Apresentando Mariza Corrêa, seus projetos e acervo
Mariza Corrêa (1945-2016) foi uma antropóloga brasileira, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das fundadoras do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da mesma instituição. [1] Seus interesses de pesquisa versaram sobre as relações de gênero e a história da antropologia no Brasil – incluindo a imbricação desses dois temas. É sobre a história da disciplina e seus desdobramentos que me debruçarei a seguir [2]
Os interesses de Corrêa pela temática eram notórios desde sua tese de doutorado, As ilusões da liberdade : a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil (1982), defendida na Universidade de São Paulo (USP) [3]. E é justamente esta pesquisa que impulsiona sua entrada efetiva no Projeto História da Antropologia no Brasil (PHAB), inicialmente concebido pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (1943-), à época professora da Unicamp ; com a transferência da docente para a Universidade de São Paulo, Corrêa recebe o convite para implementá-lo.
O projeto se iniciou em 1984 com a participação de Mariza Corrêa, de alunas e alunos de graduação de ciências sociais e da pós-graduação em antropologia social da universidade [4] (Cf. Corrêa 2013b). Os objetivos iniciais da pesquisa eram resgatar e registrar o que fosse possível da história da antropologia brasileira, entre a década de 1930, período de fundação das universidades brasileiras, e a primeira metade da década de 1960, momento anterior à criação dos primeiros programas de pós-graduação em antropologia no país. [5] Para o desenvolvimento do projeto, foram realizadas diversas entrevistas com antropólogos brasileiros e estrangeiros. Com o aumento do número de depoimentos, com o recebimento de novos documentos e com maiores financiamentos [6], o escopo do PHAB foi ampliado, contemplando outras gerações de profissionais e o momento de reconfiguração da pós-graduação em antropologia no país, segunda metade da década de 1960 e anos 1970. Segundo Corrêa (1995a), no interior do projeto foram produzidos mais de vinte depoimentos em vídeo e vinte e cinco em áudio. Vale observar que apenas sete entrevistas foram publicadas parcial ou integralmente [7], mas muitas delas estão disponíveis no acervo da antropóloga (discorrerei sobre elas adiante).
Este primeiro projeto se desdobraria em um segundo, Antropólogas & Antropologia, iniciado em 1989 (Cf. Corrêa 2003b), com financiamento de instituições nacionais, tanto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), como da Unicamp. Em meio às pesquisas realizadas no interior do PHAB, Corrêa se deparou não apenas com a simples ausência de antropólogas no período em análise, mas com a dificuldade de encontrar informações sobre essas mulheres. É no encontro, e no desencontro, com essas figuras que se inicia esse novo estudo unindo dois interesses de pesquisa que a antropóloga desenvolveu ao longo de sua carreira : as relações de gênero e a história da antropologia no Brasil.
É preciso destacar que não há um consenso sobre o título oficial do segundo projeto, ainda que de maneira geral as nomenclaturas possam ser consideradas bastante próximas. Em diferentes publicações, a designação aparece com algumas alterações : “Antropólogas e Antropologia”, “Antropólogas e Antropologia no Brasil” e “Antropólogas & Antropologia”. Além disso, deve ser observado que, na década de 1970, Adam Kuper publica Anthropology and Anthropologists : The Modern British School (1973) traduzido para o português alguns anos depois com o título, flexionado no masculino, Antropólogos e Antropologia (Kuper 1978). O livro de Mariza Corrêa, resultado do projeto, foi publicado como Antropólogas & Antropologia (Corrêa 2003b), em clara alusão à obra de Kuper. A referência a este livro é parte da própria discussão travada no projeto brasileiro, que buscava a um só tempo problematizar o apagamento de trajetórias de mulheres praticantes de antropologia e recuperar algumas dessas histórias.
O material produzido e reunido por Corrêa resultante dessas duas pesquisas, e de outras que desenvolveu ao longo de sua carreira, foi reunido e doado ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) [8], localizado na Unicamp, no Brasil, alguns anos depois da morte da antropóloga, em 2016. Anteriormente, ainda com o PHAB em desenvolvimento, parte da documentação já havia sido enviada à instituição, por exemplo acervos de outros antropólogos recebidos pelo projeto [9]. Desta forma, o AEL reúne hoje um amplo corpus, compreendendo uma série de diferentes tipos documentais, como textos, jornais, fotos, vídeos e áudios, armazenados em mais de 80 caixas-arquivo. Quanto ao conteúdo, além de correspondências, materiais de estudos e de docência (como programas de disciplinas ministradas e textos produzidos para as aulas), há muitos documentos referentes às suas pesquisas (às de mestrado e doutorado, ao PHAB, ao Projeto Antropólogas & Antropologia, entre outros) e ao seu trabalho anterior como jornalista. Há também correspondências, agendas, cadernos, textos efetivamente publicados e escritos inéditos (como papers preparados para diversas conferências). Encontram-se ainda documentos sobre os financiamentos recebidos (por ela e por orientandas e orientandos), anotações dispersas e variadas, teses e dissertações, programação de eventos científicos, material institucional sobre programas de pós-graduação, relatórios, trabalhos de estudantes e seus próprios trabalhos como aluna do mestrado.
É possível localizar também algumas das transcrições de depoimentos do PHAB, assim como acervos e documentos recebidos ou acumulados pelo projeto. Como é nítido, parte do material reunido e produzido pelo PHAB encontra-se também no acervo pessoal de Mariza Corrêa (ou seja, apenas parte deles constituem oficialmente fundos independentes no AEL, como é o caso dos quatro acervos citados anteriormente). Além de material textual, o fundo da antropóloga conta com fotografias, fitas VHS, fitas cassetes e DVDs (com destaque para os materiais produzidos durante o desenvolvimento do PHAB, principalmente as entrevistas) e disquetes (que guardam grande parte dos materiais não publicados, como conferências apresentadas em diferentes congressos).
Uma análise detida dos documentos de Corrêa permite acompanhar a forma como algumas temáticas foram sendo desenvolvidas ao longo de sua trajetória : como no caso da passagem do mestrado (sobre as representações jurídicas de papéis sexuais em processos de homicídios cometidos por homens “na defesa da honra”) para o doutorado (sobre a chamada Escola Nina Rodrigues e as relações entre antropologia e medicina), em seguida para o PHAB, e para o problema das imbricações entre gênero e história da antropologia. Continuidade e expansão de linhas podem ser observadas na ampliação do interesse sobre um grupo específico de intelectuais que atuaram no país nas primeiras décadas do século XX (tema de sua tese de doutorado), para a constituição e institucionalização da disciplina no Brasil (pesquisa desenvolvida no PHAB).
Disponível para a consulta de pesquisadores e pesquisadoras, os papéis da antropóloga constituem um potente conjunto de documentos que vão muito além de sua trajetória pessoal, já que perpassam também seus interesses de pesquisa, que incluem o trabalho e a trajetória de seus interlocutores (em sua maioria profissionais da antropologia). Outro ponto importante que a documentação revela é a própria constituição de um campo de investigação sobre a história da antropologia no Brasil, que se torna mais visível principalmente na década de 1980. Não há dúvidas que o PHAB e os trabalhos de Mariza Corrêa e de seus colaboradores foram os esforços mais sólidos para a produção de reflexões sobre a constituição e o desenvolvimento da antropologia no país, e seus desdobramentos continuam a ter impactos até os dias de hoje. [10]
Na sequência, a descrição dos projetos é adensada com a ajuda da contextualização de dois documentos que constituem o acervo de Mariza Corrêa : um relatório de atividades do PHAB e o projeto de pesquisa de Antropólogas & Antropologia. Ainda que a finalidade não seja esgotar todas as possíveis reflexões oriundas desse material, este trabalho almeja elucidar alguns debates, autoras e autores, e acontecimentos dessa história da antropologia para interessadas e interessados além das fronteiras nacionais. [11]
Contextualizando o relatório “História da Antropologia no Brasil (1930-1960) : Testemunhos”
O documento em questão corresponde a um relatório produzido em janeiro de 1985 sobre o andamento do Projeto História da Antropologia no Brasil (PHAB), o qual, como dito antes, foi fundamental para estimular a formação de um campo de pesquisas sobre a história da disciplina no país. Esse material está disponível para a consulta presencial de interessados no AEL, junto à caixa número 13 [12], ou ainda de forma digital no dossiê Mariza Corrêa no dossiê enciclopédico de Bérose. Trata-se de um documento físico, datilografado em 18 páginas e em boas condições de leitura e manuseio, elaborado para ser enviado a uma das agências financiadoras do projeto, a FAPESP, após seu primeiro ano de vigência.
Logo no início, Corrêa traz algumas explicações sobre as definições cronológicas do projeto : o período compreendido entre 1930 e 1960. Sobre o marco inicial, a antropóloga adverte que tal escolha não implica em afirmar que somente a partir dos anos 1930 é que se começou a praticar antropologia no país. Na verdade, diz ela, tal decisão justifica-se pela emergência nessa década de um conjunto de fatores – como a criação de instituições universitárias e o recrutamento de profissionais especializados, nacionais e estrangeiros – responsáveis pela introdução de novos repertórios e práticas, a partir dos quais é possível identificar e definir de forma mais clara uma produção antropológica brasileira.
Em relação à escolha dos interlocutores, o projeto levou em conta as atuações dos antropólogos entre as balizas temporais da pesquisa, bem como as diferentes regiões do país [13]. Sobre a questão geográfica, ainda que tenha sido inevitável destacar a região Sudeste em todo o período (em razão da concentração de instituições, antropólogos e projetos de pesquisa em São Paulo e no Rio de Janeiro), o texto assinala como a antropologia produzida no Nordeste, principalmente nos estados de Pernambuco e Bahia, foi de fundamental importância para o crescimento da disciplina, para o desenvolvimento de grandes projetos coletivos e para a formação de profissionais.
Os percursos das investigações podem ser seguidos ao nos determos em cada uma de suas pesquisas e projetos ; e é justamente nesse ponto que reside um dos grandes potenciais do relatório. Este texto é um documento importante, entre outras coisas, pois permite seguir o início do projeto, as questões que permearam o seu desenvolvimento, bem como as mudanças que sofreu ao longo do tempo ; caminhos que tendem a desaparecer nos resultados posteriormente publicados, como no livro Traficantes do simbólico & outros ensaios sobre história da antropologia (2013b). Tais transformações podem ser percebidas, por exemplo, na ampliação do recorte temporal do projeto, ou seja, na inclusão dos anos de 1970 às reflexões. Ainda que esse período seja mencionado brevemente no relatório (com a referência à reestruturação e à criação dos programas de pós-graduação, a partir de 1968), ele só passa a ser objeto privilegiado das análises nos anos seguintes, o que foi seguramente possibilitado pelo aumento de financiamentos e pelos desdobramentos que a pesquisa conheceu ao longo do tempo. O ano de 1985, momento de produção do relatório, correspondeu a uma primeira etapa de mapeamento do contexto histórico, dos interlocutores, dos marcos temporais estabelecidos e das questões que, de fato, seriam centrais para recuperar e produzir uma história da disciplina.
O documento mostra ainda como Mariza Corrêa insere o seu projeto no interior de um quadro e arcabouço teórico já existentes, definindo os objetivos e as ênfases que distinguem essa iniciativa, assim como a forma como a pesquisa seria desenvolvida. Não esqueçamos que, principalmente a partir da década de 1980, vêm à luz textos importantes de antropólogos refletindo sobre o fazer antropológico e sobre a história da antropologia no Brasil, por exemplo a tese de doutorado de Mariza Peirano (1981) e o ensaio histórico-bibliográfico de Julio Cezar Melatti (1983). Ainda que dialogando com esses trabalhos, Corrêa argumenta ser necessário dar maior destaque às trajetórias individuais, situando-as em seus contextos teóricos e institucionais, e às múltiplas experiências e produções oriundas das diferentes regiões do país. Só assim, ela defende, seria possível projetar uma antropologia brasileira, que dizer : feita no Brasil, por brasileiros e estrangeiros.
O PHAB foi pioneiro em realizar um grande esforço de sistematização que se inicia e se pauta nas experiências individuais de personagens considerados centrais na história da antropologia, através das entrevistas realizadas – como por exemplo com Donald Pierson [14]. Ao mesmo tempo, sem deixar de recuperar os contextos institucionais e teóricos que permeavam tais experiências e que ajudam a compreender os diferentes períodos da disciplina produzida e praticada no país.
Nesse plano mais geral da história da antropologia brasileira, Corrêa esmiuça no texto do relatório como o locus institucional de produção do conhecimento antropológico se foi transformando ao longo do tempo : do interior dos museus para as faculdades de filosofia, no começo dos anos 1930, e destas para os programas de pós-graduação universitários, no final da década de 1960, por meio de mudanças de políticas educacionais, da especialização da disciplina e do surgimento ou fortalecimento de instituições. Nesses deslocamentos, foi sobretudo com a criação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em 1955, que uma articulação intelectual e política dos antropólogos a nível nacional ganhou força com o auxílio das reuniões periódicas. Dessa forma, a associação passa a assumir um lugar proeminente na história da disciplina. Além de ter sido presidente da ABA entre 1996 e 1998, Mariza Corrêa foi a responsável pela doação formal dos acervos da Associação, anteriormente dispersos, ao AEL, tendo escrito um livro dedicado a recuperar a memória da instituição e de suas reuniões, As Reuniões brasileiras de antropologia – Cinquenta anos (1953-2003) (Corrêa 2003a).
Ainda no relatório, a antropóloga enfatiza as “orientações teóricas” e a forma de organização do trabalho dos pesquisadores nacionais. Quanto às primeiras, no período em questão se destacam : a discussão sobre aculturação, a partir de pesquisas sobre sociedades indígenas e grupos migrantes ; os chamados “estudos de comunidade”, centrados às questões de mudança cultural [15] ; e os debates sobre relações raciais, em contexto rural e urbano. Quanto à forma, as pesquisas de cunho mais individual foram cedendo lugar aos projetos coletivos, o que fica evidenciado, por exemplo, na parceria estabelecida em 1950 entre a Universidade de Columbia e o Estado da Bahia através de Charles Wagley (1913-1991) [16] e Thales de Azevedo (1904-1995) [17] para o estudo das relações raciais na Bahia, que contou com financiamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). As pesquisas com sociedades indígenas e as investigações sobre as relações entre negros e brancos na sociedade brasileira definem os dois principais eixos da produção antropológica nesse período, os quais se mantêm nos anos subsequentes, conhecendo novos contornos e redefinições. No caso da etnologia indígena, especificamente, a perspectiva da aculturação foi sendo substituída por outras visões sobre o contato entre os indígenas e a sociedade nacional, enfrentadas do prisma das relações interétnicas.
Finalmente, é preciso lembrar que esse documento é resultado de apenas um ano de pesquisa e que o projeto seguiu em desenvolvimento nos anos seguintes. Corrêa busca reforçar que a análise esboçada no relatório é ainda prévia e breve, destacando alguns caminhos que a pesquisa seguiu a partir das entrevistas e da bibliografia reunidas. Foi apresentada aqui uma parte do argumento que a antropóloga constrói em seu relatório, mas que parece suficiente para aquilatarmos a sua importância. Este texto, ao lado das cartas com os interlocutores da pesquisa, das transcrições dos depoimentos, dos rascunhos e de muitos outros documentos depositados no AEL – assim como os livros e artigos publicados e os outros arquivos que ajudou a formar e organizar – configuram um riquíssimo conjunto documental. O acervo produzido e recolhido pelo PHAB não apenas informa sobre a história da antropologia brasileira e de seus profissionais, mas também impulsionou, e continua impulsionando, esse campo de pesquisa no país, colaborando, dessa forma, para que outras histórias da disciplina sejam constituídas.
Contextualizando o relatório “Projeto de Pesquisa Antropólogas & Antropologia”
O segundo documento chave corresponde ao projeto da pesquisa “Antropólogas & Antropologia”. Apesar de não estar datado, é possível supor que foi produzido no final da década de 1980, já que a iniciativa teve início neste período. O projeto é composto por quinze páginas datilografadas em ótimo estado de conservação e de leitura. Está disponível para consulta presencial no AEL, na caixa número 13, e também de forma digital no dossiê enciclopédico dedicado a Mariza Corrêa em Bérose.
Logo de início, Corrêa começa por fazer uma contextualização dos motivos que a levaram a desenvolver essa pesquisa depois do PHAB. Para isso, menciona alguns textos de sua autoria que haviam sido publicados antes e que figurariam como anexos ao projeto, embora não tenham sido preservados junto ao documento. Ainda assim é possível supor que o primeiro corresponda ao artigo “Traficantes do excêntrico. Os antropólogos no Brasil dos anos 30 aos 60” (1988), posteriormente publicado no livro Traficantes do simbólico & outros ensaios sobre história da antropologia (2013b) – último trabalho editado da autora. Mais ao final do projeto, ela menciona um segundo anexo, fazendo referência a um texto produzido sobre a professora Leolinda Daltro (1859-1977), que possivelmente corresponde ao artigo “Os Índios do Brasil Elegante & a Professora Leolinda Daltro” (Corrêa 1989), reeditado em Antropólogas & Antropologia (2003b).
É possível afirmar que a presença feminina acompanhou os depoimentos e documentos do projeto coordenado por Corrêa sobre a história da antropologia no Brasil, mas em segundo plano : embora envolvidas nas narrativas sobre o período de institucionalização da disciplina no país, as mulheres não figuram no papel de protagonistas. As antropólogas são lembradas por diferentes aspectos de sua atuação, também por suas contribuições científicas e administrativas, ou mesmo por suas relações pessoais, afetivas e familiares, mas sempre referidas apenas por uma parcela de seu trabalho e não em razão de suas contribuições e atuações profissionais mais amplas. Entretanto, ao analisar a literatura de ficção do período, Mariza Corrêa descobre que elas se fazem presentes em diversos romances, ou seja, aparecem em livros não acadêmicos, cujos objetivos não são discutir suas pesquisas e projetos [18], ao contrário do que se dá com os exemplos masculinos. Esses são os casos de Emília Snethlage (1868-1929) – ornitóloga alemã, que chega ao Brasil em 1905 e permanece até o final de sua vida, tendo feito expedições através da Amazônia e atuado em dois importantes museus, o Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG) e o Museu Nacional do Rio de Janeiro ; de Leolinda Daltro, sertanista, professora e feminista, que atuou em prol da alfabetização laica e da tentativa de criação de uma associação civil para defender os direitos e a educação indígena no país ; de Heloísa Alberto Torres (1895-1935), antropóloga, diretora do Museu Nacional e presidente da Comissão Nacional de Proteção ao Índio, que realizou várias pesquisas sobre cultura material. Cada uma delas, à sua maneira, foi lida como exercendo um trabalho “fora do comum”, quer dizer, fora do que era esperado socialmente para as mulheres do período, já que se envolveram em atividades exercidas majoritariamente por homens.
Ao aprofundar-se na pesquisa sobre os personagens considerados centrais e, portanto, mais comumente tratados da história da antropologia, Mariza Corrêa passou a se interessar também pelas esposas dos antropólogos, brasileiros ou estrangeiros, mostrando como essas mulheres atuaram, de modo geral, como auxiliares de pesquisa de seus maridos ou como coautoras de textos por eles assinados, mas não eram vistas como profissionais, ainda que parte delas tivesse formação antropológica. Os dois tipos apresentados – as antropólogas “excepcionais” e as “esposas” dos antropólogos – ofereceram a Corrêa uma importante chave de análise para compreender a contribuição das mulheres para a constituição e para a história da antropologia brasileira, conferindo-lhes cidadania e protagonismo.
Se no final do século XX emergiu, no Brasil e no mundo, uma série de pesquisas interessadas na história da disciplina, essa historiografia parecia dar pouca atenção às questões de gênero, ainda que, no cenário internacional, figuras como Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Franz Boas (1858-1942) tenham sido vistas como importantes para fomentar a carreira de diversas antropólogas e pesquisadoras [19].


Porém, segundo Corrêa [20], no país não encontramos figuras correlatas a Malinowski e Boas às quais possamos associar um estímulo à carreira de mulheres. Se homens e mulheres se fazem presentes na antropologia brasileira desde sempre, as oportunidades e dificuldades que enfrentaram para a profissionalização foram diferentes, e distintas também as formas de lembrar a participação de antropólogos a antropólogas na história da antropologia. E são o silêncio e o esquecimento que dificultam a localização de registros da presença e atuação dessas mulheres – ponto que Corrêa demonstra não apenas pelas análises das trajetórias de Emília Snethlage, Leolinda Daltro e Heloisa Alberto Torres, mas também ao refletir sobre o “nome” ou “renome”, adquirido ou perdido, no campo acadêmico.
Mesmo que a questão do nome mostre-se um tema importante de reflexão no texto do projeto Antropólogas & Antropologia, ela aparece muito sutilmente, sobretudo quando Mariza Corrêa menciona como Dina Dreyfus (1911-1999) se converte em Dina Lévi-Strauss com o casamento. A adoção do sobrenome do marido apaga o seu nome de origem e ela se torna “apenas” a esposa do antropólogo francês em livros, artigos e referências. O problema é explorado com profundidade anos depois, no livro que leva o mesmo título do projeto ; nele a autora (2003b) discorre sobre a ideia de renome, mostrando que no caso masculino ele se relaciona exclusivamente ao prestígio, mas que no feminino confunde-se com o ato de receber um novo nome, em virtude do casamento. Este é um fator decisivo para que seja difícil encontrar o sobrenome anterior, como também informações sobre essas mulheres, a não ser àquelas vinculadas aos seus maridos e às trajetórias deles.
No final do texto do projeto, Corrêa assinala que o panorama começa a ser alterado no país no fim da década de 1970, com a intensificação do ingresso de mulheres na disciplina, consequência da expansão do acesso a cursos de especialização, promovidos pela ampliação da oferta de programas de pós-graduação em antropologia social, o que também contribuiu com um maior desenvolvimento da carreira acadêmica no Brasil, tanto para homens como para mulheres.
Com esse conjunto de reflexões, das quais o presente texto destaca algumas, e o delineamento de uma agenda de pesquisa que reuniu história da ciência e crítica às relações de gênero então vigentes, Mariza Corrêa desenvolveu um trabalho pioneiro que contribuiu para a construção de novos olhares para as trajetórias de antropólogas que fizeram parte da história da disciplina no Brasil. Mais do que isso, conseguiu incluir efetivamente essas outras trajetórias, autoras e personagens, no debate antropológico.
Observações finais
Se a breve apresentação e contextualização de dois importantes projetos desenvolvidos por Mariza Corrêa não esgotam as contribuições destas pesquisas específicas ou mesmo da trajetória e trabalhos da antropóloga para a disciplina, elas auxiliam a dar uma maior dimensão das potencialidades do seu acervo e produção original para o desenvolvimento de pesquisas sobre história da antropologia, no Brasil e em outros países.
É importante destacar ainda que a captação, preservação e difusão de arquivos antropológicos ou de antropólogos constituíam uma vertente importante do PHAB. Dessa forma, hoje, o próprio acervo legado por Mariza Corrêa é mais uma contribuição para que o trabalho com as fontes primárias colabore com o desenvolvimento e com o conhecimento de outras histórias da disciplina. E, com isso, a digitalização e divulgação de parte de seu conteúdo, assim como as pesquisas realizadas a partir dele, segue dando continuidade ao legado e às contribuições da antropóloga.
Resumo : Mariza Corrêa (1945-2016) foi uma antropóloga brasileira que se dedicou a dois principais temas de pesquisa : os estudos de gênero e a história da antropologia, incluindo uma relação entre esses dois campos de estudos. Dentre os projetos realizados, dois se destacam na área de história da antropologia. O primeiro é o Projeto História da Antropologia no Brasil (PHAB), que almejou recuperar a memória das décadas iniciais da disciplina no país. O segundo, é o Projeto Antropólogas & Antropologia, um desdobramento da iniciativa anterior, que buscou refletir sobre o silêncio em relação às figuras femininas dessa história. O presente texto tem como objetivos apresentar essas pesquisas através de uma contextualização de dois importantes documentos do acervo de Corrêa, sob a guarda do Arquivo Edgard Leuenroth – um relatório de atividades e um projeto de pesquisa – de forma a difundir as contribuições e o legado de seu trabalho às interessadas e aos interessados nos campos de estudos em que atuou.
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