como tem sugerido Leda Maria Martins (2023), pode ser um caminho para congregarmos saberes atentos às hierarquizações, pois a encruzilhada é para a autora uma maneira de

sair de uma armadilha, que é a da pureza – a pureza teórica-conceitual, a pureza cultural, a pureza estética, a pureza ideológica, a pureza artística - , para poder lidar com a porosidade, lidar com as impurezas : isso quer dizer lidar com os encontros ainda que hostis, lidar com as travessias e atravessamentos e principalmente com suas diversas derivações. (MARTINS, 2023, p. 23)

Esse contexto, dito assim, parece ser de “abertura de caminhos”. Existem, no entanto, forças contrárias à ascensão de novas epistemes, às garantias sociais constitucionais voltadas para grupos que ainda estão à margem, ao estabelecimento de uma sociedade, de fato, diversa, em que impere o respeito a todas as formas de expressão. Vivemos também um momento marcado pelo conflito, que fere, encarcera e mata aqueles que estariam na contracorrente dos poderes econômicos e políticos, de base conservadora. A investidura de afrorreligiosos na carreira acadêmica torna-se também uma forma de luta contra a intolerância religiosa, o racismo religioso ou o genocídio dos povos e comunidades de matriz africana, expressão adotada por afrorreligiosos para se referir aos violentos ataques de que são vítimas. Recontar a história da antropologia das religiões afro-brasileiras é parte dessa luta e também de um esforço de reparação da própria antropologia brasileira, que nasceu “em casa” sem que fossem consideradas as distinções de gênero e de raça[[Sigo aqui as considerações de Luena Pereira (2020).

Resumo : Este artigo aborda as interseções entre as práticas afrorreligiosas e antropológicas, a partir das quais busca-se recontar histórias da antropologia das religiões afro-brasileiras. Para tanto, percorre desde seus estudos inaugurais, na viragem do século XIX para o século XX, até as primeiras décadas deste século XXI, observando-se as mudanças no campo, em especial, no que diz respeito ao envolvimento dos pesquisadores com as práticas religiosas que estudam. Por isso, atenta-se aos procedimentos teórico-metodológicos adotados pelos autores mencionados no artigo. Esses autores foram formados por diferentes tradições, uma vez que essa área da antropologia congrega pesquisadores de nacionalidade brasileira ou estrangeira, com formação no Brasil e alhures, e inclui afrorreligiosos. Os argumentos do artigo são apresentados em dois momentos. Primeiramente, é realizada uma revisão da conformação da antropologia das religiões afro-brasileiras, conforme tem sido traçado pela literatura, apontando envolvimento dos pesquisadores com os grupos estudados, em especial, praticantes do candomblé. Depois, recupera-se autores que têm sido destacados por uma antropologia que reivindica, de forma crescente, a presença de autores negros na sua história e na sua prática. Nesse movimento de recontar histórias da antropologia das religiões afro-brasileiras, afrorreligiosos que atuam como pesquisadores de suas próprias práticas e outros que se tornam antropólogos ganham relevo.

Referências

ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. A luta por um modo de vida : as narrativas e estratégias de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fonsanpotma. Tese de doutorado. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

AMARAL, Rita & Vagner Gonçalves da SILVA. “A cor do axé - brancos e negros no candomblé de São Paulo”. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, CEAA, n. 25, dezembro, 1993. p.99-124.

AYOHOMIDIRE, Félix & Alcione M. AMOS. “O babalaô fala : a autobiografia de Martiniano Eliseu do Bomfim”. Afro-Ásia, Salvador, n.46, 2012, p. 229-261.

BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo : Editora Perspectiva, 1973.

BASTIDE, Roger. Les religions africaines au Brésil. Paris : PUF, 1995 [1960].

BRAGA, Julio. A cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro : Pallas, 1999.

CAPONE, Stefania. “Roger Bastide. Réseaux intellectuels et formation d’un domaine afro-américaniste”. In : Laurière, Christine (Org.). Les années 50. Aux origines de l’anthropologie française contemporaine, vol. 2, Les Carnets de Bérose n° 14, Paris : Bérose - Encyclopédie internationale des histoires de l’anthropologie, 2024, p. 300-330.

CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé : tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro : Editora Pallas/Contracapa, 2004 [1999].

CAPONE, Stefania & Mariana Ramos de MORAIS (Orgs.). Afro-Patrimoines : culture afro-brésilienne et dynamiques patrimoniales. Paris : Lahic/IIAC/EHESS, 2015.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Peripheral Anthropologies ‘versus’ Central Anthropologies”. Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, n. 4, 1999, p. 10-31.

CARNEIRO, Edison. Ladinos e crioulos : estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1964.

CARVALHO, José Jorge & Letícia C. R. VIANNA.“O Encontro de saberes nas universidades : uma síntese dos dez primeiros anos”. Revista Mundaú, n. 9, 2020, p. 23-49.

CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade : a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2013.

CUNHA, Olivia Gomes da. 2020. The Things of Others : Ethnographies, Histories, and Other Artifacts. Leiden & Boston : Brill.

D’AMATO, Andréa Silva. 2023. “Manuel Querino”. In : Enciclopédia de Antropologia. São Paulo : Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em : https://ea.fflch.usp.br/autor/manuel-querino

FARIAS, Edson & Fernando RODRIGUES. “Encontro entre ciências sociais e candomblé baiano : produção científica e engajamento político-cultural : entrevista com Vivaldo da Costa Lima”. Sociedade e Estado, Brasília, v. 24, n. 1, jan.-abr., 2009, p. 257-290.

GIUMBELLI, Emerson. “A presença do religioso no espaço público : modalidades no Brasil”. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, 2008, p. 80-101.

GLEDHILL, Sabrina. “A Pioneering Afro-Brazilian Ethnologist : The Life and Work of Manuel Querino”. In Bérose - Encyclopédie internationale des histoires de l’anthropologie, Paris, 2023.

GUIMARÃES, César et al. “Por uma universidade pluriepistêmica : a inclusão de disciplinas ministradas por mestres dos saberes tradicionais e populares na UFMG”. Tessituras, Pelotas, v.4, n. 2, jul./dez., 2016, p. 179-201.

HALLOY Arnoud. “Full Participation and Ethnographic Reflexivity : An Afro-Brazilian Case Study”, Journal for the Study of Religious Experience, n. 2, 2016, p. 7-24.

MAGGIE, Yvonne & Peter FRY. “Nota dos organizadores”. In : Rodrigues, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro : Editora UFRJ/Biblioteca Nacional, 2006.

MARTINI, Gerlaine. “Apontamentos sobre o campo das religiões afro-brasileiras e seus autores revisitados”. Revista Calundu, v. 1, n.1, jan-jun., 2017, p. 71-92.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória. São Paulo : Perspectiva ; Belo Horizonte : Mazza Edições, 1997.

MARTINS, Leda Maria. Leda Maria Martins. Belo Horizonte, Relicário Edições, 2023.

MAUSS, Marcel. “Nina Rodrigues, L’animisme fétichiste des nègres de Bahia”. L’Année Sociologique 1900-1901, Paris : Librairie Felix Alcan, 1902, p. 224-225.

MONTERO, Paula. “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 74, 2006, p. 47-65.

MORAIS, Mariana Ramos de. “Quand ‘l’autre’ devient ‘nous’”. Archives de Sciences Sociales des Religions, p. 39-58, 2022.

MORAIS, Mariana Ramos de. “Raça, cultura e religião : os Congressos Afro‑Brasileiros e a antropologia feita no Brasil nos anos 1930”. In Bérose - Encyclopédie Internationale des histoires de l’anthropologie, Paris, 2020.

MORAIS, Mariana Ramos de. De religião a cultura, de cultura a religião : travessias afro-religiosas no espaço público. Belo Horizonte : Editora PUC Minas, 2018.

MORAIS, Mariana Ramos de. De religião a cultura, de cultura a religião : travessias afro-religiosas no espaço público. Tese de doutorado em Ciências Sociais. Belo Horizonte, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2014.

MORIN, Françoise. Diálogos entre filhos de Xangô : correspondência 1947-1974/Roger Bastide, Pierre Verger. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 2017.

OLIVEIRA, Waldir Freitas & Vivaldo da COSTA LIMA (Orgs.). Cartas de Édson Carneiro a Arthur Ramos. São Paulo : Corrupio, 1987.

PEIRANO, Mariza. “A alteridade em contexto : antropologia como ciência social no Brasil”. Série Antropologia, v. 255, 1999, p. 1-30.

PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. “Alteridade e raça entre África e Brasil : branquidade e descentramentos nas Ciências Sociais brasileiras”. Rev. antropol., v. 63, n. 2, 2020, p. 1-14.

PRANDI, Reginaldo. “As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais : uma conferência, uma bibliografia”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 63, 2007, p. 7-30.

PRANDI Reginaldo. Os candomblés de São Paulo : a velha magia na metrópole nova. São Paulo : Hucitec ; Edusp, 199.

PREVITALLI, Ivete Miranda. Candomblé : agora é Angola. São Paulo : Annablume / Petrobras, 2008.

PREVITALLI, Ivete Miranda. Tradição e traduções. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, São Paulo. 2012.

QUEIROZ Maria Isaura Pereira de. “Nostalgia do outro e do alhures”. In. M. I. Pereira de Queiroz (Org.), Roger Bastide, São Paulo : Ática, 1983.

RAMOS, Alcida Rita. “Do engajamento ao desprendimento”, Campos, n. 8, 2007, p. 11-32.

RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Rio de Janeiro : Graphia, 2001 [1934].

REIS, Luiza Nascimento dos. “África in loco : itinerários de pesquisadores do centro de estudos afro-orientais (1959-1972)”. Rev. Cadernos de Campo, n. 23, jul.-dez., 2017, p. 45-73.

RELIGIÃO E SOCIEDADE. Rio de Janeiro, n. 8, 1982.

RODRIGUES, Nina. L’animisme fétichiste des nègres de Bahia. Salvador : Reis & Companhia, 1900.

RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 2006 [1935].

ROSSI, Gustavo. “Uma ‘vocação perdida’ ? Vida e obra de Edison Carneiro, expoente dos estudos afro‑brasileiros”. In Bérose - Encyclopédie internationale des histoires de l’anthropologie, Paris, 2020.

SANSONE, Livio. Estação etnográfica Bahia : a construção transnacional dos estudos afro-brasileiros (1935-1967). Campinas : Editora Unicamp, 2022.

SANTA ; Óscar ALMEIDA & Apolinário GOMES. “Receitas e quitutes afro-brasileiros”. In : Estudos afro-brasileiros. 1935. Trabalhos apresentados ao 1º Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife em 1934, 1º volume. Rio de Janeiro : Ariel Editora. p. 259-260.

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo : Ubu Editora ; PISEAGRAMA, 2023.

SANTOS, Deoscóredes Maximiliano dos. Axé Opô Afonjá : notícia histórica de um terreiro de santo da Bahia, Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos, 1962.

SANTOS, Jocélio Teles dos. O poder da cultura e a cultura no poder : a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador : Edufba, 2005.

SANTOS Juana Elbein dos. Os nagô e a morte : Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis : Vozes, 2012 [1975].

SANTOS, Juana Elbein dos & Deoscóredes Maximiliano dos SANTOS. Arte sacra e rituais da África Ocidental no Brasil. Salvador : Corrupio, 2014.

SANTOS, Nílsia Lourdes dos. Orí : o orixá maior sob a perspectiva do Povo Yorùbá. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Pós-graduação em Antropologia da Unviersidade Ferderal de Minas Gerais, 2020.

SILVA, Vagner Gonçalves da. “Religiões afro-brasileiras. Construção e legitimação de um campo do saber acadêmico (1900-1960)”. In : Revista USP, São Paulo, n. 55, 2002, p. 82-111.

SILVA, Vagner Gonçalves da. “Na encruzilhada, com os antropólogos”. In : Religião e Sociedade, Rio de Janeiro : ISER, v. 24, n. 2, 2005, p.28-60.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia : Trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo : EDUSP, 2000.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Terreiros tombados em São Paulo. Laudos e Reflexões sobre a patrimonialização de bens afro-brasileiros. São Paulo : Leonardo Miyahara, 2021.

SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger : du regard détaché à la connaissance initiatique. Paris : Maisonneuve & Larose, 2007.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos. “Ações afirmativas no ensino superior e povos indígenas no Brasil : uma trajetória de trabalho”. Horizontes Antropológicos, n. 50, 2018, p. 377-448.

SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. “Quando a desigualdade é diferença : Reflexões sobre Antropologia Criminal e mestiçagem na obra de Nina Rodrigues”. Gazeta Médica da Bahia, n. 76 (Suplemento 2), 2006, p. 47-53.




[1Trecho do samba-enredo “Fala, Majeté  ! Sete Chaves de Exu”, composto por Gustavo Clarão, Arlindinho Cruz Jr. Fragga, Claudio Mattos, Thiago Meiners e Igor Leal. O enredo homônimo foi apresentado pela Acadêmicos do Grande Rio no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro de 2022. Foi com esse enredo que a agremiação conquistou o seu primeiro título de campeã do Grupo Especial do carnaval carioca. Essa foi uma homenagem da escola a Exu, divindade afro-brasileira que habita as encruzilhadas.

[2A autora do presente artigo é pesquisadora de Pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ) e bolsista do Programa de Pós-Doutorado Sênior da Faperj. Este artigo foi desenvolvido a partir de uma apresentação no Colóquio internacional “Histórias das Antropologias Latino-Americanas : experimentações contemporâneas” (IRN-HITAL/Bérose), ocorrido de 12 a 15 de junho de 2023, na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ambas no estado de São Paulo, Brasil (MORAIS, 2023). As reflexões aqui apresentadas também se baseiam em trabalhos anteriores (MORAIS, 2014  ; 2018  ; 2022).

[3Experiência de campo é entendida aqui de forma mais alargada, não restrita ao trabalho de campo com uma comunidade específica – ainda que seja uma etnografia multissituada –, mas considera-se também a pesquisa em arquivos e em acervos.

[4Menciono algumas experiências nesse sentido como a formação do Comitê de Antropólogas/os Negras/os, na Associação Brasileira de Antropologia e a proposição do curso “Vozes Negras na Antropologia”, ministrado pelo antropólogo Messias Basques (https://www.vozesnegras.com/), que foi premiado pela referida associação. Vale também conferir a iniciativa abordada por Gelaine Martini, com recorte mais detido nas religiões afro-brasileiras (MARTINI, 2017).

[5Esse trabalho de Nina Rodrigues ganhou uma edição francesa, L’animisme fétichiste des Nègres de Bahia, em 1900, que mereceu uma resenha de Marcel Mauss, em L’Année Sociologique (MAUSS, 1900-1901).

[6Uma/um iaô pode passar por outros processos iniciáticos, como a “obrigação de sete anos”, quando deixa de ser iaô e passa a ser ebomi, um cargo que permite o acesso a outros conhecimentos e cerimônias além de ser uma etapa para a iniciada ou o iniciado tornar-se uma sacerdotisa ou um sacerdote – denominados, nos termos rituais, ialorixá e babalorixá, respectivamente. Esses dois últimos cargos são o topo da hierarquia de um terreiro, ocupado apenas por uma pessoa, ou seja, são poucos iniciados que chegam ao topo da hierarquia do candomblé.

[7Sobre o processo de secularização no Brasil, ver Montero (2006) e Giumbelli (2008).

[8A expressão suspenso para ogã é adotada pelos praticantes do candomblé para indicar que a pessoa foi escolhida para o cargo de ogã e passou por um primeiro rito iniciático. No entanto, para que o escolhido tenha todos os direitos e responsabilidades desse cargo, ele deve passar por um outro ritual, quando, de fato, é confirmado – também um termo êmico – para o cargo.

[9A conformação do campo afro-americano tem sido abordada por diferentes autores, citando Capone ([1999] 2004  ; 2024), Cunha (2020), Sansone (2022).

[10O envolvimento nas práticas afrorreligiosas era um tema frequentemente discutido por Bastide e Verger em suas correspondências. Bastide perguntava detalhes dos processos iniciáticos de Verger e chegou a questioná-lo se a participação nos cultos não o impediria de relatar em suas pesquisas informações restritas aos iniciados. De todo modo, Bastide considerava que as experiências iniciáticas permitiram a Verger compreender em profundidade as práticas religiosas que estudou (MORIN, 2017).

[11A experiência da possessão, em particular, ainda é uma espécie de tabu entre os pesquisadores. O antropólogo belga Arnaud Halloy, que foi iniciado no xangô, religião afro-brasileira, em Recife, no estado de Pernambuco, no nordeste do país, já nos anos 2000, defende a iniciação e a própria possessão, como método de pesquisa (HALLOY, 2006).

[12Vale ressaltar que tanto a proposta de Bastide, “de dentro”, quando a proposta de Santos, “desde dentro”, recebem críticas, por serem uma forma de conceder autoridade aos pesquisadores que, em seus textos, não dão voz aos seus interlocutores (CAPONE, [1999] 2004).

[13Pierre Verger também tinha uma posição semelhante à de Juana Elbein dos Santos. Eles divergiam, no entanto, nas considerações sobre as formas de se estabelecer relações com os grupos pesquisados e a maneira de apresentar seus dados de pesquisa. Sobre a controvérsia entre esses dois pesquisadores, ver o debate público entre eles publicado no número 8 da Revista Religião e Sociedade, em 1982 (RELIGIÃO E SOCIEDADE, 1982).

[14O trabalho de Silva (2000) é uma referência para este artigo, bem como sobre metodologia nas ciências sociais de forma mais ampla e, em específico, nas pesquisas sobre religiões afro-brasileiras. Nele, o autor relata deferentes casos de antropólogos que se envolvem com as práticas afrorreligiosas – incluindo, por exemplo, José Jorge de Carvalho, Sergio Ferretti, Roberto Motta, Ismael Giroto, Norton Correa. A partir das trajetórias de cada interlocutor, Silva demonstra como esses envolvimentos são de diferentes naturezas, podendo incluir a iniciação ou não, ser de cunho ritual, religioso ou mesmo da ordem do afeto, da amizade.

[15Dentre os pesquisadores citados aqui, apenas Júlio Braga afirma-se “negro-mestiço”, seguindo aqui os seus termos (REIS, 2017).

[16Como diretor da coleção Biblioteca de Divulgação Científica, Ramos editou o segundo volume dos anais do Congresso de Recife. Por essa coleção, também foram publicados ensaios de Nina Rodrigues, bem como outros títulos sobre relações raciais, como Religiões Negras, de Edison Carneiro.

[17Gledhill usa a expressão “cultural ethnologists”.

[18Para uma análise da vida e obra de Edison Carneiro, ver Rossi (2020).

[19Vide correspondência entre Edison Carneiro e Arthur Ramos (OLIVEIRA  ; LIMA, 1987).

[20Com o golpe civil-militar de 1964, Edison Carneiro é compulsoriamente afastado do cargo.

[21Citando novamente o projeto Vozes negras na antropologia (https://www.vozesnegras.com/).

[22A modernidade que se almejava alcançar com as políticas do governo Vargas não se conjugava com as práticas religiosas vinculadas aos negros, ainda consideradas indícios de uma sociedade arcaica. Nesse período, órgãos públicos responsáveis pela moralidade e segurança públicas adotavam normativas no intento de proibir as práticas afro-religiosas. A prisão de praticantes das religiões afro-brasileiras, bem como a apreensão de seus objetos rituais, foi acompanhada da abertura de inquéritos e de processos em que eles eram enquadrados como réus. Um intenso combate contra essas religiões foi instaurado, contribuindo para uma organização de seus adeptos para garantir a realização de seus cultos, não apenas nos estados da região Nordeste, já reconhecidos como fonte de práticas afro-religiosas, como em outros estados da federação.

[23A participação de brancos nas religiões afro-brasileiras sempre foi observada nas etnografias, como também é constatada pelos dados censitários. No entanto, tem sido um ponto de controvérsias, como demonstram Amaral e Silva (1993).

[24O autor refere-se aos tombamentos dos seguintes espaços de culto : Axé IlêObá, Terreiro de Candomblé Santa Bárbara, Casa de Culto Dambala Kuere-rho Bessein, Ilê Alaketu Asé Ayrá (Axé Batistini), Ilê Olá Omi Asé Opô Aràkà (Axé Alvarenga), Ilê Afro-brasileiro Odé Lorecy, Santuário Nacional da Umbanda.