Introdução
Em 1936, Virgínia Leone Bicudo iniciou o curso de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), criada três anos antes, visando a formação de quadros de nível superior para a administração pública, em um contexto de urbanização e modernização aceleradas. Em 1945, ela defendeu na mesma instituição, sob orientação do sociólogo estadunidense Donald Pierson (1900-1995), a dissertação de mestrado em Sociologia, Estudos de Atitudes de Pretos e Mulatos em São Paulo, que permaneceu inédita durante sessenta e cinco anos, e que foi publicada no centenário do nascimento de sua autora, em 2010, sob a organização de Marcos Chor Maio. Foi o primeiro trabalho de investigação nas Ciências Sociais brasileiras apresentado sobre o tema do racismo e discriminação, bem como das atitudes raciais diante de tais fenômenos sociais.
Aos interessados nos estudos das relações raciais no Brasil na primeira metade do século XX, bem como na história das ciências sociais em São Paulo, é possível conhecer através da pesquisa de Virgínia Bicudo um trabalho pioneiro e original, o primeiro sobre o assunto no país, guardado desde 1945 nos arquivos da atual Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo [FESPSP], fruto da reestruturação da Escola Livre de Sociologia e Política. É importante destacar a contribuição decisiva de Virgínia Leone Bicudo para a sociologia e a antropologia brasileiras e também, a partir de 1937, para a psicanálise, campo no qual passou a atuar de forma mais intensa a partir dos anos 1950 até o seu falecimento.
É necessário pensar, no entanto, as razões da dissertação ter esperado tanto tempo para ser conhecida por um público mais amplo, por estudiosos e por gerações de pesquisadores e ativistas das relações sociais racializadas que desconheceram e/ou não citaram a pesquisa de Virgínia Bicudo até recentemente. Por que não foi lida, permanecendo por décadas uma ilustre desconhecida ? Por que somente sessenta e cinco anos após a defesa do seu mestrado, a sua dissertação foi publicada ? Ou sessenta e três anos depois de seu artigo pioneiro, “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo” (1947) ter sido editado na revista paulista Sociologia ? Por que a autora não quis ou não pôde publicar sua dissertação antes, e por que seu trabalho não circulou pelos meios usuais ? Por que passados sete anos de sua morte (2003) e no ano do centenário de seu nascimento, a Sociedade Brasileira de Psicanálise e a Fundação Escola de Sociologia e Política, em 2010, lhe renderam homenagens ? E, finalmente, por que, quase concomitantemente à escrita de sua dissertação, a autora migrou de área das ciências sociais para a psicologia social e para a psicanálise ?
Dados Biográficos
Virgínia Leone Bicudo nasceu e faleceu em São Paulo (1910-2003). Filha de Giovana Leone, uma imigrante italiana dona de casa, e de Theophilo Bicudo, um homem negro, funcionário público dos Correios e Telégrafos (cresceu na capital paulista, numa vila operária no bairro da Luz, na região central. Diplomou-se no Curso Normal (formação de professoras para crianças) e, posteriormente, fez o curso de Educação Sanitária, no Instituto de Higiene de São Paulo, em 1932, tornando-se também visitadora sanitária. Como professora, lecionava para crianças de escolas públicas. E como visitadora sanitária, acessava especialmente as moradias da classe trabalhadora para promoção e apoio à saúde pública. Pode-se dizer que isso lhe conferiu um aprendizado da cidade por diferentes ângulos, o que posteriormente lhe seria útil na pesquisa sociológica.
Mas quem foi e o que fez, afinal, essa intelectual ? Mulher negra, com tons de pele mais claros ou escuros (dependendo da técnica empregada na revelação do filme e dos contextos intelectuais e sociais em que foram interpretadas suas fotografias), como foi possível a formação de Virgínia Leone Bicudo no contexto acadêmico dos anos 1930 e 1940 da capital paulista ? E por que, ao lado da pesquisadora e psicóloga Aniela Meyer Ginsburg (1902-1986), ela é um dos nomes femininos menos lidos e mencionados nos resultados do Projeto de Pesquisa sobre Relações Raciais (1951-1955), patrocinado pela UNESCO em diferentes regiões do Brasil (Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo) ? No contexto paulista, o projeto foi coordenado pelos sociólogos Roger Bastide (1898-1974) e Florestan Fernandes (1920-1995), que ao lado do cientista social Oracy Nogueira (1917-1996) – todos eles ligados a ELSP – convidaram Bicudo a participar da equipe.
A contribuição da pesquisa Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo
Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo foi um trabalho realizado entre 1941 e 1944, antes que pesquisas hoje mais conhecidas se tornassem clássicas e referências obrigatórias para a área de estudo das relações raciais no Brasil, o que parece indicar a inexistência de uma interlocução mais consistente entre estudiosos do campo no país neste período. Por exemplo, não há menções, no trabalho de Virgínia Bicudo, a pesquisadores que já lidavam, no Brasil, com assuntos semelhantes, como Roger Bastide, por exemplo, embora o autor já tivesse publicado um artigo sobre a “Poesia Afro-Brasileira em São Paulo”, em 1943. A menção a Gilberto Freyre (1900-1987), por sua vez, se dá sobretudo em relação a Sobrados e Mucambos (1936), especialmente o capítulo sobre a “Ascensão do Bacharel e do Mulato”, que é interessante para a análise histórica das formas de ascensão social do período monárquico ao republicano na vida brasileira.
Quem são, então, os interlocutores privilegiados de Virgínia Bicudo ? É possível mencionar o impacto dos trabalhos dos sociólogos norte-americanos Robert Park (1864-1944), Everett Stonequist (1901-1979, Ellsworth Faris (1875-1953) e o do já mencionado Donald Pierson. Entretanto, deve-se notar também a presença de Gilberto Freyre e de Oracy Nogueira, seu colega na ELSP, que conduzia pesquisas sobre preconceito e discriminação em relação a negros em São Paulo, nos anos 1940. Assim, suas principais influências estão situadas, majoritariamente, numa bibliografia internacional, de fundadores e interlocutores da chamada Escola de Chicago, referências a partir das quais Virgínia Bicudo construiria seu plano de trabalho e suas hipóteses de pesquisa, com proposições metodológicas e analíticas que serão discutidas a seguir.
Em Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, a autora opta por pensar no registro da socialização do quotidiano das relações raciais, não privilegiando a trilha corrente das relações sociais estruturadas que os grupos sociais construíram nos processos da história sociopolítica brasileira e suas instituições. Sua reflexão está voltada aos processos educacionais e seus ambientes (familiares e escolares), e à socialização quotidiana ; aos constrangimentos das trajetórias pessoais e aos destinos sociais de seus entrevistados ; aos contatos estabelecidos pelos sujeitos na rua, na cidade, em interações privadas e públicas (nas casas de famílias, nos escritórios, nos cafés, cassinos, bailes, festas etc.) ; às estratégias afetivas e matrimoniais, visando fortalecer o grupo ou anulá-lo (neste sentido, os casamentos para escurecer ou branquear a raça são fenômenos privilegiados de estudo) ; às percepções acerca dos sentimentos de beleza, dos afetos, do sofrimento, de inferioridade ou igualdade ; aos bons e maus modos, públicos e privados, etc.
Virgínia Bicudo parte, assim, de uma esfera de análise micro sociológica para um âmbito macro, sem perder de vista o sujeito social. Uma de suas primeiras afirmações na obra argumenta que : “As atitudes sociais expressam o aspecto subjetivo da cultura e conduzem ao conhecimento das condições sociais que concorreram para sua formação” (Bicudo 2010 : 63). Pensando com as proposições de Robert Park, a autora considera que “as mudanças sociais começam com as mudanças nas atitudes condicionadas pelos indivíduos, operando-se posteriormente mudanças nas instituições e nos ‘mores’” (Bicudo 2010 : 64), ou seja, nos padrões de comportamento moralmente impostos em sociedade.
Nessas duas afirmações estão contidos muitos dos elementos norteadores de sua pesquisa. Ao refletir sobre as atitudes, Virgínia Bicudo pensa ao mesmo tempo a construção do sujeito social e do indivíduo. A pessoa entrevistada, muitas vezes, possui a autopercepção de estar à parte de seu grupo social ou de querer dele se distanciar (especialmente entre os estratos sociais inferiores, mas também entre os mais graduados). Entretanto, na correlação entre atitude e mudança social, a pesquisadora suscita, sem afirmar explicitamente, a possibilidade de que, com a análise das construções sociais das atitudes individuais, seria possível pensar em mudanças sociais mais amplas. O uso de entrevistas conduzidas com trinta indivíduos na cidade de São Paulo é estruturante do trabalho ; ela deixa o sujeito social falar – o que não significa lhe dar voz, pois este já a possui – para que enuncie, mais ou menos claramente, a construção social da qual faz parte.
Essas entrevistas encenam outro registro importante, dando ao estudo uma dimensão analítico-comparativa distintiva. A autora situa os pretos e mulatos nos estratos sociais inferiores e intermediários, além de contemplar aqueles organizados em torno da Associação de Negros Brasileiros – nome que ela alterou para não explicitar que se tratava da Frente Negra Brasileira (1931-1937), principal organização nacional negra no país naquele momento. Com isso, consegue expor um panorama sobre a situação social dos descendentes de indivíduos escravizados, os filhos e netos dos últimos cativos, pouco mais de meio século depois do fim da abolição da escravidão no país (1888). Os entrevistados são nomeados como “casos” e numerados progressivamente. É interessante notar que os casos referentes aos “pretos de classes sociais intermediárias” (termos empregados pela autora) ocupam a maior parte das páginas do trabalho, como grandes narrativas do processo de conscientização do negro acerca da necessidade (e dos perigos) de lutar contra o problema racial ; o mesmo pode ser dito a respeito dos casos dos “mulatos de classe social intermediária”. Quanto mais combativos esses grupos – cujos dilemas e trajetórias truncadas e limitadas são vividos objetivamente –, maior a reação discriminatória e a percepção do preconceito.
Revela-se nos casos examinados o drama do ajustamento do negro e do mestiço à nova ordem social no Brasil pós-Abolição. Vivendo esse drama no quotidiano, socializado nos contatos entre os indivíduos, negros e mulatos estruturam suas percepções sobre o futuro de seu grupo social e sobre o seu próprio destino pessoal. Para alguns, a saída será admitir o aspecto socialmente imposto da inferioridade e tentar burlá-la, assumindo padrões atribuídos pelos brancos para os negros ; outros optarão pelo isolamento dos contatos sociais, seja entre pretos, seja entre mestiços e brancos, por manter aspectos de rivalidade com os primeiros e hostilidade com os segundos. Haverá, ainda, aqueles que adotam estratégias dolorosas de ajustamento, como a autonegação, o constrangimento e controle social que normatizam as possibilidades de relações afetivas, matrimoniais e de descendência ; ou os que partilham a percepção de que, por mais que se esforcem e lutem, objetivando a integração, negros e mulatos jamais seriam iguais ao branco, ainda que possuam diplomas e formação equivalentes, e sejam aparentemente portadores dos mesmos direitos sociais. Disso resultam diversas soluções, particulares ou coletivas, permeadas por angústia, depressão, alcoolismo, morte, indignação, revolta, associativismo, protesto e luta social.
As entrevistas, ao dotarem os sujeitos de vida e concretude, constituem o ponto alto do trabalho de Virgínia Bicudo. Demonstram que os indivíduos pretos e mulatos possuem lugares e identidades preestabelecidos e fixados no espaço social, mas que, ao tomarem consciência do fato, tornam-se paradoxalmente sujeitos sociais fora de lugar. A nova ordem social, tal como se apresenta, não os absorve em massa e nem lhes é satisfatória individualmente. As atitudes que empregam para se ajustar a ela possuem eficácias limitadas, tanto individual quanto coletivamente.
Outro aspecto interessante do trabalho da autora é a sua preocupação em procurar pretos e mulatos nos estratos sociais intermediários, evidenciando suas posições de chefia, seus diplomas de cursos superiores, bem como o papel que a trajetória escolar até o nível médio (ou em nível superior, nas profissões liberais dos dentistas e advogados, por exemplo) e o funcionalismo público possuíram na ascensão social desse grupo no Brasil. Trata-se de uma constatação analítica de suma importância para os estudos posteriores sobre as relações raciais no Brasil, pois permitiu um caminho alternativo à estereotipia comum da trajetória dos negros brasileiros (como subalternizados, nas camadas mais inferiores dos estratos sociais), abrindo trilhas novas para a discussão das organizações sociais no meio negro, protagonizadas pelos indivíduos desses estratos. Tal discussão se fará presente em estudos como A Integração do negro na sociedade de classes de Florestan Fernandes (1964), Lugar de negro, de Lélia González e Carlos Hasenbalg (1982) ou ainda em Negros e Brancos em São Paulo, de George Reid Andrews (1988), que explicitam, todos eles, como a formação de uma classe média negra, assalariada (seja no funcionalismo público ou exercendo profissões liberais), com formação universitária e organizada em associações políticas e culturais, cria um cenário distintivo para a luta contra o racismo no Brasil, na segunda metade do século XX.
O uso de entrevistas e o pioneirismo analítico sobre o associativismo negro
Observo que a autora não menciona os nomes verdadeiros de seus entrevistados, tampouco da Associação de Negros Brasileiros e de seu jornal, Os Descendentes de Palmares. Sobre estes, afirma em nota de rodapé : “Por razões óbvias, o nome da Associação e o título do mensário são fictícios” (Bicudo 2010 : 124). De uma perspectiva técnica e política, ela estava correta em não mencionar o nome de seus entrevistados, em função da relação ética entre pesquisador e pesquisado, e dos impactos das opiniões emitidas e dos constrangimentos possíveis, em um período em que estava vigente o Estado Novo no Brasil, entre 1937-1945, autoritário e persecutório. Se isso é verdade, os registros das trajetórias negras e mestiças no Brasil são, em geral, extremamente lacunares. E os pesquisadores conhecem as dificuldades para conseguir referências a nomes completos, acessos a arquivos, estudos familiares e citações biobibliográficas corretas sobre sujeitos sociais negros até os anos 1960.
Virgínia Leone Bicudo construiu um mapa formidável de indivíduos, jovens, maduros e idosos. Mas quais os seus nomes ? Quem foram eles ? Que destinos conheceram seus descendentes ? Que decorrências tiveram suas atitudes de ajustamento à nova ordem social criada após 1988 ? Em relação à associação mencionada e ao seu jornal, o estudo da autora possui um mérito adicional que precisa ser enunciado e reconhecido. Virgínia Leone Bicudo é, salvo melhor juízo, a primeira pesquisadora a evidenciar uma associação reivindicativa de negros e seu jornal em São Paulo como temas legítimos de investigação sociológica. Voltamos a insistir : informações sobre estes sujeitos são preciosas para compreender a experiência social da população afro-brasileira no período pós-abolição.
A pesquisadora manteve contato, entrevistou e estudou com detalhes os militantes da Frente Negra Brasileira [FNB] e seu periódico A Voz da Raça. Isso confere à autora, infelizmente de maneira póstuma, o mérito de ter valorizado e discutido, em primeira mão, uma das mais importantes associações negras paulistas e brasileiras da primeira metade do século XX. Conferiu importância ao ativismo e associativismo negro paulista, evidenciando o surgimento de um sujeito negro reivindicativo e questionador, que ocupa os espaços do centro da cidade e que não quer ser lembrado como “o preto submisso”. Este negro de novo tipo que o estudo destaca foi bastante criticado pelo intelectual paulistano Paulo Junqueira Duarte (1899-1984), em 16 e 17 de abril de 1947, em seus artigos conservadores escritos para o jornal O Estado de S. Paulo e intitulados “Negros do Brasil”. Nele, o autor se queixava que os negros que militavam em associações políticas inventavam algo inexistente no Brasil : o preconceito racial. Eram assim mal-educados, acintosos e em nada lembravam as memórias daqueles negros dóceis e pacientes do período da escravidão. Era como se, de um lado, os negros brasileiros estivessem importando um problema ausente no Brasil ; de outro, o autor culpava o período autoritário do Estado Novo como o responsável pela violência entre negros e brancos na sociedade brasileira.
É interessante, nesse sentido, realizar uma nota sobre este intelectual e sobre um aspecto contraditório desta história. Paulo Duarte – que, durante seu exílio em Paris em 1938, teve contato com os estudos de antropologia de Paul Rivet (1876-1958) no Musée de l’Homme – seria, anos depois, um dos entusiastas da pesquisa sobre relações raciais no Brasil patrocinada pela UNESCO, que em sua vertente paulista denunciou a existência do preconceito racial no Brasil. E publicaria na revista Anhembi, por ele criada em 1950 para celebrar a “cultura moderna brasileira” (na seção dedicada a relatórios da pesquisa), um estudo de Virgínia Bicudo intitulado “Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas” (1953), outro fruto da pesquisa que deu origem ao seu mestrado.
As qualidades do artigo de 1953 suscitam, ainda, outras questões. Em primeiro lugar, refletindo sobre as atitudes de pretos e mulatos entre 1941 e 1944, Virgínia Leone Bicudo discute ao mesmo tempo o indivíduo e o sujeito social, atenta ao âmbito psicológico e ao das relações sociais. Se no título da dissertação de mestrado de 1945 e do livro posterior aparecem explicitamente o mulato e o preto como figuras fundamentais de análise, vale dizer que o branco é um personagem oculto, mas um ausente extremamente presente. Afinal, discutir as atitudes de pretos e mulatos por meio de uma reflexão marcada pela ideia de mudança social, significa também discutir o branco, suas atitudes e pensar em mudá-las. A opção analítica e pragmática da autora diz respeito ainda às instituições e aos processos sociais que brancos, negros e mestiços forjaram no período da passagem do período escravista ao do trabalho livre no Brasil, entre finais do século XIX e início do século XX.
Decorrência do estudo : as atitudes do branco como sujeito social
No estudo de Virgínia Bicudo, constata-se que foi o branco quem escravizou o negro, quem o classificou como social e racialmente inferior, quem lhe conferiu e o fez assumir uma série de estereótipos negativos. Foi ele quem orquestrou uma abolição do regime escravista que não garantiu direitos de fato iguais para todos e quem, na nova ordem social instaurada pelo trabalho livre, impôs aos negros lugares delimitados cultural, social e economicamente. Estas conclusões seriam exploradas posteriormente em estudos voltados à crítica ao processo de redefinição das relações econômicas e sociais no Brasil República (após 1889), sobretudo aqueles dedicados às armadilhas de um imaginário sobre integração racial.
Mostra Virgínia Bicudo, em pelo menos dois momentos da obra, como pretos e mestiços têm de enfrentar categorias forjadas para eles pelo branco, têm de lidar com os destinos para eles traçados e operar, social e mentalmente, com processos e imagens que lhes foram impostas. O ponto fica claro em seu interesse pela infância, que a permite fazer convergir sua formação socioantropológica com reflexões de caráter psicológico. Em suas palavras : “Com mentalidade formada pelo branco, o preto desenvolve o auto-ideal de branco, que não se expressa abertamente no desejo de ser branco” (Bicudo 2010 : 97). Adiante, continua : “o preto e o mulato têm concepção desfavorável de si mesmos, como reflexo da concepção do branco para eles, dada a influência dos contatos primários, principalmente da infância” (Bicudo 2010 : 159-160). Tais processos geram, para o negro, atitudes positivas ou negativas, o que leva a que ele precise forjar seus líderes, seus intelectuais, escritores e associações, para que estes assumam compromissos em relação ao grupo social a que pertencem.
Ainda sobre o caráter pioneiro do trabalho de Virgínia Bicudo, é importante lembrar que, em 1952, o psicanalista e revolucionário martinicano Frantz Fanon (1925-1961) publicaria seu clássico Peau noire, masque blanc –, resultado de sua tese de doutorado em medicina, rejeitada pela Universidade de Lyon – sobre o racismo produzido pelo colonialismo e que se manifesta, segundo ele, social e psicologicamente. Arriscaria afirmar que Virgínia Bicudo antecipa em quase uma década a discussão fundamental acerca da imbricação entre processos sociais e processos mentais, um dos grandes problemas de Fanon. Na obra clássica de 1952, como sabido, o autor discutirá os processos de interação entre brancos e negros, nos mais diversos níveis psicossociais, bem como o problema da colonização. Este é um tema que seria retomado em Les Damnés de la terre (1961), com focos colocados na questão da violência revolucionária, no racismo como produtor de cultura, na necessidade de se criar uma cultura antirracista e nas tarefas do intelectual colonizado. Não é preciso reaver aqui as consequências do pensamento de Fanon para uma reflexão sobre as revoltas de libertação nacionais africanas e o modo como colaborou decisivamente com a Revolução Argelina. Entretanto, é interessante notar as convergências de suas críticas sobre o legado colonial em diferentes contextos.
Todas essas observações nos levam a indagar quais teriam, ou poderiam ter sido, os impactos e usos da análise de Bicudo se o seu trabalho tivesse circulado antes e mais amplamente. Qual teria sido também a recepção dele pelos militantes da associação que estudou, a Frente Negra Brasileira ? E ainda, o que os antigos membros da Frente Negra Brasileira teriam pensado e discutido acerca de Estudos de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo ?
Estas são questões impossíveis de serem respondidas. Entretanto, especular sobre os impactos (potenciais) do trabalho de Bicudo, nesta perspectiva comparada, coloca em destaque o esquecimento de sua trajetória e obra, bem como a relevância da crítica historiográfica aqui delineada sobre estas formas de silenciamento, marcadas por gênero e raça, no contexto brasileiro. Afinal, imaginar essas possibilidades significa seguir algumas das pistas, ainda que lacunares, dessas redes de pessoas e ideias, das quais Virgínia Bicudo fez parte. Por exemplo, na Escola Livre de Sociologia e Política na qual se formou, também se encontrava o ativista e intelectual negro Raul Joviano do Amaral (1910-1988), antigo fundador da Frente Negra Brasileira, membro da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, amigo de militantes como José Correia Leite (1900-1989) e de pesquisadores como Roger Bastide. Amaral foi colaborador da pesquisa sobre relações raciais patrocinada pela UNESCO em São Paulo e autor do livro Os Pretos do Rosário de São Paulo, de 1951. Contemporâneo de Bicudo, é bastante plausível que ele tenha sido um dos entrevistados da autora. Diante disso, podemos indagar ainda que usos poderia ter tido o seu estudo para as gerações seguintes de pesquisadores negros e não negros, de intelectuais e militantes negros, considerando a importância das referências que faz a trabalhos e trajetórias de sujeitos negros ?
Reflexividade e auto-análise
Outro aspecto a comentar a partir desta leitura de uma obra tão pouco conhecida também se encontra na esfera das hipóteses e inferências, algumas delas indicadas no começo deste artigo. Virgínia Leone Bicudo foi uma intelectual mestiça, que refletiu sobre aspectos sociais, políticos e psicológicos das relações raciais no Brasil. Mas é possível indagar : que grau de reflexividade possui seu trabalho ? Não se trata de fazer um exercício de jogos de espelho, mas de perguntar como a sua própria trajetória intelectual posterior – quando passa a se dedicar mais de perto à psicanálise - confirma algumas das hipóteses que ela logrou formular acerca das atitudes de pretos e mulatos em São Paulo e suas formas de ajustamento à nova ordem social.
Lembremos que Bicudo possuía um diploma de curso superior e que, mesmo oriunda de uma camada social inferior, se encontrava, no momento da defesa da dissertação, numa posição intermediária : era funcionária pública na universidade. Poderíamos afirmar que a despeito das dificuldades que certamente enfrentou – considerando as maneiras como gênero e raça constituíam experiências sociais materializadas em constrangimentos nada insignificantes na formação acadêmica paulistana das primeiras décadas do século passado –, ela estava integrada entre seus pares. Por que não foi então reconhecida ? Ou por que foi tão pouco reconhecida nas ciências sociais brasileiras ? Por que optou, ou teve de optar, por se realizar profissionalmente em área diversa da qual se formou e na qual investiu seus interesses iniciais ?
Sobre o problema da reflexividade, a própria Virgínia Bicudo é incisiva, como fica claro na entrevista concedida a Chor Maio, parcialmente transcrita por ocasião da publicação do livro da autora : “Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque, se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nível sociocultural” (Bicudo 2010 : 23). Em seu trabalho, Virgínia Leone Bicudo discute se a mudanças nas atitudes individuais poderiam provocar alterações nas instituições e padrões sociais. Mudando o indivíduo, muda-se o coletivo. Há aí uma aposta interessante e democrática na dimensão cultural e na socialização do sujeito.
{}Além do livro Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo (acompanhado das notas biográficas produzidas por Marcos Chor Maio), os melhores dados sobre Virgínia Bicudo, sua trajetória e pensamento, podem ser encontrados na tese da antropóloga Janaína Gomes Damaceno, Os segredos de Virgínia : estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955), de 2013. Nela, a pesquisadora busca reconstituir um campo de estudos no qual é possível compreender a trajetória da autora, em seu contexto social e político, discutindo, de maneira aprofundada questões que aponto neste texto, e acompanhando também o período em que Bicudo “muda” de área, passando a trabalhar com psicanálise e com a divulgação do campo psicanalítico no Brasil.
Virgínia Leone Bicudo e a Psicanálise no Brasil
No período em que realizava seu mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política, Virgínia Bicudo teve contato com estudiosos da psicologia social e da psicanálise. Foi aluna e paciente da pioneira dos estudos psicanalíticos no Brasil, Adelheid Lucy Koch (1896-1980) e, em 1945, ano da defesa do mestrado, tornou-se membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Observemos que como profissional teve, dentre seus pacientes, membros da burguesia paulistana, alguns inclusive vinculados ao importante jornal Folha de S. Paulo. O que certamente permitiu que assinasse, nos anos 1950, uma coluna neste jornal com o título “Nosso mundo mental”, em que discutia princípios da psicanálise e respondia a cartas de leitoras e leitores. Todos estes fatores permitem vislumbrar sua rede de interlocuções e compreender as guinadas em sua trajetória intelectual.
Segundo Damaceno, levando em consideração as dificuldades de estabelecimento do campo psicanalítico no Brasil em geral, e em São Paulo em particular, aliado à dupla discriminação sofrida por Virgínia Bicudo por ser mulher e negra, é possível compreender por que ela foi acusada de charlatanismo em diferentes momentos em sua prática psicanalítica. De um lado, tratava-se de acusações sobre a impossibilidade de cura pela psicanálise (que não seria “científica” em oposição ao conhecimento médico psiquiátrico) ; de outro, tendo em vista a classe social da clientela, este seria um tratamento voltado para uma elite econômica fútil. Ao atuar para popularizar práticas e ideias psicanalíticas nos meios de comunicação de massa, em programas de rádio e jornais, Virgínia Bicudo contribuíu para o combate desses argumentos. Nosso mundo mental, que reuniu suas colunas no jornal, foi publicado em 1956 pelo Instituto Brasileiro de Difusão Cultural, antecipando uma mudança de cenário. Nos anos 1960 e 1970, paulatinamente, ela adquire respeitabilidade nesse campo, também em função de sua atuação decisiva para difusão de ideias sobre psicanálise no país.
A autora não retornaria aos estudos de sociologia ou às pesquisas sobre relações raciais no Brasil. Mas, a despeito disso, ao longo da última década de sua vida, seus trabalhos de investigação em ciências sociais, bem como sua trajetória intelectual de maneira mais ampla, foram reconhecidos e homenageados por novas pesquisadoras e novos pesquisadores nos domínios da sociologia e da antropologia. Além dos trabalhos já mencionados de Marcos Chor Maio e Janaína Damaceno, pesquisadores brasileiros como Deivison Faustino, Marcell Machado dos Santos, Fabiana Villas Boas e Natália Parolin têm dedicado análises ou pesquisas específicas à autora.
A importância da atuação de Virgínia Bicudo também vem sendo assinalada no âmbito institucional. Por exemplo, foi através de uma ação governamental do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que ela passou a ser reconhecida como uma das cientistas pioneiras no Brasil em suas áreas de atuação. Trata-se de um programa institucional que, atualmente, encontra-se em sua sétima edição, voltado para produção de verbetes biográficos e analíticos, online e impressos, sobre experiências de mulheres em diferentes campos científicos. Virgínia Bicudo encontra-se, desde a segunda edição do programa, biografada ao lado de nomes celebrados como Bertha Lutz (1894-1976, bióloga e ativista feminista), Niéde Guidon (1933-, arqueóloga), Carolina Bori (1924-2004, psicóloga), Elza Berquó (1928-, demógrafa), entre muitas outras intelectuais. Em 2004, a Sociedade Brasileira de Psicanálise também a elevou a uma das pioneiras da psicanálise no país, pelo seu trabalho de difusão e publicação em revistas nacionais e internacionais. Sintomaticamente, em homenagem a Virgínia Leone Bicudo, a biblioteca da entidade em São Paulo, em atividade desde 1977, recebeu seu nome.
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Santos, Marcell Machado dos, 2021. O mundo branco é um moinho : a sociologia das relações raciais em Virgínia Leone Bicudo. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Villas Boas, Fabiana & Natália Parolin, 2021. “Contribuições de Virgínia Leone Bicudo para o campo da saúde mental no Brasil : caminhos pela pesquisa, pela clínica e pela escola”, in Emiliano de Camargo David, Rachel Gouveia Passos, Deivison Mendes Faustino & Jeane Saskya Campos Tavares (orgs.), Racismo, subjetividade e saúde mental : o pioneirismo negro, São Paulo, Hucitec.
Resumo : O artigo apresenta a trajetória e obra da cientista social e psicanalista Virgínia Leone Bicudo (1910-2003). Discute as suas principais contribuições aos estudos das relações raciais no Brasil, na primeira metade do século XX, em diálogo com a bibliografia nacional e internacional de sua época. Destaca seu pioneirismo analítico nos estudos sobre o racismo, as atitudes discriminatórias e a reação a elas, praticadas por pretos, mestiços e brancos. Também analisa aspectos das consequências de suas análises, problemas de recepção e a reavaliação, no presente, dos estudos da autora, por pesquisadoras e pesquisadores dos estudos de relações raciais. Procura-se apresentar dados biográficos da autora para contextualizar aspectos importantes de sua entrada incomum, considerando a história brasileira, na vida universitária, nas Ciências Sociais e Psicanálise como campos de atuação. Em seguida, o artigo se detém sobre a principal obra de Bicudo e sua contribuição para a história das ciências sociais no Brasil, com destaque para os estudos sobre racismo e antirracismo. O diálogo que a autora estabeleceu com pesquisadores do tema no seu tempo é destacado, bem como a estratégia metodológica que ela adotou, entrevistando pioneiramente pessoas pretas e mestiças, ligadas diretamente ou não ao ativismo antirracistas entre os anos 1930 e 1940, para que fornecessem informações sobre as situações variadas de discriminação a que eram submetidas. Finalmente, é apresentado no texto algo que Virgínia Bicudo sugere sobre uma discussão a respeito de autorreflexividade entre a sua pesquisa e questões biográficas, bem como seu encaminhamento posterior para a Psicanálise como área de estudo e atuação, situando sua recepção e atualidade.