Relatório apresentado à FAPESP – janeiro de 1985 [1]
“Que todos aqueles de entre vós que lançarem os olhos sobre estas linhas, encantadores alunos, hoje colegas estimados, não sintam por mim qualquer rancor. Pensando em vós de acordo com o vosso costume, pelos vossos primeiros nomes tão barrocos para um ouvido europeu, mas cuja diversidade exprime o privilégio que os vossos pais ainda desfrutaram de poderem livremente escolher, entre todas as flores da humanidade, o viçoso ramo da vossa : Anita, Corina, Zenaide, Lavinia, Thaís, Gioconda, Gilda, Oneide, Lucilia, Zenith, Cecilia ; e vocês, Egon, Mario-Wagner, Nicanor, Ruy, Livio, James, Azor, Achiles, Décio, Euclides, Milton ; é sem ironia que evoco esse período balbuciante. Muito pelo contrário, pois com ele aprendi a lição : a da fragilidade das vantagens concedidas pelo tempo. Ao pensar no que era então a Europa, e naquilo que é hoje, aprendi, vendo-os fraquear em poucos anos um atraso intelectual que poderíamos pensar ser de várias décadas, como desaparecem e como nascem as sociedades ; e que essas grandes transformações da história que parecem resultantes, nos nossos livros, do concurso de forças anônimas que agem no coração das trevas, podem também ser realizadas, num claro instante, pela resolução viril dum punhado de crianças bem dotadas” (Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos) [2]
“Um punhado de crianças bem-dotadas...”
Nem tão crianças assim, de fato : o primeiro dos nomes masculinos mencionados, por exemplo, o do professor Egon Schaden [3], referia-se a um estudante até um pouco mais velho do que o professor. O que estava na infância era a universidade brasileira, lugar institucional que privilegiamos para traçar a trajetória da antropologia em nosso país e que, ao longo do nosso percurso, mostrou quão entrelaçada está a sua própria história, a da universidade brasileira, com a de outras instituições de ensino e pesquisa e com a vida política nacional. Lugar institucional, também, cujas regras de funcionamento se alteraram tanto num período de cerca de trinta anos que a princípio, das trevas de nossa ignorância, parecia que nem estávamos falando da mesma antropologia. Como, aliás, não estávamos, e certas palavras passaram a adquirir, para nós, o significado de codinomes através dos quais nossa comunicação era facilitada mas cuja crença em sua base empírica ficou para sempre abalada. Resultado extremamente salutar e até previsível teoricamente, em se tratando de uma tentativa, feita por antropólogos, de estudar a história da antropologia. É com essa cautela inicial a respeito dos termos aqui empregados, portanto, que é possível avaliar alguns dos resultados obtidos numa pesquisa não terminada.
Retomando a questão
Para aprofundar os levantamentos existentes a respeito da antropologia praticada no Brasil no período de 1930 a 1960 (e.g. Woortmann, 1972 ; Peirano, 1980 ; Velho, 1980 ; Durham, 1982 ; Melatti, 1984), temos dado ênfase às trajetórias individuais, situando-as em seu contexto institucional e teórico e estabelecendo as articulações existentes entre os trabalhos produzidos no país, em diferentes regiões, para avaliarmos as possibilidades de se pensar numa antropologia brasileira. Isto não implica em abandonar uma visão longitudinal do conjunto da produção nacional no campo da antropologia mas em tentar apanhar, a partir da incorporação de trabalhos anteriores, feita por essa produção naquele período, um momento importante da constituição desse campo como tal, seja na definição de seus praticantes seja pela possibilidade de uma produção sistemática de pesquisa, bem como da formação de pesquisadores, em quadros institucionais bem definidos e com uma certa autonomia em relação a outros campos, tanto no âmbito das ciências sociais como no de outras ciências. Não se trata aqui de incorrer no equívoco, já apontado por Wanderley Guilherme dos Santos (1978), de dizer que é somente a partir de 1930 que se “faz ciência” no Brasil : tampouco se trata de avaliar a produção antropológica apenas a partir da atuação institucional dos antropólogos, isto é, de sua ‘profissionalização’. Trata-se de analisar, a partir do testemunho dos que a viveram, uma história que, se certamente tem raízes nacionais, tem também fortes vinculações internacionais e que, se tem se caracterizado pela criatividade, informalidade e iniciativa individual de seus agentes, tem também sólidos suportes institucionais e regras definidas de atuação, o que tem contribuído para estabelecer com a precisão possível, um certo território antropológico brasileiro.
Na caracterização desse território é necessário, num primeiro momento, estabelecer tanto um mapa das instituições onde tem se dado a prática antropológica, e quem são seus agentes, quanto tentar apanhar as regras de seu convívio, desde que ele se torna importante na manutenção de um debate mais sistemático entre esses agentes ; num segundo momento, trata-se de tentar abstrair algumas características gerais da dinâmica da história no interior desse campo. Essas características ganham em nitidez, por sua vez, se forem colocadas no contexto mais amplo da história da antropologia na América Latina. É como se estivéssemos lidando com vários recortes superpostos de uma mesma história (que, apesar disso, nunca é a mesma) cuja configuração geral só seria possível apreender na medida em que nos distanciamos dela, colocando-a num quadro maior. Ponto por ponto, então, o caminho a percorrer para uma história da antropologia no Brasil poderia se estruturar da seguinte maneira.
Contexto institucional
Desde as expedições científicas promovidas pelo governo imperial (Braga, 1962 ; Schaden e Pereira, 1967), passando pela multiplicidade de jornais, revistas e associações, literárias ou científicas, criadas em nosso país ao longo de sua história, é possível anotar um afã de autoconhecimento por parte dos brasileiros ainda não suficientemente analisado. (Dois exemplos são particularmente pertinentes aqui, dado que seus autores são definidos ou se definem como antropólogos : Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre [4] e a série de televisão Brasileiros [5], produzido por Roberto da Matta [6]).
Duas características importantes a reter, nesta multiplicidade de atuações, são, por um lado (a ao contrário do que comumente se supõe) a sua extraordinária vitalidade e o grau de informação a respeito dos problemas contemporâneos que possuem os intelectuais nativos, mesmo nos rincões supostamente mais afastados dos centros políticos e econômicos do país, ainda que o alcance dessas atuações fosse muito reduzido em alguns casos ; e, por outro, a marcante influência dos poderes públicos nessa atuação, reforçando-a, cooptando-a ou, com maior frequência, combatendo-a. Num país de tradição patrimonialista lusitana, é importante sublinhar também, e desde muito cedo, a existência do intelectual-funcionário.
O suporte institucional da atuação intelectual não é, portanto, uma novidade do século vinte mas uma tradição bem estabelecida no contexto brasileiro, ainda que as instituições fossem de outro tipo, diferente do que conhecemos hoje. Uma primeira aglutinação, que nos interessa, dessa variedade institucional no cenário nacional se deu com a criação, em várias regiões do país, de museus – que não só passaram a abrigar as coleções materiais recolhidos por curiosos, funcionários em missões ou naturalistas, mas também a oferecer algum suporte institucional mais sistemático ao tipo de pesquisa que hoje é incorporado ao âmbito da antropologia. Uma análise da importância dessas instituições para o conhecimento nacional seria útil ; até agora só contamos com visões parciais (e.g. Castro Faria, 1942 ; Galvão, 1962 ; N. Figueiredo, Depoimento [7]). Essa importância não se esgotou no período anterior ao da criação das Faculdades de Filosofia, núcleos onde se constituíram os atuais departamentos de ciências sociais mas, muitas vezes acompanhou as novas instituições : ver o caso do Museu do Índio [8] (Museu do Indio, 1983), ou do Museu Paulista [9], por exemplo.
A importância das Faculdades de Filosofia para a institucionalização mais recente dos estudos em antropologia, bem como para a criação das universidades brasileiras, já tem sido suficientemente enfatizada na literatura ; ainda assim, nos falta uma boa análise da legislação, e suas constantes alterações, normativa da carreira docente, da pesquisa e da formação universitária – conteúdos de curso incluídos – exigida dos diplomados, bem como sobre a divisão que, ao longo do tempo, foi se operando nas áreas disciplinares das ciências sociais como um todo. Também enfatizado, mas sem uma análise correspondente, tem sido o papel das pós-graduações que se criaram no país de forma acelerada a partir do final da década de 60. A influência das fundações e agências financiadoras nacionais e internacionais, na orientação, reforço ou criação de determinadas linhas ou centros de pesquisa tampouco tem merecido uma atenção mais cuidadosa. (A pergunta “quem pagou as contas da antropologia no Brasil ?” recebe respostas parciais no depoimento do professor Donald Pierson e é objeto de estudo de uma das integrantes da equipe do projeto.)
Um último aspecto deste ponto diz respeito às instituições não diretamente vinculadas à Universidade, ainda que muitas vezes seus pesquisadores sejam também professores, instituições onde se formaram personagens importantes de toda uma geração, e cuja importância não pode ser esquecida : lembrar, por exemplo, o Departamento de Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo [10] (Funarte, 1983), o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais [11] (O. Nogueira, Depoimento ; W.G. dos Santos e E. Durham, Mesa Redonda [12]) ou o Centro Latino Americano de Pesquisas em Ciências Sociais. Embora o Instituto Universitário de pesquisas no Rio de Janeiro venha publicando, desde 1979, um competente e muito útil Índice de Ciências Sociais, muitas das publicações daqueles centros não estão ali presentes, caso, por exemplo, da Revista do Arquivo Municipal, particularmente importante para acompanhar a produção antropológica nacional no período que nos interessa.
Um mapeamento das instituições nas quais tem se desenvolvido o trabalho dos antropólogos brasileiros seria incompleto se não pensássemos na forma pela qual este trabalho, apesar de sua aparente dispersão e multiplicidade, tem se articulado ao longo dos anos. Aqui, um nítido marco na história da antropologia – mais importante a meu ver do que as ‘datas políticas’ 1930 ou 1964, tradicionalmente invocadas – é a criação da Associação Brasileira de Antropologia, em 1953. Não se trata de desconhecer a importância da Escola Livre de Sociologia e Política [13] (1933) ou da Universidade de São Paulo (1934) na formação de toda uma geração de antropólogos ou de desenfatizar o significado dos cursos mais recentes de pós-graduação no país mas é impossível desvincular a sua história da história da ABA. A criação da Associação assume o caráter de um indicador particularmente importante nesta história se pensarmos, primeiro, que uma antropologia tão pujante como a peruana (para só citar um exemplo) não conseguiu até hoje, apesar dos esforços de nossos colegas daquele país, organizar uma associação (Osterling, 1983) ; em segundo lugar, a razoável regularidade com que a ABA tem promovido reuniões nacionais aponta para a existência de possibilidade de uma constante atualização a respeito do trabalho de docência e pesquisa por parte dos antropólogos brasileiros (se esta possibilidade é efetivamente aproveitada por uma grande parte dos antropólogos, é uma outra questão). Em terceiro lugar a própria existência da ABA parece sinalizar a consciência, criada a partir de um certo momento, da existência daquele ‘território antropológico’ antes mencionada : seja por avivar uma certa tradição histórica, seja por estimular um certo convívio nacional, criando ao mesmo tempo as suas regras, essas reuniões expressam ao longo de trinta anos, o reconhecimento da importância de cada trabalho, de docência ou pesquisa, realizado no país, para todos os outros. Infelizmente, e ao contrário de suas reuniões, os Anais da ABA são bissextos, mas uma análise deles, e um levantamento cuidadoso das revistas utilizadas pelos antropólogos para veicular a sua produção, certamente nos ajudaria a repensar a tão difundida noção de fragmentação da antropologia brasileira. (E. Schaden, Depoimento ; a indexação das revistas Anhembi, Revista do Museu Paulista e da Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, está feita ou em curso pelos integrantes da equipe do projeto). Uma outra possibilidade de refletir sobre esta (aparente) característica da antropologia praticada no país emerge da discussão do ponto seguinte.
Contexto teórico
Deixando de lado as tradições evolucionista e positivista, que orientaram boa parte dos trabalhos produzidos no e sobre o Brasil de meados do século passado até os inícios deste, tradição teórica que, no caso específico da antropologia, menos do que contestada, foi retoricamente alterada para ser incorporada a esquemas teóricos imediatamente subsequentes (Corrêa, 1982), poderíamos pensar em pelo menos duas ‘orientações teóricas’ que tiveram um papel bastante importante na direção tomada pela pesquisa no campo antropológico no período de 1930 a 1960 : a ‘aculturação’ e a ‘comunidade’, codinomes que, frequentemente, aproximam, mais do que separam, estudiosos de temas frequentemente invocados como orientadores de pesquisa antropológica da época (relações raciais ; grupos indígenas ; populações rurais, entre outros).
A vantagem de pensar nestes termos (ao invés de utilizar o tradicional recurso de remeter a pesquisa antropológica às três grandes correntes do funcionalismo, do estruturalismo e do marxismo) é de, primeiro, deslocar a ênfase de uma produção aparentemente dispersa e heterogênea, fundamentada embora nos mesmos autores – fontes de inspiração [–], para um conjunto que, visto do ângulo de sua pertinência ao contexto latino-americano, apresenta uma certa unidade de sentido e, em segundo lugar, de incorporar à análise o contexto sócio-político, mais frequentemente invocado retoricamente do que utilizado como uma possibilidade explicativa. Para compreender a ruptura teórica que seguiu à utilização daquelas orientações, tanto no contexto interno da antropologia brasileira quanto em sua contextualização no panorama latino-americano, é preciso uma breve referência a algumas ironias da história. Egon Schaden nos deu uma boa pista para uma dessas ironias, ao contar, em seu depoimento, a persistência com que tentava ensinar aos seus alunos os rudimentos da antropologia física, dadas as resistências dos estudantes que, segundo ele, tinham ido estudar ciências sociais “para transformar o mundo”.
Pelo menos uma transformação importante, no mundo das ciências sociais, ocorreu durante o período que se costuma caracterizar como o mais nefasto para a produção intelectual brasileira, os anos de 1968 a 1975 (incluindo-se aí a ironia de que foi neste período, também, que a ‘produção de teses’ – um indicador importante nos levantamentos das agências financiadoras – mais do que duplicou) : foi nesse período que muitos jovens, produtos da efervescência política anterior, violentamente reprimida no meio estudantil, saíram do país para fazer estudos pós-graduados ou, quando ficaram, nos programas de pós-graduação criados na década de 60, passaram a estudar justamente aqueles temas que não podiam ser tratados de outra maneira, de certa forma preparando uma infraestrutura do conhecimento de certas ‘áreas sensíveis’ da realidade nacional que só hoje estão plenamente debatidas. Aqui, é importante observar também contribuições de outras disciplinas, como da ‘nova história’, enfatizando o papel de agentes tradicionalmente excluídos da história e que casava-se muito bem com o relevo sempre atribuído pelos antropólogos às categorias sociais definidas como ‘marginais’ ou ‘desviantes’, particularmente visíveis nas concentrações urbanas da década de 70, como já o tinham sido antes, nas décadas de 40 ou 50, pelo menos em São Paulo, no Rio de Janeiro e Salvador – ainda que naquela época os parâmetros analíticos dessas categorias fossem outros.
Foi nesse mesmo período também que alguns professores de instituições centrais para a história das ciências sociais em geral e impedidos de continuar seu trabalho no âmbito acadêmico, perambularam por vários centros intelectuais prestigiados da América Latina, dos Estados Unidos ou da Europa, tornando-se conhecidos, recebendo a influência correspondente e retornando para exercerem esta influência em seu país : Florestan Fernandes [14] e Fernando Henrique Cardoso [15] são exemplos mais óbvios, mas poderiam ser multiplicados. Foi ainda nesse período que ocorreu um florescimento – que seria possível comparar com o acontecimento na Colômbia, na década de 50, quando ‘La Violencia’ propiciou um surto da ‘antropologia missionera’ – não só da atividade, mas também da reflexão sobre a importância da religião, particularmente entre os grupos mais duramente atingidos pela política econômica dos governos ‘revolucionários’ brasileiros. Claro que todos esses pesquisadores sofreram, em graus variados, a influência dos ares de seu tempo, estudando, com maior ou menor afinco, as propostas do estruturalismo francês, entrando no debate marxista contemporâneo, pondo-se ao corrente dos estudos de antropologia da escola de Manchester, etc., influências que, no entanto, deveriam ser analisadas também no contexto da situação sociopolítica em que seriam postas em prática.
Esta importante transformação sofrida pelas ciências sociais no país como um todo, sob o impacto de mudanças estruturais da sociedade brasileira, além de, de certa maneira, iluminar o período imediatamente anterior, poderia ser analisada também como o desenvolvimento de um processo de abertura para o mundo latino-americano cujo início talvez pudesse ser observado a partir de um certo aguçamento crítico dos pesquisadores brasileiros, principalmente em relação aos seus irmãos do norte. Não é por acaso que tenha sido num seminário sobre as ciências sociais na América Latina, realizado no Rio de Janeiro depois de 1964 que Florestan Fernandes afirmou : “O cientista social latino-americano não respondeu, apenas, aos imperativos da imitação social. Ele tentou construir as ciências sociais em bases que correspondem, historicamente, ao modo pelo qual a ciência pode ser implantada e desenvolvida em seus países e estes, por sua vez, incorporados às tendências da civilização moderna. Deveria o cientista social estrangeiro, especialmente quando se considera ou é um ‘americanista’, voltar as costas para esta dimensão da realidade ?” (Fernandes, 1966 : 126). Era um momento em que ainda se podia escrever civilização moderna sem aspas e em que os americanistas ainda não tinham sido sucedidos pelos brasilianistas. No mesmo ano, E. Durham afirmava, discutindo os problemas de uma ‘antropologia aplicada’, que “a própria evolução das relações entre as sociedades ocidentais e os chamados povos primitivos (ou nações subdesenvolvidas) tem forçado a antropologia a examinar problemas relativos à aplicação do conhecimento científico na medida em que o conhecimento antropológico passa a adquirir implicações políticas”. (Durham, 1966 : 117, ênfase adicional). Também se podia falar, ainda, em subdesenvolvimento sem aspas.
Tradições mais antigas à parte, até esse momento (meados dos anos 60), as ciências sociais no Brasil tinham se desenvolvido seguindo duas linhas mestras : ou na direção das grandes sínteses históricas, produzidas por talentos individuais como os de O. Vianna [16], S.B. de Holanda [17] ou G. Freyre, ou em torno de projetos de pesquisa coletivos, nos quais se dimensionavam os ‘grandes problemas nacionais’ : o negro, o índio, ou as populações rurais em transição para o mundo urbano. Talvez seja verdade que a antropologia não possuía, então, “instrumentos teóricos que lhe permitissem substituir o funcionalismo na reflexão sobre as questões políticas e sociais que polarizavam todas as atenções” (Durham, 1982 : 161) mas, como disciplina, ela já tinha uma razoável autonomia e tinha superado, também, um período de transição entre as pesquisas pioneiras sobre relações afro-brasileiras ou os grupos indígenas, cujo efeito da reiteração de determinadas ‘verdades estabelecidas’ começava, de fato, a ser posto em questão pelos antropólogos formados nas escolas paulistas. Dois epígonos daquelas tradições mais antigas saem de cena neste período : Arthur Ramos [18] morreu em 1949 sem ter visto, talvez felizmente para ele, o resultado de suas gestões para empreender uma grande pesquisa sobre as relações raciais no Brasil (T. Azevedo e F. Fernandes, Depoimentos) ; Roquette-Pinto [19], falecido em 1954, tampouco pode apreciar o desenvolvimento subsequente dos projetos sobre grupos indígenas que o museu nacional iria liderar nos anos seguintes (Cardoso de Oliveira, Depoimento).
A partir da década de 40, pelo menos três nomes que tinham sido importantes para a institucionalização da antropologia em outros países latino-americanos, passaram a sê-lo também em relação à brasileira. P. Rivet [20], E. Willems [21] e A. Métraux [22] indicam o início de uma exploração mais sistemática de questões que se eram importantes aqui, tinham também uma ressonância continental e que seriam como que enfeixadas pelas rubricas da ‘aculturação’ e da ‘comunidade’. Foi o início de uma época de projetos ambiciosos de análise da realidade nacional cuja marca nítida, por contraste com os trabalhos individuais anteriores, era o de serem realizados em equipe, financiados e teoricamente bem definidos. Os financiamentos tinham origem nas mesmas fontes que financiavam a pesquisa antropológica no Chile, na Colômbia, no Peru e no México : a Smithsonian Institution – com os seus Institutos de Antropologia na América Latina (D. Pierson, Depoimento ; Wagley, 1964), a Universidade de Columbia, a de Chicago, ou a Unesco.
Não ocorreu, claro, o desaparecimento dos pesquisadores isolados, mas mesmo os seus trabalhos sofreram a influência decisiva destes projetos, e com maior ou menor ênfase, utilizaram os mesmos recursos teóricos. Em relação ao contexto latino-americano, a grande diferença entre a produção da pesquisa brasileira deste momento e a realizada em outros países estava em que, lá, a análise das populações indígenas assumia o primeiro plano enquanto que aqui foram inicialmente as relações afro-brasileiras que ocuparam este lugar. ‘Americanista’, até à década de 60, era quase sinônimo de pesquisador da América hispânica – e a América hispânica era indígena aos seus olhos. As ‘comunidades’ eram portanto comunidades ‘indo-americanas’ e a aculturação era a dos descendentes dos mais antigos habitantes das Américas em contato com a ‘civilização branca-européia’ – situação distinta da brasileira, onde as comunidades era localidades rurais, em sua maioria, e aculturação era a dos descendentes dos escravos africanos ou a da segunda e terceira geração dos imigrantes europeus no cenário nacional.
É curioso que a proliferação das sociedades indigenistas na América Latina, a partir de 1940 – ano do I Congresso Indigenista Interamericano no México – pode ter tido o efeito secundário de reforçar a noção de Bolivar, retomada por Mariátegui, de uma “pátria americana” : dado que os parâmetros de análise, e boa parte dos analistas, vinham de fora, era como se as populações indígenas da América Latina formassem um único e vasto território, definido mais em termos arqueológicos do que antropológicos e fornecessem o substrato dos territórios nacionais que seriam analisados com ênfase apenas mais adiante. Assim, não é de estranhar que homens como Rivet, Métraux ou Baldus [23] cruzassem fronteiras com tanta facilidade naquele momento.
Mais curioso ainda é o fato de que, no Brasil, a atuação dos sucessores dos americanistas parece ter contribuído para a continuação de uma espécie de “colonialismo interno” (para usar expressão de Anísio Teixeira, depois retomada por brasileiros e mexicanos) posto em prática pelos intelectuais nativos desde o final do século passado, contribuindo assim seja para a popularização da ideia da existência de “dois Brasis”, seja para marcar a nossa singularidade, por contraste, no contexto latino-americano. De certa maneira, o “problema do negro” tradicionalmente definido como marco inaugural da história da antropologia brasileira, foi realocado em cena em outros termos mas ainda figurando como sinal diacrítico nacional. A importância da presença no Brasil, na década de 40 a 50 de professores-pesquisadores como Roger Bastide, Charles Wagley e Donald Pierson, por exemplo, está, portanto, tanto nesta associação de orientações teóricas “modernas” com tradições bem estabelecidas na visão dos intelectuais nacionais sobre o país, quanto na mais comumente reconhecida influência que eles exerceram na formação de pesquisadores da geração seguinte de antropólogos e no fortalecimento [–] em alguns casos, na criação – de lugares institucionais para o desenvolvimento dessas pesquisas.
O depoimento de Thales de Azevedo a respeito da trajetória do projeto Universidade de Columbia – Estado da Bahia é exemplar neste sentido e mostra que, se Charles Wagley e sua equipe, tinham seus próprios interesses de pesquisa e uma orientação teórica definida antes de se instalarem em Salvador, lá encontraram, tanto em termos de política localmente desenvolvida por Anísio Teixeira [24] e Thales de Azevedo, quanto em termos amplos de “visão de mundo”, um terreno fértil a compartilhar. Algo semelhante ocorreu na atuação de Roger Bastide, Donald Pierson e Emilio Willems em São Paulo. Essa experiência de “contato cultural”, para usar uma noção corrente na época, foi de certa forma cristalizada e ampliada no Rio de Janeiro, onde, na década seguinte (50-60) se encontraram, dirigindo a ‘política antropológica’ e formando novos pesquisadores, participantes daqueles grandes projetos da década de 40-50 ou eles próprios tendo se formado sob sua influência : Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro [25], Roberto Cardoso de Oliveira [26] (Depoimento), Oracy Nogueira [27] (Depoimento), entre outros. Tanto a formação de um ‘território antropológico’ como de pontos de apoio institucional – não apenas na Universidade mas incluindo-se aí a decisiva influência de certos Centros de pesquisa e de agências financiadoras nacionais – tornou-se possível portanto pela articulação nacional de interesses políticos, acadêmicos e teóricos. Neste processo, certas instituições e seus agentes foram deixando de ter a importância que tiveram em períodos anteriores, certos temas passaram a predominar, outros foram abandonados, algumas noções deixaram de ser invocadas como explicativas, passando a assumir caráter descritivo. Mas a influência teórica aqui resumida nos termos “comunidade” e “aculturação” foi decisiva para a história da antropologia no país, no período, e o impacto causado pelos projetos de pesquisa – particularmente financiados pela Unesco e os estudos de comunidade coordenados por D. Pierson, sobre o Vale do São Francisco e por C. Wagley na Bahia – foi duradouro.
À guisa de conclusão
Este, é claro, é um perfil bastante incompleto da trajetória da antropologia no país – mas, trabalhando neste nível de generalização, é o que é possível estabelecer no momento : pontos sobre os quais se deverá apoiar a análise, ainda em andamento, dos depoimentos já obtidos, do material bibliográfico levantado e de entrevistas registradas durante o ano de 1984 são extremamente sugestivas de muitas outras pistas a serem exploradas, o que esperamos fazer no devido tempo. A orientação geral do projeto, no entanto, está aqui esboçada : sem levar em conta as continuidades e rupturas de um processo mais amplo e que ultrapassa biografias individuais e os levantamentos institucionais, será impossível obter uma história da constituição da antropologia como uma disciplina das ciências sociais no Brasil. E sem levar em conta o contexto internacional, imbricações com ele, será difícil ultrapassar o nível meramente narrativo a respeito das ‘influências’ sofridas pelos antropólogos nativos. O objetivo inicial – obter uma resposta à pergunta de se, além de uma antropologia feita no Brasil, existe uma antropologia brasileira – dependerá do sucesso em prosseguir nas investigações, dentro do programa aqui traçado, já com o apoio de um conjunto de informações infinitamente mais amplo do que até agora disponível aos pesquisadores nacionais.
Referências Bibliográficas
Braga, R. 1962. História da Comissão Científica de exploração. Ceará, Imprensa Universitária.
Castro Faria, L. 1942. “A antropologia no Brasil e a tradição do Museu Nacional”, Revista do Brasil, 5 (52).
Corrêa, M. 1982. “As ilusões da liberdade : a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil”, mimeo, FFLCH-USP, SP.
Durham, E. R. 1966. “Problemas atuais de antropologia aplicada”, América Latina, January-March.
Durham, E. R. 1982. “Os problemas atuais da pesquisa antropológica no Brasil (antropologia social e cultural)”, Revista de Antropologia (25), São Paulo.
Fernandes, F. 1966. “As ciências sociais na América Latina” em Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, As Ciências Sociais na América Latina, Difusão Européia do Livro, São Paulo.
E. Galvão, 1962. Guia das Exposições. Belém, Museu Paraense E. Goeldi.
Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1983. Mário de Andrade e a Sociedade de Etnografia e Folclore, 1936-1939, Rio de Janeiro/São Paulo.
Lévi-Strauss, C. 1955. Tristes Trópicos, Edições 70, 1979.
Melatti, J. C. 1984. “A antropologia no Brasil : um roteiro”. BIB – Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais – (17), Rio de Janeiro.
Osterling, J. P. 1983. “Notes for a history of Peruvian social anthropology, 1940-1980”, Current Anthropology, 24 (3).
Peirano, M. 1980. “The anthropology of anthropology : the Brazilian Case”, mimeo, Harvard, Cambridge
dos Santos, W. G. 1978. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo, Livraria Duas Cidades.
Schaden, Egon & J. B. Borges Pereira, 1967. “Exploração antropológica” in S. B. de Holanda, História Geral da Civilização Brasileira, Tomo II, vol 3. São Paulo, Difusão Européia do Livro.
Velho, O. G. 1980. “Antropologia para sueco ver”, Dados, 23 (1).
Wagley, C. (ed.), 1972. Social Science Research on Latin America, NY/London, Columbia University Press.
Woortmann, K. 1972. “A antropologia brasileira e os estudos de comunidade” Universitas (II), Salvador.
Anexo I
Cronograma dos Depoimentos registrados no ano de 1984
Março, 29 | Florestan Fernandes
Abril, 12 | Egon Schaden [28]
Maio, 10 | Thales de Azevedo
Maio, 17 | Egon Schaden
Maio, 24 | A. Rubbo-Müller
Junho , 7 | M. Nunes Pereira
Setembro, 13 | Roberto Cardoso de Oliveira
Setembro, 25 | Oracy Nogueira
Outobro, 30 | René Ribeiro
Outobro | Donald Pierson (written statement)
Novembro, 20 | Napoleão Figueiredo
Dezembro, 12 | Mesa redonda sobre história da antropologia no contexto das ciências sociais no Brasil : Wanderley Guilherme dos Santos, Sergio Miceli, Eunice R. Durham, Peter H. Fry e M. Manuela Carneiro da Cunha
Anexo II
Procedimentos de trabalho e resultados obtidos
A realização do projeto só foi possível graças a um trabalho de equipe [29], cujo núcleo principal eram os estudantes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp, que teve o apoio, durante todo o decorrer do ano de 1984, da Assessoria de Apoio a Eventos desta Universidade – responsável pelo transporte de muitos dos convidados – e do Laboratório Interdisciplinar para a Melhoria do Ensino e Currículo (LIMEC), responsável pelas gravações em áudio e vídeo dos depoimentos dos convidados. A equipe nuclear do projeto levantou a bibliografia de cada um dos convidados, preparando uma pauta-roteiro para cobrir eventuais lacunas na apresentação dos professores, discutindo a sua trajetória intelectual e institucional em seminários de pesquisa, indexando revistas científicas sociais existentes desde a década de 40 no país e, finalmente, fazendo também a indexação das entrevistas gravadas em vídeo. Durante o registro dos depoimentos dos professores convidados pela equipe do projeto foram gravadas cerca de trinta horas de fita em áudio e cerca de quinze horas em vídeo.
Os depoimentos em áudio, em sua quase totalidade transcritos, datilografados e enviados aos seus autores para possíveis correções, serão editados e publicados em forma de livro. As entrevistas realizadas em vídeo, além de serem mantidas em sua forma original, para utilização didática, também serão editadas e, compostas com outros materiais relevantes para o registro visual da história da antropologia no país, farão parte de um filme a respeito desta história.
Além do valor dos depoimentos em si mesmos, o projeto pode recuperar, graças à cooperação dos convidados, boa parte dos poucos Anais das reuniões brasileiras de antropologia existentes, edições raras ou esgotadas de trabalhos importantes de antropólogos, fotografias, coleções de cartas e de outros documentos pessoais : este material, uma vez concluído o trabalho, deverá ser depositado no Arquivo Edgard Leuenroth, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, ficando à disposição dos interessados em consultá-lo.