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Encyclopédie internationale
des histoires de l’anthropologie

Perspectivas antropológicas e agenciamentos políticos na cooperação internacional junto aos povos indígenas: uma visão panorâmica a partir do caso norueguês

Maria Barroso

LACED, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro

2023
Pour citer cet article

Barroso, Maria, 2023. “Perspectivas antropológicas e agenciamentos políticos na cooperação internacional junto aos povos indígenas: uma visão panorâmica a partir do caso norueguês”, in Bérose - Encyclopédie internationale des histoires de l'anthropologie, Paris.

URL Bérose : article3064.html

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Publié dans le cadre de HITAL - Histoire transatlantique des Anthropologies d’Amérique Latine / International Research Network - INSHS (CNRS), dirigé par Christine Laurière ; Équipe du Departamento de Antropologia/Museu Nacional/UFRJ, LACED, sous la direction d’Antonio Carlos de Souza Lima

Résumé : Les agendas de la coopération internationale norvégienne en faveur des peuples autochtones dans la seconde moitié du XXe siècle se reflètent à la fois dans des actions et des lignes d’argumentation. En prenant les arrangements institutionnels de cet univers comme point de référence, le présent article analyse les voies théoriques et pratiques de la discipline anthropologique qui ont eu un impact sur les politiques de coopération, en mettant l’accent sur les différends contemporains autour de la catégorisation des peuples indigènes. L’article cherche également à démêler les intersections entre, d’une part, les débats sur le peuple Sami en Norvège, reconnu comme autochtone depuis le dernier quart du vingtième siècle, et, d’autre part, les positions de plaidoyer des peuples autochtones au-delà des frontières nationales du pays. Il s’agit de révéler dans quelle mesure ces prises de position ont contribué à la formation d’un préjugé antitutelle dans l’univers de la coopération au développement. La transformation de populations qui avaient été des objets d’étude en sujets de connaissance est mise en relation avec le renouvellement des aspects théoriques de la discipline anthropologique et des luttes politiques des groupes historiquement subalternisés.

O presente artigo descreve diferentes mecanismos de construção da diferença implicados na formulação da cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas e associados a processos de formação da identidade nacional e étnica na Noruega, notadamente do povo Sami, reconhecido como indígena a partir da década de 1970. [1] Seu foco abrangerá o período que vai do pós segunda Guerra Mundial até a virada do milênio, aproximadamente, tomando como fio condutor as contribuições de antropólogos noruegueses e samis e sua atuação em organizações, programas e projetos seja a partir de posições acadêmicas seja de posições políticas e administrativas associadas à cooperação norueguesa, que se tornaram espaços ao mesmo tempo de produção de teorias e práticas antropológicas, bem como de formulação e discussão de conceitos que vêm tendo um papel duradouro na articulação de movimentos indígenas em nível nacional e internacional. [2]

A cooperação internacional para o desenvolvimento junto aos povos indígenas como espaço de constituição de nacionalidades e de fronteiras étnicas

A cooperação internacional [3] para o desenvolvimento voltada aos povos indígenas pode ser entendida como um dos espaços contemporâneos de constituição de nacionalidades e de fronteiras étnicas, tomados por sua vez como processos dinâmicos aos quais vão se agregando continuamente novos elementos. No caso em análise, podemos dizer que ela esteve centralmente implicada na inflexão dos temas que compuseram a imaginação da nação norueguesa no século 19 e na primeira metade do 20, abrindo espaço para um novo conjunto de temáticas na segunda metade desse último. No primeiro período, poderíamos destacar como elementos-chave na imaginação da nação o passado viking, o folclore camponês e a criação da língua nacional, juntamente com as imagens da natureza associadas às conquistas dos modernos exploradores polares e a constituição das tradições filantrópicas e humanitárias que se afirmaram após a primeira Guerra Mundial (Eriksen 1993, 1996).

No segundo período, por sua vez, assistimos à emergência de novos temas nesta imaginação, relacionados ao ideário do desenvolvimento, dos direitos humanos e do multiculturalismo, atualizados à luz dos debates sobre povos indígenas e minorias étnicas no país. Dentro deste período, as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelo debate em torno dos direitos do povo Sami e da reivindicação de seu status como “indígenas” (Paine 1991 ; Minde 2003). Nas décadas de 1980 e 1990, por sua vez, foi a presença dos imigrantes e dos refugiados políticos que dominou a mídia e foi instituída como “questão” associada à discussão sobre a identidade nacional norueguesa (Wikan 1999 ; Eriksen 2002). [4]

O desenvolvimento da cooperação internacional norueguesa desempenhou um papel estratégico na definição destas questões, na medida em que colocou em diálogo as agendas internas do país relativas aos povos indígenas, aos imigrantes e aos refugiados políticos, e suas agendas externas, combinando as temáticas do desenvolvimento e dos direitos humanos de um modo bastante peculiar. Esta combinação, ligada às condições históricas específicas da Noruega como um país europeu sem passado colonialista, tendo tido ele próprio uma experiência de subordinação política [5] e, ao mesmo tempo, com uma população minoritária  a dos Sami  que obteve o status de povo indígena na década de 1970, teve conseqüências decisivas para o envolvimento do país na construção dos mecanismos internacionais de reconhecimento e defesa dos direitos indígenas e, portanto, para a afirmação de identidades étnicas além de suas fronteiras nacionais.

Se tomarmos o tema da cooperação internacional junto aos povos indígenas buscando localizar o conjunto de forças e atores envolvidos na Noruega com este universo, nos deparamos com uma complexidade e variedade de perspectivas e forças que tendem a questionar as análises que o veem de forma unívoca, como propagador de um mesmo conjunto de valores e reprodutor de uma única cosmologia  a das forças capitalistas hegemônicas no cenário internacional. Ao olhar de forma relacional os atores implicados na cooperação norueguesa junto aos índios [6], é possível tomá-la como um fenômeno multideterminado socialmente, dependente do cruzamento de agenciamentos burocráticos, acadêmicos e políticos distintos, e implementados por um conjunto de atores frequentemente em disputa (Oliveira 1988). Nesse sentido, analisar o papel das instâncias de Estados, de organismos multilaterais, como bancos de desenvolvimento e agências da ONU, bem como ONGs de caráter transnacional e local, torna-se um fio condutor importante para desvendar os agenciamentos implicados nesse campo e iluminar com novos elementos os estudos de etnicidade que vêm privilegiando a análise dessas forças (Williams 1989 ; Souza Lima 1995 ; Barth 2000 ; Oliveira 2004 ; Barroso Hoffmann 2009 ; 2011).

O caso da cooperação junto aos índios é particularmente fértil para entendermos que o aparato da cooperação internacional vinculou-se não apenas à construção de mecanismos de governo e gestão de populações, prestando-se igualmente ao questionamento desses mecanismo e a propostas no sentido de sua reformulação. Dessa forma, embora seja inegável a pertinência das análises preocupadas em desmistificar as benesses trazidas pelo desenvolvimento, o caráter etnocêntrico de suas ações e a perspectiva evolucionista de suas propostas (Sachs 1999 ; Rist 1999), a análise da cooperação norueguesa junto aos povos indígenas permite destacar um outro conjunto de questões. Além do tema da assimetria das relações Norte/Sul e da denúncia do “fracasso” das ações empreendidas sob a égide do ideário do desenvolvimento, é possível perceber a formação de um conjunto variado de comunidades de interesse transnacionais que ultrapassam essas clivagens, com projetos nem sempre convergentes com as proposições do mainstream. A atuação dos antropólogos noruegueses e samis esteve centralmente implicada nos debates e na criação desses caminhos alternativos dentro da cooperação norueguesa, associando-se ao mesmo tempo aos desdobramentos teóricos da disciplina antropológica no país.

A participação dos antropólogos noruegueses no campo da cooperação internacional

Embora a participação de antropólogos no campo da cooperação tenha se iniciado ainda na década de 1950 na Noruega, foi somente a partir da segunda metade da década de 1980 que ela se intensificou, quando cresceram os departamentos de estudos de desenvolvimento (development studies) no país e a ONU estabeleceu o debate sobre a inserção da dimensão cultural no desenvolvimento. Em relação à proposta da ONU [7], eles se preocuparam em mostrar a pluralidade de pontos de vista implicados na questão, chamando a atenção para a dificuldade de definir o conceito de “cultura”, e de que “cultura” se estaria falando no terreno da “assistência para o desenvolvimento” (Eriksen 1989). A autoconcepção dos antropólogos nesse domínio foi associada assim, em primeiro lugar, ao exercício de relativizar os conceitos e de compreender seus significados em diferentes contextos, começando pela relativização do próprio conceito de cultura (Gray 1989 ; Melhus 1989 ; Mlama1989 ; Klausen 1989). Identificou-se, nesse sentido, ao invés do uso de visões mais recorrentes do senso comum sobre “cultura”, tais como seu equacionamento à noção de “cultivo” ou a formas “ocidentais” de expressão dessa dimensão, como o cinema, o teatro, os museus etc., a necessidade de incorporar as perspectivas dos grupos alvos das ações em todas as fases dos projetos, desde sua concepção até sua avaliação (Klausen 1989) ; ou de reconhecer à validade de diferentes formas de conhecer, abandonando a visão da superioridade do conhecimento dos “doadores” sobre os conhecimentos “locais” (Melhuus 1989).

Na mesma direção, a necessidade de implementar o princípio da “assistência voltada para as próprias premissas” das populações-alvo (Gray 1989 : 75) ia ao encontro de princípios semelhantes aos formulados por Sol Tax na década de 1950, no âmbito da “antropologia da ação”, isto é, a necessidade de que os projetos atendessem a demandas formuladas pelas populações-alvo, deixando de “criar soluções” para problemas não percebidos por elas como tal. Denunciava-se, nesse contesto, os efeitos desastrosos de processos de transferência de tecnologia, fosse pela criação de dependência em relação aos países “doadores”, fosse pura e simplesmente pela inadequação ecológica, social ou cultural das soluções negociadas. As críticas também chamavam a atenção para o fato de que a “assistência” enriquecia claramente determinados grupos, tanto nos países “doadores” quanto nos “donatários”, ao invés de favorecer os grupos “mais vulneráveis” destes últimos. Nesse sentido, foi apontada, ao contrário do que diziam muitas análises, mais como um pacto entre elites do que como um espaço de subalternização de atores do “Sul” por atores do “Norte” (Mlama 1989 : 163).

A pluralidade de pontos de vista dos envolvidos na implementação dos projetos de “assistência para o desenvolvimento” na Noruega apontados pelos antropólogos, por outro lado, questionou a construção de imagens unilaterais sobre esse terreno, oferecendo, ao invés, um retrato multifacetado de seus operadores e analistas. No caso dos projetos voltados à educação de populações locais, por exemplo, mostrou-se que eles foram analisados tanto como um instrumento de libertação do colonialismo (Dahl 1989 : 48), quanto como um elemento introdutor de assimetrias entre povos de tradição oral (Fuglesand 1989 : 30), ou ainda como condição necessária para que as populações-alvo da “assistência” pudessem participar de modo informado de todas as suas etapas (Gray 1989 : 75).

Em alguns casos, buscou-se dividir com os “donatários” a responsabilidade pelo “fracasso” dos projetos de desenvolvimento, atribuídos também ao fato de eles terem absorvido certas características socioculturais locais, como a falta de capacidade de organização e a “cultura da ajuda” a parentes próximos, apontada como uma fonte contínua de corrupção (Eriksen 1989a : 62). Também houve quem apontasse as contradições inerentes à proposta do “desenvolvimento” — definido como um projeto etnocêntrico ligado à manutenção ou à recriação de laços coloniais sob novas roupagens — resumido pelo ditado popular, recorrentemente citado nos países africanos : first raisers, then traders, now aiders (Kromberg1989 : 177).

Nesse sentido, observou-se, no caso da antropologia norueguesa, uma tendência da disciplina de assumir um papel reflexivo quanto à presença de diferentes perspectivas e projetos dos atores envolvidos nas situações sociais que analisavam e sobre as quais pretendiam atuar. No caso específico dos povos indígenas, Andrew Gray, antropólogo inglês dos quadros do International Work Group for Indigenous Affairs – IWGIA, organização de defesa dos direitos indígenas financiada em grande parte com recursos da Norwegian Agency for Development Cooperation – NORAD, argumentou que a atuação da cooperação internacional poderia ser vista como uma opção para as camadas desprivilegiadas da população do Terceiro Mundo, apresentando-se como um canal de apoio à autodeterminação no caso dos povos indígenas por possibilitar sua independência diante de instituições como a Igreja e o Estado, apontadas como fontes de relações clientelistas e paternalistas, sobretudo no contexto da América Latina (Gray 1989 : 85). [8]

A antropologia norueguesa e os Sami

Enquanto crescia a participação dos antropólogos noruegueses em ações no Terceiro Mundo, também se construía sua atuação junto aos povos indígenas, vinculada inicialmente a um debate nacional sobre a situação do povo Sami na Noruega, instaurado após a divulgação das pesquisas desenvolvidas entre 1948 e 1953 por Harald Eidheim concernentes às populações samis da costa norte do país. Estas conclusões, apresentadas na grande imprensa do país em 1958, constituíram uma denúncia contundente do racismo praticado contra os Sami, cuja situação foi estudada a partir dos aportes teóricos do sociólogo americano Erving Goffman sobre os mecanismos de representação do eu na vida cotidiana. A divulgação dessas pesquisas teve profunda repercussão na opinião pública norueguesa, obcecada, àquela altura, pelos ideais de igualdade social (likhet) promovidos pela socialdemocracia, gerando uma interpelação ao Parlamento norueguês e fortalecendo os movimentos de reivindicação política dos Sami que haviam começado a se estruturar nos anos 50 (Klausen 2005 : 189).

Cabe lembrar, nesse contexto, que Eidheim foi um dos participantes do seminário organizado por Fredrik Barth na Universidade de Bergen, em 1967, sobre a constituição dos grupos étnicos (Barth 1969), tendo sido responsável por uma das contribuições sobre a questão dos Sami nele debatidas (Eidheim1969). Naquela ocasião, valendo-se novamente dos aportes teóricos de Erving Goffman , Eidheim descreveu os mecanismos de mascaramento da identidade sami que indicavam a condição de estigma social em que viviam, sobretudo a partir dos processos de modernização da região norte da Noruega promovidos durante sua reconstrução no pós-guerra com recursos do Plano Marshall, ocasião em que foram implementadas políticas drásticas de assimilação dos Sami. Os dados de Eidheim seriam confirmados posteriormente pelos estudos do antropólogo Ivar Bjørklund (1985) sobre a dinâmica populacional na costa norte da Noruega na década de 1950. Segundo as pesquisas de Bjørklund realizadas no fiorde de Kvænangen, região de ocupação tradicional dos Sami, ficou demonstrado que o súbito “desaparecimento” da população sami, que passou de 863 habitantes registrados no censo de 1930, para apenas 5 no censo de 1950, não resultara de nenhum processo de migração ou de extermínio de indivíduos durante a guerra, mas simplesmente da troca de identidade dos habitantes, que passaram a se declarar noruegueses, e não samis, no decurso de um processo acelerado de assimilação (Bjørklund et al. 2000 : 15). O autor descreve da seguinte maneira esse processo :

A reconstrução [do pós-guerra] fez com que a população sami se tornasse parte da comunidade nacional mais ampla também em termos culturais. A noruegianização implicou ⎯ tanto em termos ideológicos quanto práticos ⎯ que todos os cidadãos noruegueses se viram obrigados a partilhar das mesmas habilidades culturais em que a burocracia governamental da reconstrução se apoiava, a saber, a língua, a cultura e a identidade norueguesas. As décadas de 1950 e 1960 foram marcadas pela crença em uma crescente prosperidade associada à modernização. Um grande mutirão nacional entrou em ação, e qualquer tentativa de questionar o lugar dos Sami no futuro da Noruega parecia completamente irrelevante. A sociedade da igualdade estava na ordem do dia, não havia espaço para a diferença, fosse ela econômica ou cultural. As questões relacionadas aos Sami eram tratadas apenas no contexto da discussão de temas como a ’pobreza’, as ’doenças’, ou o ’analfabetismo’ e, de preferência, em relação à população de criadores de rena do interior da província de Finnmark. (idem 15-16).

Chama a atenção o fato de que o modo de o governo norueguês tratar e conceber os Sami nos anos 50 guardava estreitas semelhanças com o modo de o governo perceber e tratar o “Terceiro Mundo”. Os mecanismos colocados em ação naquele período, voltados à “assistência para o desenvolvimento”, também partiam da ideia de que o “Terceiro Mundo” deveria se “modernizar” e “progredir” para se tornar igual ao “Primeiro” ⎯ da mesma forma que os Sami deveriam se tornar iguais aos noruegueses ⎯ definindo-se, entre as questões a serem “solucionadas”, as mesmas percebidas entre os Sami, sobretudo no caso da “pobreza”. Não por acaso, as mobilizações de afirmação da identidade étnica por parte dos Sami rapidamente assumiram uma perspectiva anticolonialista, correndo em paralelo com os movimentos de descolonização africanos e absorvendo muitos de seus ideais e perspectivas. [9] Nesse contexto, cabe destacar o fato de que, embora a Noruega não tenha tido um passado colonial ligado à formação de impérios ultramarinos, a vivência do colonialismo interno praticado pelos noruegueses sobre os Sami foi um fato formador, em muitos sentidos, não só da experiência de conceber um “outro” considerado inferior e subalterno e, por isto, necessitado de “ajuda”, como da experiência de criar mecanismos para lidar com ele.

Nas décadas seguintes, a postura dos antropólogos noruegueses passaria da denúncia ao envolvimento direto nas lutas em favor dos direitos dos Sami, desempenhando um papel estratégico na passagem de sua definição como minoria étnica para a autoconcepção como povo indígena. A nova postura dos antropólogos relacionou-se ao surgimento daquilo que foi denominado de antropologia socialmente relevante na Noruega, surgida do envolvimento de antropólogos e de outros cientistas sociais em projetos voltados para as populações da região norte do país, entre as quais os Sami, formulados a partir de pesquisas realizadas na Universidade de Tromsø (Bjørklund 2005).

A atuação dos antropólogos em questões ligadas aos embates dos Sami com o governo norueguês configurou um tipo de assessoria especializada de que são exemplos os estudos de Ivar Bjørklund e Terje Bratenberg sobre o sistema de transumância dos criadores de rena da província de Finnmark. Estes estudos, divulgados no início dos anos 80, permitiram contestar os laudos apresentados pelo governo norueguês sobre a quantidade de renas que seriam afetadas pela construção da hidrelétrica de Alta. As conclusões dos autores, que contaram com a colaboração de Harald Eidheim, embora não tenham sido suficientes para impedir a realização da obra, obrigaram o governo norueguês a admitir o erro dos estudos de impacto realizados por técnicos agrícolas e a negociar com os Sami uma série de medidas compensatórias, que incluíram, entre outras, a criação do Parlamento Sami (Bjørklund 2005).

Nesse contexto, cabe destacar os problemas enfrentados por Harald Eidheim para publicar uma coletânea de artigos na revista Ottar, do Museu de Tromsø, sobre o episódio de Alta, sob a alegação, pela editoria da revista, de que a temática tinha a ver apenas com “política” e não com “ciência” (Bjørklund 2005). A publicação da coletânea, liberada finalmente em 1981 sob o título Altasak – Samesak – Urbefolkningssak (O problema de Alta : um problema sami, um problema indígena), marcou assim uma importante inflexão naquilo que o historiador sami Henry Minde qualificou como a passagem da questão dos Sami do terreno da etnografia para o terreno da história (Minde 2000 : 31) — algo que, significativamente, no caso da Noruega, ocorreu com o concurso dos antropólogos. Nesse sentido, cabe ressaltar mais uma vez a contribuição das formulações teóricas de Barth nessa transformação, pois foram elas que, ao colocar o foco dos estudos sobre os grupos étnicos na constituição de suas fronteiras, garantiram legitimidade “científica” aos estudos sobre os processos políticos contemporâneos de afirmação da identidade étnica dos Sami dentro da sociedade norueguesa.

Nas décadas seguintes, essa legitimidade se consolidaria com o trabalho dos antropólogos contratados pelo Museu de Tromsø, sob a direção de Harald Eidheim, visando recriar as exposições do museu dedicadas aos Sami. Estas exposições deixaram de mostrá-los apenas como “nobres selvagens”, isto é, como uma população exótica e cristalizada no tempo, sobre a qual eram exibidos apenas os objetos da cultura material, passando a exibir também a história das lutas políticas desse povo. Foram fundamentais para isto, segundo Bjørklund, as negociações entre os antropólogos e os museólogos da instituição, o que permitiu que estes últimos “[...] se habituassem a uma abordagem processual da cultura, na qual esta passou a ser vista não como algo que é, mas como algo que acontece” (Bjørklund 2005 : 227, trad. do orig. em norueguês).

A antropologia norueguesa e os povos indígenas

O envolvimento dos antropólogos noruegueses relacionou-se não apenas às lutas internas dos Sami, mas também à internacionalização da questão indígena, que constituiu um de seus desdobramentos. Outro dos participantes do Seminário de Bergen promovido por Fredrik Barth em 1967, o antropólogo norueguês Helge Kleivan, pesquisador dos Inuit, na Groenlândia, desempenhou um papel fundamental nesses desdobramentos, juntamente com o etnógrafo sueco Lars Persson, ao fundarem o International Work Group for Indigenous Affairs – IWGIA, em 1968. A criação do IWGIA, cujo financiamento dependeu inicialmente dos recursos da Norwegian Agency for Development Cooperation – NORAD e da Danish International Development Agency – DANIDA, marcou um novo tipo de relacionamento dos antropólogos com o universo da cooperação para o desenvolvimento, que poderíamos considerar marcado por um viés contracultural, no sentido de que a atuação proposta pela organização não referendava os pressupostos “desenvolvimentistas” do mainstream das agências de desenvolvimento envolvidas nesse terreno.

A criação do IWGIA se deu no contexto das denúncias contra o genocídio dos povos indígenas da América do Sul, resultantes, em grande medida, de projetos de desenvolvimento empreendidos por governos autoritários com recursos de bancos multilaterais. O final da década de 60 e o início da década de 70 foram marcados pela emergência de uma ampla literatura antropológica voltada para a denúncia das consequências destes projetos, concomitante à formação de uma rede internacional de antropólogos comprometidos com a defesa dos direitos indígenas, da qual o IWGIA foi um dos precursores, juntamente com outras organizações criadas à mesma época, como, entre outras, a Survival International na Inglaterra, em 1969, a Cultural Survival nos Estados Unidos e a Amazind na Suíça, ambas em 1972.

Cabe registrar que, da mesma forma ocorrida com os Sami, os antropólogos passaram de uma posição inicial de denúncia para uma posição de envolvimento ativo nas mobilizações dos indígenas destinadas à construção de argumentos em favor de seus direitos dentro dos Estados nacionais, direitos estes firmados em sucessivos encontros, conferências e seminários internacionais, muitos dos quais, seguindo o modelo inaugurado na Conferência de Chicago por Sol Tax, em 1961, colocando frente a frente atores indígenas e não-indígenas para dialogar. Dentre esses encontros, destacou-se o Simpósio sobre o Contato Interétnico na América do Sul, organizado por antropólogos pertencentes ao Departamento de Etnologia da Universidade de Berna (Suíça) com recursos do Programa de Combate ao Racismo do Conselho Mundial de Igrejas. Nele, antropólogos de várias partes do mundo envolvidos com a denúncia das ameaças aos povos indígenas na América Sul produziram a I Declaração de Barbados. Este documento firmou o princípio de apoio à autonomia dos povos indígenas que nortearia, nas décadas seguintes, boa parte das mobilizações de antropólogos, membros de igrejas e juristas comprometidos com a defesa dos direitos indígenas : “É essencial que os índios organizem e liderem seus próprios movimentos de libertação, caso contrário, deixa de existir libertação” (Declaração de Barbados 1971 apud Dostal 1972 : 381, trad. do orig. em inglês). Na Declaração — em que se buscou definir as responsabilidades dos Estados, das missões religiosas e dos antropólogos em relação aos povos indígenas — é possível registrar, no caso dos antropólogos, uma clara tomada de posição em favor de uma assessoria comprometida não com as autoridades governamentais, mas com os índios, percebidos não mais como objeto de estudo, mas como sujeitos de ações políticas. A antropologia deveria dialogar e cooperar com eles. Assim, em um dos trechos da declaração, afirma-se que :

A antropologia que se exige hoje na América Latina não é a que se relaciona aos índios como objetos de estudo, mas aquela que registra sua situação colonial e se compromete com sua luta pela libertação. Nesse contexto, é função da antropologia fornecer dados e interpretações para os povos colonizados, tanto sobre eles mesmos quanto sobre seus colonizadores, úteis para suas lutas, redefinindo a imagem distorcida das comunidades indígenas em circulação na sociedade nacional, desmascarando sua natureza ideológica e colonialista (Declaração de Barbados 1971 apud Dostal:380, trad. do orig. em inglês).

Delineava-se assim, claramente, uma perspectiva antitutelar em relação aos povos indígenas, seguida, de resto, pelas recomendações direcionadas às missões religiosas no documento, nas quais se concluía que a suspensão de toda e qualquer atividade missionária era a melhor política a ser seguida visando ao bem das sociedades indígenas e à “integridade moral das igrejas envolvidas”. Recomendava-se especialmente a suspensão da “disputa de almas” entre grupos e confissões religiosas, a supressão das práticas seculares de separar as crianças indígenas de suas famílias para educá-las em orfanatos, o abandono da oferta de bens e serviços aos índios em troca de sua submissão, o fim das práticas de deslocamento de populações para fins de evangelização ou assimilação, e a suspensão das práticas criminosas de intermediação da exploração do trabalho indígena (idem : 378-379).

As responsabilidades atribuídas ao Estado na Declaração de Barbados também representaram uma reviravolta em relação às políticas assimilacionistas praticadas até então pelos Estados latino-americanos, colocando entre as obrigações dos Estados nacionais os seguintes itens : garantir a todas as populações indígenas o direito de permanecerem indígenas e de viverem de acordo com sua moral e seus costumes ; reconhecer que os grupos indígenas tinham direitos anteriores aos de outros grupos nacionais, garantindo seu direito a terra ; e facultar aos índios a prerrogativa de se organizarem e governarem de acordo com suas tradições. Esta política não deveria excluir os índios do pleno exercício da cidadania, garantindo-lhes o direito de desfrutar dos serviços oferecidos ao restante da população, tais como assistência econômica, social, de saúde e de educação, mas ao mesmo tempo liberando-os de se comprometerem com obrigações que julgassem afetar sua integridade cultural, e protegendo-os da exploração por outros setores da sociedade nacional (idem : 377).

Este conjunto de afirmações contidas na I Declaração de Barbados marcou a difusão, em nível internacional, de uma corrente contracultural em relação ao mainstream do aparato do desenvolvimento, formulando uma perspectiva antitutelar, entendida como sinônimo de uma postura anticolonial. Nela, repudiavam-se ao mesmo tempo as relações colonialistas de subordinação dos povos indígenas dentro das fronteiras dos Estados nacionais, e reivindicava-se o direito desses povos de não se submeterem aos cânones do desenvolvimento. Contudo, cabe registrar que, em função de uma dinâmica contraditória que marcou daí em diante todo o cenário das lutas política indígenas, estas correntes passaram a compor uma das faces do aparato do desenvolvimento, já que muitas das organizações indígenas e das organizações de apoio aos índios, criadas por antropólogos, religiosos e lideranças indígenas, iriam obter seus recursos, ainda que não exclusivamente, deste aparato.

A I Declaração de Barbados constituiu-se, assim, em um ponto de partida estratégico para a articulação transnacional de atores indígenas e não-indígenas em favor dos direitos indígenas. Ela daria origem, nas décadas seguintes, a uma longa série de formulações conceituais no campo da antropologia e no campo do direito, ou seja, visando responder aos diversos contextos concretos de luta política envolvendo os povos indígenas. Dentre estes conceitos destacaram-se aqueles voltados para definir a posição dos povos indígenas no espaço dos Estados nacionais, como o de “primeiras nações”, ou no cenário internacional, como o de “4º mundo”. Também surgiram conceitos objetivando particularizar as demandas indígenas nos diversos campos sociais, como o de “etnodesenvolvimento” — cunhado nos anos 80 para definir ações pautadas por decisões tomadas pelos próprios índios dentro de seus territórios — ou como o de “interculturalidade”, visando à obtenção de direitos específicos para os indígenas no campo educacional, cujo uso se generalizou na década de 1990.

No caso da Noruega, as correntes articuladas ao movimento internacional pró-índio abrigaram-se, no caso dos antropólogos, primeiro dentro do IWGIA, organização com atuação global, inserindo-se depois, sucessivamente, no Norwegian Program for Indigenous Peoples – NPIP, , cuja área de atuação concentrava-se na América Latina ; na Rainforest Foundation Norway, organização ambientalista com atuação junto aos povos indígenas voltada inicialmente às regiões de floresta tropical no Brasil, que estendeu suas ações posteriormente para a Oceania, a Ásia e a África ; e em The Remote Area Development Programme RADP, programa de desenvolvimento implementado pela Norad no Botswana direcionado ao povo San.

No caso dos membros de igrejas, as novas posturas pró-índio seriam assumidas pela Norwegian Church Aid – NCA, organização humanitária de base luterana que mantinha laços estreitos com o Conselho Mundial de Igrejas, cuja atuação junto à questão indígena, concentrada sobretudo na África e na América Latina, iria representar uma clivagem importante em relação às organizações missionárias norueguesas, que não aderiram aos princípios da Declaração de Barbados. Finalmente, no caso dos Sami, as mobilizações pró-índio em nível internacional foram canalizadas pelo Sami Council, em um primeiro momento, e posteriormente também pelo Parlamento sami, com atuação notadamente em fóruns da ONU e junto a organizações indígenas e a universidades e centros de pesquisa voltados às questões indígenas na América Latina e na África.

A cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas como espaço de produção de conhecimentos sobre políticas públicas, ativismo político e teoria antropológica

Na atuação dos antropólogos noruegueses, possibilitada por sua participação em programas e organizações financiados com recursos da cooperação internacional norueguesa, destacaram-se o International Work Group for Indigenous Affairs – IWGIA, o Norwegian Program for Indigenous Peoples – NPIP, o Forum for Development Cooperation with Indigenous Peoplese The Remote Area Development Programme – RADP. Essas experiências proporciaram um exame das relações entre os campos da “teoria” e da “prática” na antropologia norueguesa no contexto dos debates sobre a questão indígena. Surgiram questões e dilemas colocados por uma dimensão reflexiva através da qual, ao analisarem suas atividades, os antropólogos noruegueses explicitaram suas percepções sobre o papel e os limites da cooperação internacional junto aos povos indígenas. Isso refletiu-se, sobretudo, nas discussões sobre as relações entre estes povos, os Estados nacionais onde eles se localizam e instâncias de cooperação internacional, ou seja, sobre as articulações entre instâncias locais, nacionais e internacionais envolvidas com a questão indígena. Dessa forma, é possível entender a cooperação internacional como um espaço de produção simultânea de conhecimentos sobre políticas públicas, ativismo político e teoria antropológica.

O International Work Group for Indigenous Affairs – IWGIA

Segundo avaliação dos membros do IWGIA, a criação da entidade em 1968 deveu-se à conjunção de três fatores : em primeiro lugar, à politização dos debates dentro dos círculos antropológicos desencadeada com a publicação de artigos sobre a “relevância social” da antropologia na revista Current Anthropology ; além disso, aos novos aportes teóricos sobre a definição dos grupos étnicos, formulados por ocasião da realização do seminário promovido por Fredrik Barth na Universidade de Bergen, em 1967, ao qual estiveram presentes quase todos os fundadores do IWGIA ; finalmente, ao crescimento dos trabalhos de campo de antropólogos europeus junto aos povos indígenas da América do Sul a partir dos anos 60, cujas pesquisas haviam se concentrado em sua maior parte até então na África, Ásia e América do Norte (IWGIA 1989:13).

Fig. 1.
Índigena marubo na plateia, com bandeira do povo Sami ao fundo, durante a realização do Seminário Internacional sobre Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas promovido conjuntamente pela Embaixada da Noruega e pelo Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual - INBRAPI, com o apoio da Norwegian Agency for Development Cooperation – NORAD. Palácio do Itamaraty, Brasília, 2005
Foto de Maria Barroso

A necessidade de apoiar organizações dos próprios índios não fez parte, no entanto, dos primeiros objetivos formulados pelo IWGIA, que se concentrou, inicialmente, na ideia de montar uma estrutura de denúncia junto à Comissão de Direitos Humanos da ONU que pudesse contribuir para a formação de uma opinião pública internacional favorável à defesa dos interesses indígenas. Assim, segundo as formulações de Helge Kleivan, um dos criadores da entidade, “espera-se que a opinião pública mundial force os respectivos países a agirem contra as violações físicas [dos povos indígenas], o que já seria um progresso substancial” (Kleivan 1969 apud IWGIA 1989 : 24).As primeiras iniciativas nessa direção, ainda em 1968, propondo a criação de um conselho consultivo permanente de cientistas sociais na ONU, com expertise em minorias culturais e étnicas, não obtiveram sucesso. No ano seguinte, redirecionando a estratégia da entidade, seus dirigentes convenceram os ministros das relações exteriores dos cinco países nórdicos (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia) a enviarem representantes a Copenhage para encontros com especialistas em questões indígenas, visando pressionar os governos daqueles países a iniciar uma ação conjunta dentro da ONU (IWGIA 1989 : 19). Como decorrência desses esforços, articulados aos de outras entidades pró-índio, foi nomeada em 1971 uma comissão para estudar a situação dos povos indígenas dentro do Subcomitê de Proteção de Minorias da ONU, sob a direção do relator José Martinez Cobo. Cabe assinalar que, no mesmo ano, a I Declaração de Barbados havia demonstrado de forma concreta as possibilidades e os efeitos da utilização do trabalho de uma rede internacional de experts como instrumento de pressão e de formação de uma opinião pública internacional pró-índio. [10]

De uma atuação inicialmente restrita ao esforço de criação de instâncias internacionais de defesa dos índios associada ao trabalho de denúncia de experts não-índios, o IWGIA passou à crítica da abordagem “estadocêntrica” que imperava até então no tratamento dos povos indígenas e ao reconhecimento da necessidade de se pensar em formas políticas próprias de representação dos índios, tanto em nível nacional quanto internacional (idem:9). O mote principal da I Declaração de Barbados, expresso no reconhecimento de que cabia aos próprios índios organizar as lutas em defesa de seus interesses, terminaria assim por prevalecer e orientar as mobilizações pró-indio promovidas por diversas organizações, entre as quais o IWGIA. Foi por conta da consolidação desta visão que, no encontro de representantes do IWGIA e do Conselho Mundial de Igrejas com o líder indígena George Manuel, por ocasião da Conferência de Meio Ambiente promovida pela ONU em 1972, em Estocolmo, resolveu-se canalizar os esforços de todos para a criação de uma entidade pan-indígena que pudesse representar os índios na ONU, o que resultou na criação do World Council of Indigenous Peoples – WCIP, em 1975.

O apoio ao estabelecimento de organizações indígenas pelo IWGIA resultou ainda, nessa fase inicial de funcionamento da entidade, na organização da Conferência dos Povos Árticos, em Copenhage, em 1973. Paralelamente a estes esforços, o IWGIA passou a lutar pela obtenção do status de consultor dentro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Econômico e Social da ONU, o que seria alcançado no final da década de 1980. Esboçou-se assim, desde os primórdios da organização, aquilo que seria uma das marcas das mobilizações internacionais pró-índio da segunda metade do século XX : a atuação combinada de entidades indígenas e não-indígenas, criando um campo misto de mediadores interétnicos (Paine 1971), cujas relações foram marcadas por momentos de colaboração e de tensão ou, para usar os termos de Eidheim, de “complementarização” e “dicotomização” (Eidheim 1971).

A opção pelo formato das “organizações não-governamentais” para viabilizar a representação indígena não apenas em fóruns internacionais, mas também dentro dos Estados nacionais deveu-se ao fato de que, à época dessas primeiras articulações internacionais pró-índio, praticamente nenhum país reconhecia que os índios tivessem o direito à autodeterminação nem o de se manterem como povos etnicamente diferenciados. Este fator obrigava aqueles que lutavam por essas “causas” a buscar formas de representação fora da estrutura do Estado, sem contar com o seu apoio.

A criação desse “modelo alternativo” de representação política dos índios também foi favorecido pelo fato de que fóruns internacionais da ONU e da OIT abriram a possibilidade de participação de organizações não-governamentais em algumas de suas instâncias. Com o correr do tempo, esse mecanismo ⎯ inaugurado na década de 70 com a participação das primeiras organizações indígenas na ONU com status de observador ⎯ tendeu a se fortalecer como mecanismo de representação indígena, sobretudo a partir de uma série de convênios internacionais estabelecidos na década de 1990, em que a questão indígena foi articulada à questão ambiental. [11]

A promoção da “representação de si mesmos” dentro da ONU também ocorreu na forma da criação de fóruns exclusivos no seio da Organização voltados à discussão da questão indígena, como o United Nations Working Group on Indigenous Populations – WGIP, em 1982, que abriu as portas à participação de indígenas na ONU representados através de organizações não-governamentais (Muehlebach 2001 : 491). Embora o IWGIA tenha sido um dos principais envolvidos na criação daquele fórum, instalado na Subcomissão de Discriminação e Proteção de Minorias da ONU, sempre se recusou a ter voz nele, optando, ao invés disso, por garantir o financiamento de viagens de delegações indígenas para que ali relatassem diretamente a situação de seus povos. O financiamento da participação indígena em fóruns deste tipo, bem como o próprio financiamento das organizações indígenas sempre foram problemáticos, por contestarem inúmeras políticas formuladas pelos Estados nacionais para a gestão das populações indígenas.

Uma das principais lutas empreendidas pelas organizações indígenas, nesse contexto, foi justamente a pressão pela transformação de seu status jurídico dentro dos Estados nacionais, visando obter o reconhecimento dos direitos indígenas à manutenção de uma identidade própria, algo que demandou uma série de formulações teóricas e jurídicas novas. O surgimento do conceito de “4º mundo”, lançado por George Manuel e M. Posluns em 1974, foi uma das formulações elaboradas por intelectuais indígenas visando dar conta da especificidade da situação destes povos dentro dos Estados nacionais. O conceito, que teve grande circulação entre lideranças indígenas e não-indígenas nos anos 70 e 80, inclusive no caso do IWGIA, foi definido por Helge Kleivan, um dos fundadores da entidade, da seguinte forma :

O 4º mundo é o termo popular para o conjunto de problemas que afetam os [...] povos indígenas em vários países ⎯ povos tribais ou aborígenes ⎯ que não têm poder político atualmente. Decisões amplas relacionadas à sua existência são tomadas sem consultá-los ⎯ decisões sobre terras e recursos relativas àquilo que estes povos sempre tiveram supostamente o direito de chamar de seus territórios de origem. Mas estas áreas são controladas por Estados nacionais, um conceito bem recente na história da humanidade. [...] O 4º mundo compreende entre 200 e 250 milhões de pessoas de todas as partes do mundo, entre os quais os Sami da Escandinávia e os Esquimó da Groenlândia, Canadá, Alaska e Sibéria. Se nos movermos para o Sul, encontraremos os índios da América do Norte [...]. Também há povos indígenas na América Central e do Sul, em certas partes da África e vastas áreas do sudeste da Ásia. O 4º mundo também inclui o continente australiano e grandes partes da região do Pacífico (Kleivan 1979 apud IWGIA 1989:31, trad. do orig. em inglês).

Junto ao empenho para definir problemas comuns a populações situadas em diferentes continentes, Kleivan, referendando o conceito de 4º mundo, esboça ao mesmo tempo o esforço de imaginar uma comunidade transnacional indígena, cimentada por um discurso político e moral de contestação à lógica de funcionamento dos Estados nacionais e dos impérios constituídos sob sua égide. Nesse sentido, inclui entre os principais problemas enfrentados pela comunidade de povos identificados com o “4º mundo” a luta pelo direito à posse de seus territórios, encarada como uma alternativa à proletarização que costumava constituir o destino daqueles que perdiam suas terras.

Fig. 2.
Cartaz de apresentação do Seminário Internacional sobre Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas, com os logos do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual – INBRAPI e da Norwegian Agency for Development Cooperation – NORAD financiadora do evento. Ao fundo, atrás da mesa de conferências, bandeira do povo Sami. Brasília, Palácio do Itamaraty, 2005
Foto de Maria Barroso

Outros antropólogos, contudo, engajados no debate sobre a defesa dos direitos indígenas dentro dos espaços das democracias liberais ocidentais, notadamente no Canadá, na Austrália e na Noruega na década de 80 ⎯ configurando, segundo a colocação de Paine, o debate sobre o “4º mundo no 1º” (Paine 1985:50) ⎯ assumiram uma postura mais crítica e reflexiva em relação ao conceito de 4º mundo. Chamaram a atenção para suas ambiguidades e limites como instrumento de luta política e o compararam com outras formulações envolvidas no debate, como a de “Primeiras Nações”, utilizada sobretudo pelos ativistas do movimento indígena no Canadá (Dyck 1985 ; Paine 1991).

Cabe ressaltar nesse contexto — para fins da análise que estamos realizando sobre as transformações das relações entre antropólogos e povos indígenas — não tanto o conteúdo de tais formulações, mas a novidade do início do debate teórico entre antropólogos e intelectuais indígenas sobre conceitos, possibilidades e formas de atuação política dos povos indígenas. Este debate teve como marco uma postura dialógica em que os antropólogos se tornaram interlocutores e críticos das lideranças indígenas, quando não se associaram diretamente às suas lutas, como no caso dos dirigentes do IWGIA. Observa-se, assim, uma démarche distinta daquela empreendida por Sol Tax na década de 50, pois agora os antropólogos se tornam mais “interlocutores” do que “assessores” dos grupos indígenas, estabelecendo com eles uma comunidade de argumentação que se firma nos espaços acadêmicos sem perder o horizonte da atuação política e das intervenções administrativas negociadas com os Estados nacionais, estas últimas a partir, sobretudo, de normas jurídicas estabelecidas em fóruns internacionais.

Com o tempo, a ênfase do IWGIA mudou da tentativa de influenciar governos, formulada em 1969, para o esforço de produzir uma documentação confiável para apoiar a “auto-organização indígena” (IWGIA 1989 : 30), criando ao mesmo tempo um mecanismo central para o processo de imaginação de uma comunidade indígena transnacional : a reunião de informações sobre vários povos dentro de um mesmo corpus documental, legitimando paralelamente um dos mecanismos para definir quem fazia e quem não fazia parte dessa comunidade. Segundo Helge Kleivan, o sentido e o significado da produção desta documentação eram fornecer aos índios um instrumento estratégico para suas lutas e contribuir para enterrar de vez a ideia de uma ciência social “neutra”, ou “sem valores”.

A dimensão reflexiva da antropologia assume aqui uma perspectiva que se volta especialmente para os próprios antropólogos e para os sentidos de sua atuação, desqualificando-se a “ciência pela ciência”, ou o mero “consumo predador de dados”, para usar os termos de Kleivan, em favor de uma postura engajada, de defesa da “inviolabilidade humana”. Tratava-se, no caso da proposta do IWGIA, da construção de um discurso moral sobre os índios, que iria constituir a principal linha de argumentação em defesa dos povos indígenas nas décadas de 1960 e 1970. Ela estava estreitamente associada a um discurso sobre direitos humanos, que se tornaria concorrente, sobretudo a partir dos anos 90, da argumentação pró-índio ligada à defesa do meio ambiente.

Registou-se uma mudança de ênfase nesses dois momentos, observando-se que enquanto nas argumentações construídas a partir da perspectiva dos direitos dos anos 1960 e 1970 os índios eram colocados em contexto, isto é, dentro de relações sociais que extrapolavam o nível local das comunidades indígenas, a gramática do ambientalismo tendeu a apresentá-los fora do contexto social circundante, retomando os estereótipos românticos dos índios como seres vivendo em situações idílicas de contato com a natureza, isolados de relações sociais com outros atores.

Deve-se destacar ainda, como uma novidade das ações pró-índio implementadas a partir do final dos anos 60, a preocupação cada vez maior de inserir nos debates, além dos próprios índios, dos representantes das burocracias de Estado e do meio acadêmico, um quarto ator, a “opinião pública”, à qual se dirigiria dali em diante grande parte das ações. As atividades de documentação do IWGIA, que incorporam esta preocupação com a opinião pública, foram se expandindo pouco a pouco, acompanhando a extensão do movimento indígena para países da Ásia, da África e Ilhas do Pacífico nos anos 80, com destaque para as mobilizações no Timor Leste, Papua Oriental, Bangladesh, Índia, Tibet e Quênia.

Na década de 80, o IWGIA abriu uma outra frente de atuação ligada ao “autodesenvolvimento” dos povos indígenas, como resultado da transformação da entidade em mediadora das relações entre grupos indígenas na América Latina e o Norwegian Program for Indigenous Peoples – NPIP. [12] O uso do termo “autodesenvolvimento” significou que as perspectivas de “desenvolvimento” defendidas pela entidade não se coadunavam com as concepções do mainstream das agências de cooperação e dos bancos multilaterais de desenvolvimento àquela época. Buscou-se, assim, o apoio do aparato internacional voltado para a promoção do desenvolvimento, mas segundo condições e expectativas precisas, bastante distintas daquelas tradicionalmente formuladas dentro dele até então. Cabe registrar, nesse sentido, que novas formulações teóricas foram se forjando para dar conta dessas novas expectativas, destacando-se dentre elas o surgimento do conceito de etnodesenvolvimento, cunhado pelo antropólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, e consagrado na Conferência sobre Etnocídio e Etnodesenvolvimento na América Latina, patrocinada pela UNESCO em San José, na Costa Rica, em 1981, através do qual se buscou garantir aos índios o direito de decidirem sobre as alternativas de vida que pretendiam adotar.

A crítica aos padrões tradicionais do “desenvolvimento” contemplada no conceito de Stavenhagen veio acompanhada, no caso do IWGIA, de uma crítica aos padrões tradicionais de pesquisa junto aos povos indígenas, adicionando novos elementos, nos anos 80, à percepção esboçada no final dos anos 60 por lideranças da entidade sobre a impossibilidade de neutralidade da “ciência”. Assim, segundo depoimento de George Henriksen, antropólogo norueguês que ocupava a direção do IWGIA quando da comemoração dos 20 anos da entidade no Congresso dos Americanistas de 1988 :

O IWGIA luta contra o elitismo e a hegemonia do desenvolvimento e da pesquisa. Quando olhamos o modo pelo qual as pesquisas sobre as questões indígenas têm sido conduzidas e como o desenvolvimento é praticado, podemos observar vários paralelos. Assim como os povos indígenas estão na ponta que é objeto da pesquisa, o mesmo ocorre com vários projetos de desenvolvimento. Frequentemente os povos indígenas são forçados a adequar-se ao retrato que é oferecido deles pelos pesquisadores e são tratados como objeto de interesse científico, não como seres humanos com direitos (Henriksen 1988 apud IWGIA 1989 : 39, trad. do orig. em inglês).

Nesse contexto, no qual Henriksen localizou as lutas dos povos indígenas pela democratização da informação, pelo autodesenvolvimento e pelos direitos humanos como elementos-chave para a obtenção da autodeterminação, buscava-se também reverter a assimetria ligada ao fato de pesquisadores não-índios terem acesso à realidade indígena sem que os indígenas tivessem acesso à realidade dos pesquisadores. [13] E, mais do que isso, reverter o monopólio dos pesquisadores não-índios de instituir questões sobre os índios, criticando-se especificamente os que “pintaram quadros dos povos indígenas como aqueles que não têm história, que estão fora do tempo” (idem). Em outra gramática, especificamente voltada para os povos indígenas, retomavam-se questões mais amplas no debate antropológico, trazendo mais uma vez à tona o questionamento das análises que isolavam as comunidades locais de suas conexões com fatores extralocais, produzindo os efeitos de atemporalidade e des-historicização criticados por Henriksen. [14]

Ao mesmo tempo, de forma coerente com a crítica do monopólio das pesquisas sobre os índios por não-índios, as publicações do IWGIA abriram espaço aos autores indígenas, algo avaliado pelos dirigentes da entidade como um princípio de cooperação “Sul-Sul”, uma vez que a distribuição gratuita das publicações para uma rede cada vez mais ampla de comunidades e organizações indígenas localizadas no “Sul” abriu a possibilidade de comunicação entre elas. Os diálogos se davam sobretudo quanto à elaboração de projetos de desenvolvimento, cuja descrição e análise por um grupo muitas vezes inspiraram iniciativas semelhantes de outros (IWGIA 1989 : 49).

O IWGIA tornou-se, assim, uma entidade mediadora na elaboração de projetos dos indígenas, tanto por este papel de divulgação dos projetos, quanto pela garantia de acesso a meios financeiros para implementá-los, algo que foi possível graças à colaboração da única agência de cooperação para o desenvolvimento que aceitou o desafio lançado por Kleivan, a NORAD, cujo envolvimento com o financiamento desses projetos se deu inicialmente através do já mencionado Norwegian Program for Indigenous Peoples – NPIP (IWGIA 1989 : 35). O IWGIA assumiu o papel de encaminhar os projetos elaborados por organizações indígenas para aquele programa, tornando-se, com isto, a principal fonte de consultoria do PNPI na década de 1980, que se concentrou, em sua primeira fase, exclusivamente no financiamento de projetos indígenas na América Latina. A necessidade de intermediação do IWGIA foi justificada com o argumento de que era preciso ajustar os projetos aos requerimentos técnicos colocados pelos financiadores. Ao mesmo tempo, a entidade não se envolveria diretamente com a implementação dos projetos, em uma linha de atuação em que se buscava “[...] romper o padrão de controle paternalista dos negócios indígenas por estranhos e apoiar os direitos dos povos indígenas ao controle e à determinação sobre seus próprios territórios, culturas e vidas” (IWGIA 1989 : 50).

Em 1987, uma auditoria encomendada pela NORAD concluiu que os apoios prestados a programas e projetos em nível local não haviam levado aos resultados esperados (Smith 1996 : 99). Esses problemas foram analisados pelo próprio IWGIA no final dos anos 80, que considerou as dificuldades de escolha de organizações indígenas a serem financiadas, como parte da interferência dentro delas das dinâmicas clientelistas típicas das políticas locais latino-americanas. Nesse sentido, a partir de um estudo de caso sobre a formação do movimento indígena na região de Madre de Dios, no Peru, realizado por Gray (1989), reconheceu-se dois tipos de organizações indígenas : as que são criadas por uma elite intelectual de fora das comunidades, que propõem projetos visando constituir um reduto eleitoral, e as que são criadas por lideranças das próprias comunidades, concluindo que nem sempre as primeiras são “boas” e as segundas “ruins”, como muitos poderiam pensar. [15]

Fig. 3.
Artesanato indígena exibido no salão de entrada do Palácio do Itamaraty durante a realização do Seminário Internacional sobre Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas, promovido conjuntamente pela Embaixada da Noruega e pelo Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual - INBRAPI, com o apoio da Norwegian Agency for Development Cooperation – NORAD. Palácio do Itamaraty, Brasília, 2005.
Foto de Maria Barroso

Mantendo-se na tradição da reflexividade da disciplina antropológica em relação à descrição dos atores envolvidos nos cenários de atuação dos antropólogos, Gray não forneceu um quadro simples nem fórmulas mágicas para resolver problemas, apresentando antes uma análise das dificuldades enfrentadas e o que acreditava poderem ser princípios norteadores das ações do ponto de vista dos donatários. Entre estes princípios, destacava-se a crença, já apontada, de que o principal mérito da cooperação internacional era facultar aos índios obterem uma posição de independência em relação a instituições ligadas à Igreja e ao Estado na América Latina, considerados, por ação ou omissão, os principais obstáculos ao princípio da autodeterminação indígena na região.

Cabe destacar que a atuação dos antropólogos em favor deste objetivo de independência e autonomia dos índios não se separava, segundo Gray, da compreensão teórica formulada por Fredrik Barth sobre a dinâmica dos grupos étnicos e sobre suas possibilidades de se transformar culturalmente mantendo a mesma identidade étnica. Compreendiam-se, assim, as categorias étnicas como recipientes organizatórios que poderiam ser preenchidos com diferentes quantidades e tipos de conteúdos, dependendo do sistema sociocultural, aí se incluindo a aquisição de traços considerados “modernos”, isto é, a incorporação de repertórios tecnológicos e culturais da sociedade envolvente. O ponto a ser ressaltado, contudo, segundo a perspectiva da autodeterminação defendida pelo movimento internacional pró-índio, é que deveria caber aos índios o direito de selecionar os conteúdos novos, e não a outros agentes (Gray 1989 : 73).

No caso dos missionários, o IWGIA assumiu desde o início uma postura crítica, exemplificada pelo artigo de Lars Persson, um dos fundadores dessa entidade, publicado ainda em 1969 no jornal dinamarquês Kristelig Dagbladet sob o título “Missionários sob ataque”. Nele, Persson questionou as formas de relacionamento das organizações missionárias com os índios na América Latina, sobretudo no caso do Summer Institute of Linguistics – SIL, acusado de atuar intensamente para impedir os trabalhos de antropólogos e de favorecer o seu próprio (Lars Persson apud IWGIA 1989:17-18). Os Estados autoritários responsáveis pelos programas de expansão da fronteira econômica na Amazônia também foram alvos de severas críticas pelo IWGIA, especialmente no caso do Brasil, onde se formou uma extensa rede de colaboração de antropólogos brasileiros com o Grupo de Trabalho Esta rede foi responsável pelo envio de inúmeros artigos contendo denúncias contra a atuação do órgão indigenista governamental, a Fundação Nacional do Índio – Funai, e propondo mobilizações junto à sociedade para deter abusos e violações de direitos humanos.

Na análise de Gray, realizada vinte anos depois do artigo de Persson, a Igreja e o Estado continuaram a ser alvos de críticas, no sentido de serem percebidos como instâncias que impediam a autodeterminação indígena :

Na América Latina, a Igreja e o Estado são as instituições mais poderosas. Elas estão sempre dispostas a apoiar as organizações indígenas, mas muitas delas são prudentes em aceitar esse apoio. Em todos os países onde o Estado controla as organizações indígenas, ocorre uma oposição entre os interesses do Estado e as demandas dos índios pela autodeterminação. Do mesmo modo, a Igreja controla as ideologias e, mesmo que em vários aspectos ela seja progressista, a estrutura da Igreja tem um peso maior que as recentes organizações indígenas de base local (Gray 1989:83, trad. do orig. em norueguês).

É com base nesta argumentação que Gray justifica a presença da cooperação internacional como um ator capaz de fornecer alternativas políticas aos índios :

Mesmo que isto não se aplique à maioria, há um número crescente de organizações indígenas que buscam meios de apoio independente fora do país para objetivos não-partidários, com a preocupação de obter ajuda para seu crescimento e controle sobre o próprio destino. É com estas organizações que o IWGIA tem mais contato. São estes grupos também que contatam a Norad com seus projetos de autodesenvolvimento (idem).

A linha tênue entre “querer ajudar para que se ajudem a si mesmos” e novas formas de colonialismo não deixaram de ser também apontadas na análise de Gray. Nesse sentido, as negociações entre doadores e donatários para a seleção e a implementação de projetos são vistas como um ponto particularmente sensível, no qual a condição para uma relação menos assimétrica entre eles é colocada no fornecimento de meios para a educação e/ou a capacitação das organizações indígenas. Gray não descarta, nesse quadro, a colaboração entre as lideranças das organizações indígenas e o que chama de “líderes indiretos”, tais como advogados, padres, antropólogos e técnicos da cooperação internacional, comentando que muitas vezes são estes últimos que têm acesso às fontes financiadoras da cooperação internacional e dominam sua gramática, sendo os únicos que podem garantir o acesso a seus recursos. Prevê, contudo, à medida que os índios se eduquem e tenham atendidas suas demandas quanto à formação no ensino superior, o surgimento de rivalidades entre índios e não-índios em torno das funções de consultoria (Gray 1989 : 75-79).

Um aspecto importante a ser ressaltado nessa análise — em que os financiamentos da Norad para projetos indígenas de autodesenvolvimento encaminhados pelo IWGIA são apresentados como uma alternativa à dependência dos índios em relação às estruturas de dominação do Estado e da Igreja — é o fato de que ela não aprofunda suficientemente a descrição da cooperação internacional de forma a serem compreendidas a complexidade e a multiplicidade dos atores que nela atuam.

O estudo detalhado do caso norueguês mostra que estas perspectivas de apoio ao autodesenvolvimento indígena são apenas algumas dentre as muitas financiadas pela NORAD, e que supor de forma genérica que recursos oriundos de fora estejam necessariamente comprometidos com a mudança de estruturas tutelares em relação aos índios é algo bastante questionável. Também se poderia discutir o fato de que Estado e a Igreja são representados de forma monolítica nesse tipo de análise, e não como os espaços de disputa política que efetivamente são, abrigando, inclusive, forças historicamente comprometidas na América Latina com as lutas em favor dos direitos indígenas à autodeterminação, sem as quais a cooperação internacional pró-índio não teria podido atuar.

Nesse sentido, vale registrar que, se a NORAD apoiou projetos avalizados pelo movimento internacional pró-índio, representado por organizações como o IWGIA e por organizações religiosas com perfil progressista alinhadas àquele movimento, influenciadas pelos princípios da teologia da libertação, como a Norwegian Church Aid – NCA, a agência de cooperação norueguesa também financiou, no mesmo período, organizações missionárias que atuavam junto aos índios segundo princípios opostos, sem qualquer compromisso com os direitos ou com a autodeterminação indígena. Cabe destacar neste contexto que o apoio às organizações missionárias pelo governo norueguês não tem sido episódico, representando, no início da década de 2000, o principal canal de destinação de recursos para as organizações não-governamentais que atuam junto aos povos indígenas.

Nos anos 90, outros tipos de crítica seriam formulados ao modelo de financiamento externo das organizações indígenas ⎯ isto é, pela via da cooperação internacional ⎯ e à formação de um “mercado de projetos” ligado a ele, criando muitas vezes novas formas de tutela e dependência e colocando novos obstáculos ao autodesenvolvimento indígena. Esta questão já havia sido antevista pelo próprio Gray, que a colocou da seguinte maneira :

Os receptores nativos devem ser a fonte de todo e qualquer projeto. Projetos impostos de fora sem o consentimento das sociedades a que se destinam ⎯ mesmo que sejam bem intencionados em princípio ⎯ são uma forma de neocolonialismo. Não é suficiente que as pessoas participem do projeto. A ideia como um todo deve vir do grupo receptor, e ele deve entender o que está se passando. Como os próprios nativos dizem : ’uma coisa é cometer seus próprios erros, outra coisa é arcar com os erros de outros’ (Gray 1989:75, trad. do orig. em norueguês).

Se os anos 90 marcaram o declínio da perspectiva dos direitos humanos em favor da ênfase nos direitos ambientais quanto aos inúmeros atores envolvidos com as mobilizações internacionais pró-índio, no caso específico do apoio da Noruega aos povos indígenas houve uma inflexão importante. Ela esteve ligada não apenas ao surgimento de organizações com este perfil, que passaram a funcionar com o apoio da NORAD, mas também a uma mudança na forma de funcionamento do Norwegian Program for Indigenous Peoples – NPIP, cujas relações com o IWGIA se tornaram bastante enfraquecidas desde então. Com a perda de influência sobre o PNPI, cuja gerência deixou de ser feita pela NORAD, o IWGIA perdeu terreno no campo das ações para o desenvolvimento, concentrando sua atuação nas áreas de documentação e advocacy, sobretudo em fóruns da ONU e da OIT. Ali desempenharia papel de destaque na revisão da Convenção 107 da OIT [16] e no fornecimento de subsídios aos trabalhos do UN World Group on Indigenous Populations – WGIP, e também na elaboração da Declaração sobre os Direitos Indígenas, que tramitou durante mais de vinte anos, tendo sido finalmente aprovada pela assembleia geral da ONU em 2007.

O Norwegian Program for Indigenous Peoples – NPIP

No caso da América Latina, onde se concentrou a atuação do Norwegian Program for Indigenous Peoples – NPIP(Det norske urfolksprogrammet), apoiar os direitos indígenas significou inicialmente apoiar organizações localizadas fora da estrutura dos Estados nacionais já que, pelo menos até o final dos anos 80, a maior parte daqueles Estados assumira políticas assimilacionistas em relação aos indígenas. Nesse sentido, o apoio a organizações não-governamentais indígenas e indigenistas na América Latina pelo PNPI, em um primeiro momento, deve ser entendido não como parte dos cânones do neoliberalismo que iriam se consolidar a partir dos anos 90, nos quais a ação das ONGs foi colocada como mecanismo de prestação de serviços sociais alternativos ao enxugamento do Estado, mas como parte de uma estratégia de contestação às políticas governamentais assimilacionistas. Esta estratégia foi acordada com atores locais que se alinhavam com uma perspectiva de defesa dos direitos indígenas e de criação de formas alternativas de representação política para eles dentro dos Estados latino-americanos.

A duração do PNPI, entre 1983 e 2000, foi marcada por duas fases distintas. A primeira, entre 1983 e 1990, compreendeu o período em que o programa ficou sob a administração da NORAD, mantendo estreita ligação com o IWGIA. Na segunda, entre 1991 e 2000, sua administração foi transferida para o Institute of Applied Social Science – FAFO, sobre o qual forneceremos mais detalhes adiante.

No primeiro período, entre 1983 e 1990, o programa foi implementado de forma bastante informal, seguindo-se, quanto à escolha dos apoios concedidos, as indicações vindas sobretudo da rede de contatos do IWGIA e dos Sami na América Latina, construída em grande medida a partir das relações com os integrantes do World Council of Indigenous Peoples – WCIP. O recrudescimento do movimento etnopolítico dos Sami, no final dos anos 70, contribuiu para dar momentum à ideia, explicando o fato de que sua concretização tenha ocorrido na esteira do desenlace da crise da construção da hidrelétrica de Alta, que marcou a grande virada nas relações entre os Sami e o Estado norueguês. Os Sami, entretanto, não tiveram grande participação no programa, concentrando sua atuação, em nível internacional, no World Council of Indigenous Peoples – WCIP, tomando parte em reuniões da Organização Internacional do Trabalho – OIT com vistas à revisão da Convenção 107 de 1957, e no Working Group on Indigenous Populations – WGIP, o fórum criado na ONU em 1982 para tratar das questões indígenas.

A segunda fase do PNPI, entre 1991 e 2000, configurou-se a partir de uma reestruturação do programa ocorrida em 1990, quando o programa foi assumido pelo FAFO, instituto de pesquisa que sempre manteve estreitas relações com o PartidoTrabalhista (Det Norske Arbeiderparti DNA), principal força política da Noruega no pós-guerra, participando ativamente de pesquisas voltadas para as negociações entre patrões, empregados e governo no país (Daudelin et alii 1998:35).

No início da década de 2000, o PNPI foi retirado do controle do FAFO e reintegrado à NORAD. Àquela altura, diversas transformações haviam ocorrido nas relações entre Estados nacionais, povos indígenas e agências internacionais de cooperação, nomeadamente entre aquelas ligadas às transformações da legislação internacional na direção de uma perspectiva favorável à autodeterminação dos povos indígenas com a substituição da Convenção 107 pela Convenção 169 da OIT, em 1989. Também diversos Estados latino-americanos haviam introduzido mudanças constitucionais nessa mesma linha a partir da segunda metade dos anos 80, sem contar que os grandes bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Bando Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, haviam estipulado em suas diretrizes internas diversas normas relativas à salvaguarda dos direitos indígenas.

Os “tempos heróicos” do apoio inicial da Noruega aos povos indígenas, marcado pela denúncia ao genocídio contra aqueles povos praticado em nome dos ideais do “desenvolvimento”, apoio este capitaneado por setores da igreja luterana comprometidos com as perspectivas do Conselho Mundial de Igrejas, por redes de antropólogos que assumiram uma postura “pró-índio” e pelas organizações do povo Sami, estavam terminados. A década de 1990 distinguiu-se pela transformação da postura de contestação ao establishment, em nível nacional e internacional, que marcara o ativismo pró-índio das décadas de 1970 e 1980, pelo discurso conciliatório do ambientalismo assumido pelo mainstream da cooperação internacional. Este último buscou constituir uma “comunidade de interesses” entre os países pobres e os países ricos em nome da salvaguarda dos direitos das “futuras gerações”, forjando nesse contexto novas alianças políticas à luz de argumentos que associavam a defesa dos interesses indígenas aos interesses ambientais. Colocavam-se, desta forma, lado a lado, atores que muitas vezes haviam estado em posições antagônicas, como organizações indígenas e organizações de apoio aos índios e os grandes bancos multilaterais de desenvolvimento.

Na primeira fase do programa, marcada pela estreita influência do IWGIA, observou-se uma atitude abertamente militante em termos políticos, na linha da argumentação dos primeiros líderes daquela organização, os antropólogos Helge Kleivan e Lars Persson. Havia então uma reação de indignação moral em face dos eventos de violência contra a integridade física e cultural das comunidades indígenas nas terras baixas da América do Sul. Ao mesmo tempo, a postura do IWGIA também foi influenciada pelos aportes teóricos desenvolvidos na Noruega sobre a persistência das identidades étnicas em situações de contato entre diferentes grupos.

Em seguida, e já como resultado da experiência concreta de apoio a organizações indígenas na América do Sul, surgiu uma linha de argumentação mais modulada da nova geração de lideranças do IWGIA, representada por Andrew Gray. Nela, à justificativa teórica para o apoio à autodeterminação indígena calcada nos aportes de Barth (Gray 1989 : 72-73) agrega-se uma reflexão mais densa sobre as relações entre Estado, Igreja, cooperação internacional e povos indígenas, com especial atenção para os mecanismos de formação e atuação de organizações indígenas, e para as relações entre mediadores interétnicos indígenas e não-indígenas. Estamos aqui diante de uma gramática específica elaborada pelos antropólogos — a meio caminho entre a militância política e a reflexão acadêmica — na qual os dois níveis se cruzam e se alimentam mutuamente.

Na segunda fase de funcionamento do PNPI, quando este passou a ser gerido pelo FAFO, verificou-se um distanciamento das relações com o IWGIA que, por conta disto, perdeu espaço no terreno das ações locais junto aos povos indígenas. Nesse período, o discurso político do programa foi substituído por um discurso mais técnico ligado à apresentação de “resultados”, embora o PNPI tenha continuado a manter um bom grau de flexibilidade se comparado à postura de outros financiadores de ações junto aos índios na cooperação internacional (Daudelin 1998 : 91-92).

Os estudos de Stener Ekern nos fornecem pistas importantes a respeito do tipo de formulação e de olhar dos antropólogos noruegueses sobre a participação “aplicada” propiciada pela experiência do PNPI, em que se destaca a preocupação em situar os atores em cena, incluindo-se na análise as próprias instâncias da cooperação internacional, sobretudo em seu viés de apoio a ONGs locais, buscando-se mapear, também, as diferentes percepções dos atores sobre o termo “desenvolvimento” (Ekern 2005 : 69-70).

As análises de Ekern, voltadas para a realidade dos anos 90, ao contrário das de Gray, nos anos 80, não buscam fornecer argumentos para o apoio da cooperação internacional às organizações indígenas à luz de seu papel como elemento capaz de garantir autonomia aos índios em face a outros atores, como a Igreja e o Estado, mas sim compreender os efeitos dos trabalhos das ONGs locais financiadas pela cooperação internacional sobre as estruturas tradicionais de organização social das comunidades indígenas em áreas rurais.

Desta forma, Ekern mostra que as ONGs são percebidas pelas comunidades indígenas como estruturas concorrenciais às da Igreja e do Estado quanto ao fornecimento de bens e serviços ⎯ podendo dispor, em certos casos, de orçamentos superiores aos de algumas prefeituras ⎯ sendo suspeitas, ao mesmo tempo, de serem marcadas pelos mesmos vícios daquelas instâncias, isto é, pela presença daquilo que os índios identificam como a prevalência de interesses pessoais típicos das estruturas clientelistas tradicionais da política latino-americana, nas quais existiria uma corrupção sistêmica. Esses interesses entrariam em choque com a perspectiva “comunitarista” das comunidades indígenas, que seriam imunes a tais vícios (Ekern 2005 : 70-71).

O apoio da Norad à produção de conhecimentos sobre a cooperação junto aos povos indígenas : o Forum for Development Cooperation do Centro de Estudos Sami

Na década de 2000, a NORAD passou a dar suporte a uma reflexão e a um debate mais sistemáticos sobre a cooperação internacional junto aos povos indígenas, apoiando a realização de eventos e de programas de pósgraduação ligados à temática indígena. Entre estes, podemos destacar o Mestrado em Estudos Indígenas e o Mestrado sobre Negociação de Conflitos e Programas de Paz, na Universidade de Tromsø, que têm sido uma frente estratégica para a produção de uma reflexão crítica sobre a cooperação internacional norueguesa, seus efeitos, atores e objetivos. Além disso, a NORAD passou a destinar recursos para o Forum for Development Cooperation with Indigenous Peoples, promovido anualmente pelo Centro de Estudos Sami, também na Universidade de Tromsø, desde o ano 2000. Neste fórum, procurou-se reunir lideranças indígenas, membros da burocracia governamental norueguesa ligada à cooperação, representantes da ONU e da OIT, bem como intelectuais indígenas e não-indígenas ligados ao meio acadêmico e à participação em projetos de cooperação internacional, com ênfase tanto na temática do direito quanto na do desenvolvimento.

O fórum representou um nicho importante ligado à produção de uma dimensão reflexiva dentro do universo da cooperação internacional, buscando produzir não uma reflexão sobre, mas uma reflexão com os índios ; deixa-se de abordar a questão indígena como aquela em que os índios são tratados como objeto, seja de pesquisas, seja de práticas administrativas, ou de “apoio tutelar” ou “caritativo” (por saberem menos), reconhecendo-lhes um papel de sujeitos em termos de ações políticas e administrativas e no campo da produção de conhecimento acadêmico.

Exemplos da busca de uma perspectiva dialógica na relação com os povos indígenas têm sido encontrados não apenas na Noruega, mas em diversos outros contextos internacionais e nacionais. Uma fala representativa desta perspectiva, buscada por certas correntes contemporâneas da antropologia envolvidas com situações “aplicadas” concernentes aos povos indígenas, foi formulada pela antropóloga americana Dorothy Hogdson, a partir de sua experiência de participação no movimento a favor dos direitos indígenas na Tanzânia na década de 90 :

Alguns antropólogos [...] podem caracterizar sua posição como a de “interlocutores” mais do que como a de “colaboradores”, ou seja, de acadêmicos que compartilham suas ideias e trabalho com grupos indígenas em um contínuo, construtivo e, em alguns casos, tenso diálogo e debate, em um esforço de informar e modelar as políticas e as práticas dirigidas a eles, sem se alinharem diretamente com um grupo ou facção do movimento. [...] Como escrevi alhures, com base em Ferguson e Gupta (1997), vejo “nossa tarefa política não como um compartilhamento de conhecimento com aqueles que não o têm, mas como a construção de conexões entre conhecimentos diferentes, construídos a partir de diferentes localizações, traçando assim linhas de possíveis alianças e propósitos comuns entre eles”. Como tal, nossos “interlocutores” podem ser muitos e variados, incluindo não apenas ativistas indígenas, mas representações políticas, instituições, organizações e pessoas com as quais nós e eles nos engajamos e interagimos (Hogdson 2002 : 1045, trad. do orig.em inglês).

Podemos ver aqui mais um desdobramento importante do debate sobre a “antropologia aplicada”. Se os antropólogos sociais britânicos do entre-guerras disponibilizavam seus instrumentos para ajudar a administração colonial britânica a compreender os “nativos”, grande parte dos antropólogos atua hoje junto aos povos indígenas com essa função de “interlocução” definida por Hogdson, visando contribuir para a construção das categorias de análise e de luta desses povos. Cabe ressaltar que nessa atitude de “consciência crítica”, os antropólogos assumem muitas vezes um papel ingrato, aparecendo como os grandes “desmancha prazeres” em reuniões de elaboração de estratégias políticas, programas de ação e discussão de projetos, apontando “essencializações”, “generalizações indevidas”, “imposições de moralidades”, “engessamentos das características dos grupos étnicos” ou o ressurgimento furtivo de “perspectivas tutelares”, todas estas questões que seus instrumentos teóricos permitem captar e que seriam, digamos, as questões “nativas” dos próprios antropólogos.

Desta maneira, uma proporção considerável do trabalho “aplicado” ligado a movimentos etnopolíticos dos índios é informado por esta postura dialógica, na qual se dá a junção entre a dimensão teórica e a dimensão “aplicada” da disciplina, que permite usar os instrumentos de objetivação da antropologia como subsídio para a ação, algo que, em muitos casos, tem como norte principal instaurar uma postura reflexiva dos atores envolvidos, contribuindo para a localização das diferentes posições nas situações em que o antropólogo se envolve como interlocutor.

Dessa forma, o antropólogo atua como mediador, ou “entre atores”, não necessariamente para alcançar certos fins ⎯ e nesse sentido é possível localizar uma aproximação com Sol Tax, que também recusava a metodologia “meios e fins” (Tax 1961 apud Lurie 1961 : 481) ⎯ mas para introduzir questões que instauram o debate, que obrigam os atores, em contextos específicos de suas lutas por direitos sociais, a compreender o jogo de forças em atuação. Segundo Adriana Vianna, antropóloga brasileira que atua junto a movimentos sociais de gênero, esta mediação refere-se à definição do que os antropólogos têm para oferecer aos grupos sociais com os quais atuam, especialmente nas situações em que “são convocados ⎯ ou se convocam ⎯ a colaborar na ‘produção de direitos’” (Vianna 2005 : 1).

Segundo esta autora, retomando um debate clássico nas ciências sociais iniciado por Durkheim ([1895] 1974) e desenvolvido, entre outros, por Bourdieu (1989), trata-se de fugir do senso comum, não por um mero gosto pela originalidade ou para distinguir os cientistas sociais de outros profissionais, mas pela necessidade de construir, em contextos “aplicados”, moedas de troca entre os antropólogos e os grupos sociais junto aos quais eles atuam, de modo a tornar sua presença interessante, isto é, com uma contribuição efetiva a oferecer nos debates em curso (Vianna 2005 : 3).

Um dos principais trunfos dos antropólogos ao buscarem atuar dentro de um perfil de assessoria aos movimentos de luta por direitos específicos que marcam a arena política desde os anos 60, é o de terem se tornado especialistas no uso de diferentes gramáticas ⎯ acadêmicas, militantes e burocráticas ⎯ e de terem desenvolvido instrumentos analíticos para transitar entre elas.

Em Souza Lima, antropólogo brasileiro especializado nos estudos sobre as relações entre Estado e povos indígenas, encontramos uma variante desta posição, em que, a partir da análise do quadro de forças presente na cena indigenista contemporânea no Brasil, a atuação dos antropólogos assume não tanto um papel de assessoria de grupos sociais específicos lutando por direitos, mas um papel mais amplo de “gestão de conflitos” entre todos os grupos envolvidos :

Algumas grandes alterações poderiam surgir se começássemos por construir uma ponte entre os mundos que ficaram separados entre ONGs e universidades, entre o militante e o pesquisador, entre o que se entende por “índio” e a vida social cotidiana dos povos indígenas no Brasil. Ao invés de um conjunto de estereótipos sobre o seu fazer profissional, a atitude do antropólogo em trabalhos “aplicados” deve ser a de um humilde “profissional do estranhamento”, que exercerá uma atitude dialógica, seja no interior da administração pública, seja debatendo com uma comunidade indígena sobre as visões acerca da definição dos limites de seu território, negociando e traduzindo significados entre índios, advogados, agrônomos, engenheiros florestais, médicos e funcionários de variadas instituições estatais, “lendo” e gerindo os conflitos entre significados e entre grupos sociais, que são inerentes à vida em sociedade. Sua tarefa será também gerar conhecimentos escrevendo o conhecimento que gera permanentemente, e em diferentes registros, artefato político que todo texto é, e publicando-o (Souza Lima 2005:10).

Talvez mais do que propriamente “gerir conflitos” ⎯ já que muitas vezes, no caso que estamos analisando (o do movimento internacional pró-índio financiado com recursos da cooperação norueguesa), o antropólogo é parte interessada neles ⎯ a habilidade que torna o antropólogo útil, como apontamos acima, é a de saber transitar por diferentes gramáticas, visando prestar uma assessoria informada para a construção de argumentos por uma das partes implicadas nos conflitos : os índios. A incorporação dessa dimensão reflexiva da atuação antropológica em benefício da assessoria aos grupos indígenas tornou-se especialmente relevante no caso de outro programa financiado com recursos da NORAD a partir da segunda metade dos anos 80, The Remote Area Development Programme RADP, que analisaremos a seguir. Através dele será possível continuar a mapear as diferentes gramáticas ⎯ teóricas, burocráticas e políticas ⎯ com as quais os antropólogos noruegueses envolvidos com o apoio internacional aos movimentos em favor dos direitos indígenas têm se movimentado.

The Remote Area Development Programmee a reflexão teórica sobre o movimento internacional pró-índio financiado com recursos da cooperação internacional

The Remote Area Development ProgrammeRADP foi um programa de desenvolvimento dirigido ao povo San (também chamado de Basarwa ou Bushmen), criado pelo governo do Botswana em 1974, que passou a contar com o apoio da NORAD a partir de um convênio de cooperação bilateral firmado entre os dois países em 1988. Embora no convênio haja sido mencionada a intenção de preservar a integridade cultural dos “habitantes das áreas remotas” e o programa na Noruega tenha sido intitulado “Minority groups in remote areas”, o fato é que, por parte do governo do Botswana, ele havia sido esboçado simplesmente como um programa de alívio à pobreza, sem qualquer menção às especificidades étnicas dos San. Dessa forma, colocaram-se em cena diferentes concepções sobre como lidar com a questão das minorias étnicas por parte dos dois governos, o que veio a se tornar um motivo de tensões entre eles nos anos que se seguiram ao acordo.

O envolvimento da Norad no RADP estava relacionado à crença de que a situação dos San no Botswana oferecia um paralelo com a situação dos Sami na Noruega, e que a experiência do governo norueguês com ela poderia ser aproveitada no Botswana no que diz respeito à criação de mecanismos de representação política de minorias étnicas ⎯ e, mais especificamente, indígenas ⎯ dentro de Estados nacionais (Saugestad 2006 : 2). Ao invés de ser tomada como um exemplo dos mecanismos de dominação frequentemente envolvidos com a atuação de instâncias da cooperação internacional ligadas à temática do desenvolvimento, a participação da NORAD nesse programa pode ser entendida como um instrumento de pressão diplomática de um governo sobre outro, em benefício da aquisição de direitos por um determinado segmento da população.

Ocorre que, no contexto da descolonização africana e dos processos de luta contra o apartheid e contra outras políticas coloniais racistas, a questão da promoção de políticas diferenciadas para minorias étnicas assumia constantemente uma conotação negativa associada às antigas práticas colonialistas, mesmo que elas se propusessem, como no caso em tela, a promover direitos positivos, e não medidas discriminatórias. Além disso, a definição do povo San como povo “indígena” também não era um ponto de consenso. Na verdade, a discussão sobre a atribuição do estatuto de “indígenas” a povos tribais nômades e seminômades em África era algo que ainda se constituía em objeto de disputas na maior parte dos países africanos, cujos governos não aceitavam aquela definição.

A política pretendida pela NORAD enfrentou resistências do governo do Botswana desde o início do convênio, mesmo que aquela agência tenha adotado uma estratégia de persuasão e convencimento, e não uma estratégia de confronto com as autoridades do Botswana, esperando que com o tempo fosse possível colocar o programa na “direção certa” (Saugestad 2006 : 3).

Ao contrário de outras ações de cooperação internacional junto aos povos indígenas financiadas pela Noruega, o caso do RADP colocava em cena não o apoio direto a organizações indígenas e indigenistas, mas sim um canal diplomático bilateral entre Estados, ligado ao aparato do desenvolvimento. Através dele pretendia-se influenciar decisões político-administrativas de um país donatário, a partir da atribuição de um estatuto jurídico específico a determinado grupo dentro de suas fronteiras. Embora nem todo o staff da NORAD no Botswana ⎯ que durante muito tempo foi o principal receptor da cooperação norueguesa em África ⎯ estivesse disposto a entrar em choque com o governo do país por conta do RADP, a inclusão de antropólogos noruegueses no programa, no início dos anos 90, fez emergir de forma mais clara uma postura “culturalista”, na medida em que se buscou trazer para o debate público a questão da identidade étnica dos San e as implicações desta identidade para o projeto em questão.

A estratégia dos antropólogos incluiu a realização de dois seminários, em 1992 e 1993, a partir de uma iniciativa conjunta da NORAD e da Swedish International Development Cooperation Agency – SIDA, que contou com o apoio da organização First People of Kalahari FKP, criada em 1992 para defender os interesses dos San junto ao governo do Botswana, contando com recursos de organizações internacionais de apoio aos índios, entre as quais o IWGIA.

Segundo Sidsel Saugestad, antropóloga da UiT que participou do RADP entre 1992 e 1993 e que foi responsável pelo apoio da NORAD aos dois seminários que debateram a questão da identidade étnica dos San, o enfoque do programa como uma simples iniciativa de “alívio à pobreza” tinha como principal problema

[..] privar o grupo de dignidade, uma vez que seus membros foram reduzidos a receptores passivos de doações do governo. Ao desconhecer as características culturais [dos San], seu conhecimento cultural tornou-se irrelevante. Não se tratava apenas de considerar que os San eram ignorantes, mas que eles tinham um tipo de conhecimento errado, ligado à sua disposição nomádica (idem:3).

O apoio à “culturalização” do RADP, no início dos anos 90, e aquele dado pelo IWGIA à organização First People of Kalahari – FPK podem ser lidos também como questões associadas ao rearranjo de forças entre os atores envolvidos com a cooperação norueguesa junto aos povos indígenas, resultante da passagem da gestão do PNPI para o FAFO, também nos primeiros anos da década de 90. Este fato representou uma perda de influência do IWGIA sobre o PNPI, e sua busca por novas frentes de atuação, ligadas a outras geografias, fora da área de influência do PNPI, voltada essencialmente para a América Latina. Nesse sentido, a visibilidade da questão dos San como uma questão étnica dentro do RADP poderia ser entendida como o resultado da atuação, nos anos 90, de uma rede “africanista” alternativa à rede “americanista” do PNPI, e em disputa com ela pelos recursos da NORAD, contando com o apoio do IWGIA e combinando sua atuação com a dele. Cabe lembrar que o IWGIA investiu durante quase dez anos no fortalecimento institucional da organização Fist People of Kalahari, desde sua criação em 1992 (Hitchcock & Enghoff 2004).

O caso do RADP não deve ser analisado, contudo, só como uma questão de disputa pelos recursos disponibilizados pela cooperação norueguesa entre “africanistas” e “americanistas”, mas também como uma concorrência em torno das estratégias internacionais de apoio aos índios. Assim, a rede do IWGIA, alguns setores do RADP e as organizações do povo Sami ⎯ que não só deram continuidade ao trabalho de capacitação institucional da organização First People of Kalahari iniciado pelo IWGIA, como assumiram também o apoio à criação de organizações regionais pan-indígenas na África a partir da década de 2000 (Borchgrevink 2004) ⎯ defendiam uma estratégia aberta de “indianização” da questão dos povos nômades e tribais naquele continente. Enquanto isso, outros atores, apoiados pelos recursos da NORAD, defendiam uma postura definida como “mais pragmática”, em que nem sempre se colocava como necessária a reivindicação deste estatuto. Destacou-se, neste caso, particularmente a posição da organização ambientalista Rainforest Foundation Norway que, no início da década de 2000, recebeu a maior parte dos recursos da NORAD destinados a organizações não-governamentais norueguesas com atuação junto aos povos indígenas, à exceção das missões. [17]

Durante a realização da primeira reunião do Forum for Development Cooperation with Indigenous Peoples na Universidade de Tromsø, em 2000, Lars Løvold, antropólogo e diretor da Rainforest Foundation Norway, cuja atuação se concentrara inicialmente no Brasil, mas se estendera, ao longo da década de 1990, para a Ásia e a Oceania, afirmou que, tendo em vista que o “objetivo precípuo” da organização era a defesa das florestas tropicais, não havia de sua parte uma preocupação em cobrar, dos governos dos países onde a organização atuava, o reconhecimento do estatuto de “indígenas” para os povos que habitavam aquelas florestas, desde que fossem conseguidos acordos que garantissem o modo de vida tradicional daqueles povos e a preservação das florestas. A organização defendia uma postura flexível de atuação dos doadores, a ser definida caso a caso, dependendo de uma avaliação de ganhos e perdas em cada situação (Senter for Samiske Studier 2000 : 19-20).

Se considerarmos os atores atuantes junto aos povos indígenas com recursos da cooperação internacional norueguesa como formadores de um “campo”, no sentido bourdieusiano do termo, disputando não só recursos, como legitimidade política e simbólica em face das fontes de financiamento da NORAD e do Ministério das Relações Exteriores norueguês, veremos que eles abriram um novo campo de reflexões a partir da década de 1990, em que as contribuições teóricas da antropologia norueguesa tiveram um papel central, constituindo novos desdobramentos em relação ao que havia sido produzido nesse terreno até o final dos anos 80. Sidsel Saugestad, tomando como ponto de partida sua experiência dentro do RADP, como membro do conselho diretor do IWGIA e sua participação em inúmeros seminários e fóruns internacionais de debate sobre a questão indígena, entre os quais as reuniões anuais do WGIP, em Genebra (Saugestad 2005 : 32), ofereceu as principais contribuições nessa direção, criando uma frente de análise sobre as articulações entre os níveis locais, nacionais e internacionais das mobilizações indígenas.

No caso de Saugestad, não se tratou apenas, como em Gray (1989), de analisar os efeitos locais do apoio da cooperação internacional junto aos povos indígenas, mas também de avaliar o grau de independência e autonomia diante das instâncias da Igreja e do Estado que a cooperação poderia lhes propiciar. Enquanto as análises de Gray foram calcadas, sobretudo, nas condições da situação indígena anteriores aos anos 90 na América Latina, as de Saugestad constituíram-se no quadro das condições africanas pós-anos 90, propondo uma reflexão sobre as dificuldades da cooperação internacional para fortalecer organizações indígenas locais. Ela deu um passo além em relação a Gray, analisando as estratégias de atuação dos diferentes atores da cooperação internacional junto aos povos indígenas, e não seus efeitos em nível local.

Em artigo publicado em 2006, Saugestad — cuja tese de doutorado incluiu uma reflexão sobre sua experiência de participação no RADP [18] — contrastou duas estratégias : a de “persuasão e convencimento” em favor da “indianização” da questão dos San, empregada pela NORAD junto às autoridades do Botswana, e a de confronto, escolhida pela organização não governamental inglesa Survival International, que preferiu denunciar a atuação do governo do Botswana. Esta atuação voltava-se para o deslocamento da população San da Reserva de Caça do Kalahari Central e estaria ligada à defesa de interesses espúrios de empresas internacionais de exploração de diamantes nas terras da reserva.

Segundo Saugestad, estratégias de “persuasão” como as da NORAD só conseguem obter resultados em períodos longos de atuação, o que geralmente não ocorre em projetos financiados pela cooperação internacional. A estratégia da Survival International, calcada em grandes campanhas midiáticas internacionais, foi avaliada pela autora como a responsável por um grave resultado, o de “abafar a voz” das incipientes organizações locais dos San, aparecendo diante da opinião pública como aqueles que “falavam em nome dos San” (Saugestad 2006 : 172-175). Ela aponta como principal falha, tanto no caso da NORAD quanto no da Survival International, a falta de participação do grupo-alvo das ações, isto é, dos San. Chama a atenção para os riscos do surgimento de novas formas de dominação ligadas à atuação da cooperação internacional, resultantes nem tanto do domínio dos doadores sobre os recursos financeiros, mas do domínio de conhecimentos no terreno de uma de suas áreas mais florescentes, a das atividades de advocacy :

Precisamos reconhecer a assimetria entre aqueles que sabem e aqueles sobre os quais se sabe. Isto também se aplica ao conhecimento gerado através da advocacy. Envolvimento “externo” pode representar uma mudança de formas manifestas para formas latentes de dominação, através do emudecimento de vozes. É sobretudo com o emudecimento não-intencional que devemos tomar cuidado (idem:179, trad. do orig. em inglês).

Outro desdobramento produzido por Saugestad em relação às reflexões de Gray dos anos 80, relacionou-se à análise sobre os sentidos e os limites do modelo de atuação do movimento indígena articulado em três níveis : local, nacional e internacional (este último constituído por agências da ONU e seções da OIT, sobretudo). Embora reconheça o sucesso de tal modelo em vários casos, especialmente em democracias liberais do “Primeiro Mundo”, [19] Saugestad analisa os obstáculos para sua implementação no caso africano, associados sobretudo à falta de mobilização em nível local. Segundo esta autora, o sucesso do modelo em questão dependeria de uma articulação consistente entre os três níveis, que deveriam funcionar com o mesmo timing :

O dilema jaz na dimensão temporal, pois as organizações indígenas devem relacionar-se nas três direções ao mesmo tempo : a) em um plano local, extremamente pobre, marginalizado, desmoralizado e desinformado ; b) com um sistema internacional que, pelo contrário, é bem organizado, inclusivo e amigável ; e c) com um nível nacional, que é decisivo para o sucesso das ações, isto é, para o atendimento das demandas colocadas, e que é, portanto, central, mas também, geralmente, a parte mais cética (Saugestad 2005:27, trad. do orig. em norueguês).

Trata-se de um esquema em que se localiza a presença de diversos níveis de atuação e influência e se reconhece — ao contrário de muitas análises realizadas hoje sobre a perda do impacto dos Estados nacionais em face da lógica da “globalização” — o aspecto decisivo da instância nacional na questão indígena. É com base nesse esquema que Saugestad analisa a questão dos San no Botswana e o “fracasso”, por assim dizer, das tentativas de fortalecimento de suas organizações, que deveriam fazer a ponte entre os níveis local, nacional e internacional.

Saugestad atribui à falta de apoio das populações locais às organizações de representação de seus interesses as principais dificuldades para fazer avançar o movimento pela demanda de direitos dos San. Ela conclui que a disponibilidade de recursos financeiros internacionais para promover o fortalecimento de organizações indígenas por si só não garante o sucesso das mobilizações em favor dos direitos indígenas, caso elas não estejam ancoradas em reivindicações e mobilizações de base, ou seja, o modelo não funciona “de cima para baixo”, não pode ser criado artificialmente pela mera presença de recursos financeiros externos (Saugestad 2006 : 27).

As reflexões teóricas sobre os movimentos indígenas de Trond Thuen, outro antropólogo norueguês, realizadas no contexto das mobilizações etnopolíticas do povo Sami dentro do estado norueguês (Thuen 1995), permitiram a Saugestad explicar o “fracasso” das mobilizações indígenas no Botswana, partindo da ideia de que os processos de etnogênese possuem duas fases : a primeira, constituída pela assim chamada “política de identidade” ; a segunda, pela transposição das demandas surgidas nessa esfera para o domínio das “políticas de direitos”, o que poderia ser lido, usando os conceitos de Marx, como a passagem da “consciência de si” para a “consciência para si” dentro do terreno, neste caso, não das classes sociais, como analisado por aquele autor, mas dos grupos étnicos.

Teria havido no Botswana uma tentativa de se atingir a segunda fase sem que a primeira tivesse amadurecido, o que responderia pelas dificuldades encontradas na experiência de promover a constituição de organizações locais para a reivindicação de direitos dos San (Saugestad 2005 : 27). [20] Cabe ressaltar que quanto ao uso da contribuição de Thuen por Saugestad estamos lidando com a transposição da experiência dos Sami para o caso do Botswana, desta vez não em nível de propostas político-administrativas de relacionamento entre Estados nacionais e minorias étnicas, mas sim de propostas teóricas forjadas pela disciplina antropológica, explicitando a necessidade dos antropólogos manejarem simultaneamente gramáticas administrativas, políticas e acadêmicas para transitar no terreno “aplicado” com algum sucesso, reproduzindo, de certa forma a formulação de Sol Tax ainda na década de 1950 sobre a “antropologia da ação”, isto é, aquela cuja teoria se produz “ao agir” (Tax 1958 : 17).

O debate sobre o uso da categoria de “indígena” entre os antropólogos envolvidos com o ativismo internacional pró-índio

Ao mesmo tempo em que se elaborava esse movimento de reflexão sobre a dinâmica das mobilizações pró-índio articulando instâncias multilocais e as possibilidades de diálogo entre elas, outra comunidade de argumentação se formava, compondo um debate interno na disciplina antropológica, ligado ao uso do conceito de “indígena” pelos antropólogos envolvidos com o ativismo internacional pró-índio. O debate, que colocou frente a frente antropólogos de diversas nacionalidades a partir de meados dos anos 90, inclusive os noruegueses, representados por Sidsel Saugestad (2004), teve seu auge com a publicação, em 2003, de um artigo do antropólogo sul-africano Adam Kuper (2003) na revista Current Anthropology, intitulado “The Return of the Native”, estendendo-se nos anos seguintes às páginas de outras revistas especializadas. [21] Este debate pode assim ser lido como a expressão das disputas de visão entre antropólogos em relação à militância política pró-índio a partir de uma discussão teórica sobre o uso da categoria “indígena”. Chama a atenção, neste caso, o fato de estarmos mais uma vez diante de um exemplo de interinfluência dos terrenos da “teoria” e da “prática”na antropologia.

Kuper, que foi um dos teóricos que contribuíram para a desconstrução do termo “primitivo” na disciplina, traçando a história da “invenção do primitivo” (Kuper 1988), lançou mão da mesma linha de raciocínio contra aqueles que atuavam no movimento internacional pró-índio usando a categoria “indígena”. Entretanto, ao equacionar a utilização da categoria “primitivo” à utilização da categoria “indígena”, Kuper despolitizou a questão, descontextualizando seus usos diferenciais, o primeiro associado aos projetos de dominação colonial europeus e o segundo às lutas contemporâneas contra os efeitos pós-coloniais do colonialismo. Ao conceder o mesmo estatuto teórico às duas categorias, Kuper igualou as demandas apoiadas pelo movimento internacional pró-índio às demandas de representantes das políticas do apartheid, ignorando — como apontado pela antropóloga brasileira Alcida Ramos no debate travado nas páginas da revista Current Anthropology — questões elementares de diferencial de poder :

Colocar na mesma categoria demandas indígenas por uma diferença legítima, o racismo nazista e o apartheid sul-africano é ignorar os diferenciais de poder. Em outras palavras, colocar os poderes ocidentais de conquista em pé de igualdade com as demandas étnicas por reconhecimento significa tanto ignorar quanto minimizar a violência da expansão ocidental (Ramos 2003:327).

A “tecnificação” do debate teórico sugerida por Kuper acrescentou muito pouco em termos da compreensão dos embates políticos em jogo, por tentar justamente ignorá-los, como se eles não fizessem parte do jogo de uso dos conceitos. Enquanto antropólogos como Fredrik Barth produziram um instrumental teórico que possibilitou compreender as dinâmicas políticas dos fenômenos étnicos, bem como perceber as essencializações como mecanismos políticos que fazem parte dos processos de construção das fronteiras étnicas (Barth 1969, 2000), Kuper contribuiu na direção oposta, apontando para aspectos teóricos que engessam as questões e são incapazes de explicar o caráter dinâmico das disputas políticas em torno das categorizações ou, mais do que isso, o fato de que as categorizações são em si mesmas atos políticos.

A “denúncia” feita por Kuper contra os antropólogos que atuam junto ao movimento indígena internacional, acusando-os de praticar uma antropologia “velha” e de reabilitar as “sociedades primitivas” do discurso antropológico clássico, colocando no mesmo saco, sem contextualizar, o uso de termos como “indígena”, “primitivo”, “tribal”, “caçador”, “povo nômade” e afins, estaria ela mesma eivada por uma concepção “velha”, por sua vez, dos fenômenos da política.

No episódio do debate levantado por Kuper, a “questão indígena” emerge como uma arena de construção de fronteiras entre os próprios antropólogos, marcando posições “dentro” e “fora” da academia, da administração pública e da militância política ; entre aqueles que estudam o “global” e aqueles que estudam o “local” ; entre os que pesquisam a “cultura” e os que pesquisam a “política” ; entre os que estudam o “Estado” e os que estudam a “sociedade” etc. ⎯ todas estas diferenciações bastante artificiais e muito mais ligadas a mecanismos de distinção dentro da própria profissão do que a um isolamento real entres esses domínios ⎯ fazendo com que estudar a questão indígena obrigue os antropólogos a refletirem sobre seus próprios mundos, e a se incluírem em um retrato do qual, às vezes e inexplicavelmente, se colocam fora.

As motivações dos antropólogos para o envolvimento em trabalhos junto aos povos indígenas mereceriam por si só um estudo, o que não faz parte, entretanto, do escopo deste texto. Algumas pistas nesta direção podem ser apontadas, entretanto, a partir de depoimentos de alguns deles, nos quais é possível detectar pelo menos duas grandes e importantes linhas de motivações : a primeira ligada a um sentimento moral de correção de injustiças, extremamente bem representada neste depoimento de Sol Tax ⎯ um dos antropólogos que primeiro se envolveram com a defesa dos direitos indígenas à autodeterminação ⎯ sobre sua relação com os índios :

Vários índios [...] me ofereceram sua amizade e eu retribuí. Mas isto seria suficiente para explicar quase 60 anos tentando ser útil [a eles] ? Há prazer e satisfação em qualquer oportunidade de ajudar um amigo e, desde a infância, busco estas oportunidades. Eu sentia uma combinação de emoções de raiva e injustiça ⎯ o colega de classe errado sendo punido, a criança apanhando do valentão. Mas cresci para ver que, embora fossem os atos de injustiça individual que despertassem chispas de raiva e consternação em mim, era a injustiça social que me atingia mais profundamente o coração, produzindo um rancor duradouro. Pude entender assim, perfeitamente, os relatos dos índios sobre seus sentimentos de perda (Tax 1988:15, trad. do orig. em inglês).

Esta linha pode ser conectada, sem dúvida, ao sentimento de indignação contra o genocídio praticado contra os povos indígenas que levou à criação de inúmeras organizações internacionais pró-índio a partir dos anos 60, entre as quais o IWGIA. Uma variante que não se conecta tão proximamente a esta, e que localizamos como uma segunda linha de motivações, é a que se relaciona à presença de certo pensamento utópico entre antropólogos, entre os quais Alan Barnard, um especialista dos San, que chega mesmo a comparar o fenômeno contemporâneo das ONGs à possibilidade de reviver o sentimento de solidariedade coletiva experimentado por aquele grupo, por sua vez associado às utopias anarquistas das sociedades sem Estado (Barnard 2003).

De fato, o ideal de subtrair povos e grupos ao controle do Estado, a partir da perspectiva de mantê-los dentro de sociedades comunitaristas onde não se verifica a presença da propriedade privada e onde não existe uma autoridade política centralizada, faz parte também de algumas correntes do movimento indígena, cujas lideranças têm se manifestado pelo reconhecimento não apenas de povos, mas de nações indígenas. Sem dúvida, motivações menos “nobres”, ligadas a interesses e a cálculos de carreira e prestígio e à mera chance de obter oportunidades de inserção na profissão de antropólogo — seja no campo acadêmico, seja no crescente mercado de trabalho aberto em instâncias governamentais e não-governamentais voltadas para a questão indígena — também fazem parte do jogo de possibilidades que explica a transformação dos antropólogos em “mediadores interétnicos”, com maior ou menor legitimidade junto aos povos indígenas e suas lideranças.

Mais uma vez, as elaborações teóricas de antropólogos noruegueses tornam-se úteis, permitindo observar as relações que se estabelecem entre mediadores índios e não-índios no movimento internacional pró-índio como mais um espaço de construção da fronteira étnica (Barth 1969). Nesse espaço também há lugar para os processos de “complementarização” e “dicotomização” descritos pelo antropólogo norueguês Harald Eidheim, nos quais as relações de colaboração entre diferentes grupos étnicos visando ao alcance de objetivos comuns são acompanhadas de marcações de distinção, nas quais se torna claro o interesse em destacar as diferenças de posição e de identidade entre os indivíduos (Eidheim 1971).

Por outro lado, cabe lembrar ainda que atores até bem pouco tempo vistos como “outros” dentro da disciplina antropológica, como os próprios povos indígenas e os missionários, para citar dois exemplos, têm se apropriado crescentemente dos instrumentos da disciplina e formado boa parte de seus quadros dentro dela. Os missionários têm sido importantes fontes de sentimentos e atitudes ligados ao envolvimento de atores da cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas, ainda que, como já apontado, venham se constituindo como o grande “outro” entre esses atores. Isto não significa, contudo, que muitos dos valores ligados à sua atuação ⎯ como o da “ajuda para a autoajuda”, a valorização de medidas práticas, ao invés de pregações doutrinárias, e a “educação pelo exemplo” ⎯ não façam parte do repertório de outros atores noruegueses.

Cabe lembrar, nesse sentido, que a atuação dos missionários na Noruega tem sido considerada por alguns como o principal fator da unidade nacional do país a partir do século 19, ao conectar com suas atividades de pregação inúmeras comunidades isoladas, além de ter impregnado boa parte dos valores e atitudes individuais, não só dos noruegueses, como também dos Sami. Para que se tenha uma ideia da extensão, ainda hoje, da influência cristã entre eles, vale registrar que o Centro de Estudos Sami da Universidade de Tromsø, conta com a presença de um tradutor da Bíblia para a língua sami. Cabe ressaltar que o cristianismo, sob a égide da corrente læstadiana, surgida em meados do século 19 e ligada à ideia da construção de um “cristianismo propriamente sami, é algo que constitui a parte central da identidade étnica de muitos indivíduos desse povo, servindo mesmo, em algumas regiões da Noruega, para identificá-los.

A atuação internacional dos Sami no campo dos direitos indígenas e no aparato do desenvolvimento : o debate entre “solidariedade” e “interesse próprio”

No caso dos Sami, cabe ressaltar que todos os empreendimentos ligados ao campo de afirmação dos direitos indígenas em âmbito internacional são considerados como parte de suas atividades de “cooperação internacional”, algo que pude depreender de entrevistas e trocas de correspondência com lideranças sami. [22] Eles apontam, assim, para as particularidades que a presença indígena, sob a égide de movimentos de afirmação de identidade étnica e de construção de mecanismos nacionais e internacionais de representação política, introduziu nos debates mais gerais sobre a “cooperação para o desenvolvimento”, ampliando de forma considerável o escopo originalmente previsto de sua atuação, voltado para a promoção do desenvolvimento econômico nos países do “Terceiro Mundo”.

Chama a atenção, neste contexto, a presença do debate entre “solidariedade” e “interesse próprio” nos primórdios da adesão dos Sami ao movimento indígena internacional, reproduzindo as discussões ocorridas no âmbito da cooperação internacional norueguesa de um modo geral. Cabe ressaltar que, à diferença do que ocorreu nos espaços não-índígenas associados ao universo da cooperação norueguesa, o termo utilizado pelos Sami desde as suas primeiras articulações com o movimento indígena internacional foi samarbeid, que significa literalmente em norueguês “cooperação” ou “entreajuda”. O contraste é significativo em relação aos demais setores do universo da cooperação norueguesa, que utilizaram, pelo menos até a década de 1990, exclusivamente os termos hjelp (ajuda) ou bistand (assistência) para qualificar suas relações com os “donatários”. O termo samarbeid só passou a ser empregado quando se tentou, seguindo as tendências do establishment desenvolvimentista internacional a partir dos anos 90, revestir com um conteúdo mais igualitário as relações entre “doadores” e “donatários”, que nem por isso deixaram de manter um viés assimétrico e muitas vezes subalternizador.

Assim, embora a solidariedade tenha sido um valor destacado tanto nas ações dos Sami de apoio ao movimento indígena internacional a partir dos anos 70, quanto nas ações do governo norueguês voltadas ao “Terceiro Mundo” a partir dos anos 50, as primeiras sempre foram vistas como ações de “cooperação” por envolverem uma dimensão associada à luta comum pela conquista de direitos de grupos marginalizados dentro dos respectivos Estados nacionais, permitindo com isso a formação de um sentimento compartilhado de simetria, forjado a partir da construção de um projeto político conjunto. Por outro lado, a solidariedade expressa pelo governo norueguês em suas ações de “ajuda” ao Terceiro Mundo — com sua gênese marcada pela “grande divisão” instaurada pelo discurso de Harry Truman em 1949, que colocou em lados distintos países “pobres” e “ricos”, “subdesenvolvidos” e “desenvolvidos” — acabou por instaurar não um sentimento de identificação, como no caso dos povos indígenas, mas de contraste entre os dois grupos.

Conforme analisado pelo historiador norueguês Terje Tvedt, este segundo tipo de solidariedade calcava-se, na verdade, sobre um sentimento de “altruísmo”, em que se supunha estar se agindo apenas para o “bem do outro”. Nesse contexto, Tvedt destaca o fato de que as ações de cooperação para o desenvolvimento sempre foram apresentadas publicamente sob uma aura de “bondade”, que constituía a principal autorrepresentação do sistema de cooperação norueguês (Tvedt 1998 : 2003). Entretanto, enquanto o objetivo declarado deste último estava ligado aos “bons sentimentos” de um grupo engajado em “dar” a outros, o que de fato estava em jogo, segundo este autor, era a construção de um projeto político que instaurava perspectivas tutelares e se assentava sobre posições assimétricas de poder.

É neste quadro que se podem situar as reivindicações expressas pelos Sami no início da década de 2000 quanto a um aumento da canalização dos recursos destinados pela cooperação norueguesa junto aos povos indígenas para as organizações do povo Sami, segundo aquilo que definiram como urfolk til urfolk samarbeid, isto é, a cooperação de-povo-indígena-para-povo-indígena. De acordo com a fala do representante do Sami Council, Half Halonen, na primeira reunião do Forum for Development Cooperation with Indigenous Peoples, realizado no ano 2000 na Universidade de Tromsø, este tipo de cooperação permitia a implementação de relações mais simétricas no universo da cooperação junto aos povos indígenas, ressaltando o fato de que o Sami Council, ao contrário de outros atores envolvidos no universo da cooperação norueguesa, jamais havia tomado a iniciativa de propor projetos, sempre aguardando ser expressamente consultado por organizações indígenas para se envolver em qualquer tipo de colaboração (Senter for Samiske Studier 2000 : 18).

Segundo Halonen, as primeiras ações de cooperação do Sami Council tiveram início ainda na década de 1970, durante a guerra civil na Guatemala, quando a organização implementou projetos de desenvolvimento agrícola entre grupos de refugiados maias com recursos da NORAD, do Ministério das Relações Exteriores da Noruega e da Swedish International Development Agency – SIDA. Queixou-se, entretanto, de que com o tempo foi se tornando cada vez mais difícil obter recursos junto à NORAD, atribuindo o fato à crença desta última em um suposto envolvimento dos Sami no financiamento da guerrilha na Guatemala, o que sempre foi negado por suas organizações.

Halonen considerou, independentemente destas acusações, ser difícil, de um modo geral, obter recursos da agência norueguesa tanto enquanto organização indígena, como para a cooperação junto aos povos indígenas, reivindicando uma mudança de postura da NORAD em relação a esta questão. No início da década de 2000, segundo informou, o Sami Council mantinha projetos na Guatemala, Nicarágua, Peru, Panamá e Tanzânia (idem). Com a reestruturação da cooperação norueguesa junto aos povos indígenas ocorrida na década de 2000, tais reivindicações foram em parte atendidas, concedendo-se recursos ao Sami Council para trabalhar junto ao povo San e à organização The First People of Kalahari – FPK, no Botswana. Os Sami também obtiveram apoio para colaborar na estruturação de uma organização indígena pan-africana, a Organisation for Indigenous People of Africa – OIPA, com sede na Tanzânia.

As ações no campo da cooperação internacional promovidas pelos Sami com recursos do governo norueguês não se limitam, entretanto, nem ao campo do direito nem ao campo do desenvolvimento, estendendo-se também a iniciativas voltadas à formação de lideranças internacionais indígenas e à produção de conhecimento sobre questões indígenas, atividades que se combinam em inúmeros convênios internacionais na área de ensino superior, apoiados com recursos de The Nowegian Program for Development, Research and Education NUFU (Nasjonalutvalg for utviklingsrelatert forskning og utdanning), administrados pela NORAD, contando com a participação de intelectuais sami de diversas áreas acadêmicas, inseridos em universidades e instituições de pesquisa sami e norueguesas. [23]

O debate sobre a demanda sami de aumento dos recursos da Norad para a cooperação de-povo-indígena-para-povo-indígena

O aumento dos recursos para a cooperação de-povo-indígena-para-povo- indígena (urfolk til urfolk samarbeid) pleiteado pelos Sami foi objeto de diversas contestações por parte de atores não-indígenas ligados à cooperação norueguesa. Destacaram-se, nesse sentido, os argumentos que desqualificaram esta demanda sob a alegação de que representantes da elite sami teriam tão pouca identificação com índios pobres da América Latina quanto alguém da elite norueguesa. Este tipo de contestação foi explicitado, por exemplo, por Indra Øverland, pesquisador norueguês do Norwegian Institute of International Affaris – NUPI, que tem participado de consultorias e avaliações sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas. Assim, segundo palestra de Øverland no Forum for Development Cooperation with Indigenous Peoples de 2002, seria possível distinguir duas posturas básicas na cooperação junto aos povos indígenas : uma que designou de “populista” e a outra, de “tecnocrática”. Ambas enfrentam, a seu ver, problemas para implementar ações visando ao fortalecimento institucional dos povos indígenas e à promoção de seus direitos. Øverland, que associou as organizações dos Sami à postura populista, comentou (segundo o resumo de sua palestra nos anais daquele evento) que

[...] não é nada óbvio que a elite educada e politizada dos povos indígenas dos países ricos tenha muita coisa em comum com os donatários indígenas dos países parceiros. [...] essa elite seria na verdade bem diferente, inclusive, dos próprios povos indígenas de seus países. A cooperação de-povo-indígena-para-povo-indígena estaria intimamente relacionada, assim, a uma moderna ideologia indígena global, que enfatiza as similaridades entre grupos marginalizados em contextos muito diferentes. [...] [Desta forma,] não se deveria assumir automaticamente que a experiência de marginalização em um contexto torne mais fácil comunicar-se ou trabalhar-se com povos vivendo em outros contextos de marginalização. Um indivíduo indígena de um país rico, recebendo altos salários, dominando o Inglês e o Espanhol, usando boas roupas e viajando com um cartão Visa pela América Latina estaria numa posição muito distinta da de seus parceiros ou parceiras locais [nos países donatários]. Os Sami e outros povos indígenas com características “ocidentais” podem ser categorizados de formas muito diferentes da categorização atribuída a povos indígenas de várias regiões latino-americanas (Center for Sami Studies 2002:13, trad. do orig. em inglês).

A fala de Øverland, que aponta para problemas já identificados pelos próprios membros da elite sami (cf. Hætta 2000) e observados em todo o circuito da cooperação internacional junto aos povos indígenas, nos marcos da passagem do “carisma à rotina” e da “profissionalização das ONGs” analisados por diversos pesquisadores do indigenismo no Brasil (Barroso Hoffmann 2009), chama a atenção para outros aspectos que creio merecerem destaque. Em primeiro lugar, ela nos fornece uma boa noção das representações sobre os povos indígenas que circulam no universo da cooperação internacional, entre as quais a concepção de que elites intelectuais indígenas com boa situação econômica seriam um fenômeno restrito aos países “ricos”, reproduzindo com isto velhos estereótipos em que os “doadores” são sempre associados à “riqueza” e os “donatários”, à “pobreza”. Um breve contato com a realidade das elites intelectuais indígenas no Brasil, por exemplo, país emblemático quanto à atuação promovida pelos noruegueses junto aos povos indígenas, seria suficiente para desfazer este tipo de inferência, mostrando que indígenas em boa situação econômica não são um privilégio dos países “doadores”.

Além disso, a fala de Øverland também adverte sobre a dificuldade de se aceitar o fato de que os povos indígenas, tanto quanto quaisquer outras comunidades políticas, dependem da formação de elites para o encaminhamento de suas demandas dentro dos Estados nacionais em que vivem. Cabe registrar aqui a sensação de que novamente se está diante de uma visão preconceituosa em que obter educação nos moldes dos demais grupos da população, ou alcançar patamares econômicos nos níveis daqueles, é algo que de certa forma torna os índios “menos índios”. Nega-se assim, de fato, a existência de uma experiência diferenciada entre quem pertence e quem não pertence a uma minoria étnica, independente do padrão de vida desfrutado, e os diversos modos de se relacionar com a situação de minoria que estas posições implicam.

O desejo de cooperar com outros povos indígenas não é uma unanimidade entre os Sami, nem ser sami é algo que leve alguém de forma inexorável a querer assumir publicamente uma identidade coletiva diferenciada em relação ao conjunto da população, ou ainda a se considerar como “povo indígena”. Todas estas atitudes envolvem, antes de mais nada, a dimensão política dos fenômenos étnicos, tão bem identificada pela antropologia norueguesa, cuja gênese e cujos desdobramentos, particularmente em relação às questões indígenas, examinaremos a seguir.

Se é possível dizer que no caso dos Sami participar dos mecanismos ligados ao universo da cooperação internacional — seja no campo dos direitos, seja no do desenvolvimento — esteve relacionado diretamente aos seus mecanismos contemporâneos de reprodução social, à construção de fronteiras étnicas e à produção de novas formas de representação política, no caso dos antropólogos, o envolvimento com a cooperação foi marcado por injunções muito distintas. Entre elas, como veremos, destacam-se mecanismos de autonomização da disciplina antropológica, questões ligadas ao engajamento político dos antropólogos e seu envolvimento com a “prática”, bem como desdobramentos teóricos envolvendo tanto a análise dos fenômenos étnicos de um modo geral, quanto a constituição da categoria “indígena” como instrumento da luta por direitos políticos.

Em busca de uma postura reflexiva sobre a produção de conhecimentos indígenas : o caso dos antropólogos Sami

Os debates desencadeados em meados da década de 1990 por antropólogos samis formados pela Universidade de Tromsø, que tomaram as páginas do principal periódico de antropologia da Noruega, o Norsk Antropologisk Tidskrift (cf. Hovland 1996 ; Stordahl 1996 ; Thuen 1996), são um bom exemplo daquilo que estou qualificando de “tradição reflexiva” no âmbito da universidade. Refiro-me ao significado destes debates enquanto reflexão sobre as práticas políticas dos Sami e, particularmente, sobre o processo de “tomada” dos espaços universitários e acadêmicos por seus intelectuais, iniciado com a criação do Nordic Sami Institute – NSI, em 1974, na cidade de Kautokeino. Desde aquela época, já havia se tornado claro para boa parte dos intelectuais samis que alcançar a posição de produtores de conhecimento sobre si mesmos era uma questão central para o avanço das lutas em defesa de seus direitos dentro do Estado norueguês. Esta perspectiva é explicada da seguinte maneira por Vigdis Stordhal, uma das antropólogas samis envolvidas nos debates na referida revist :

As possibilidades dos povos do 4º Mundo assumirem o controle sobre o campo do conhecimento repousam em conseguirem estabelecer suas próprias instituições de conhecimento e em atingirem uma posição dialógica, tanto do ponto de vista organizacional como acadêmico, em relação aos órgãos e às instituições da sociedade majoritária (Stordahl 1996 : 177, trad. do orig. em norueguês).

Apesar desta visão favorável à constituição de espaços acadêmicos controlados pelos Sami tal como foi descrita por Stordahl, os intelectuais samis ligados à criação do Nordic Sami Institute – NSI não se opuseram inicialmente à criação de uma área de Estudos Sami dirigida por pesquisadores noruegueses. Isso ocorreu dentro do Instituto de Antropologia da recém-instalada Universidade de Tromsø – UiT, estabelecida pouco antes do NSI, em 1972, com a perspectiva de se tornar uma instituição de vocação regional voltada para a solução dos problemas das populações que viviam no norte da Noruega, incluindo os Sami. [24]

Os fundadores do NSI consideraram inicialmente de forma positiva a perspectiva de manter relações com instituições de ensino superior norueguesas, sobretudo no caso daquelas com influência no desenvolvimento de regiões habitadas pelos Sami, como ocorria com a UiT. Em pouco tempo, contudo, iniciou-se um discurso dos intelectuais do NSI questionando quem deveria ter o direito de propriedade e de definição sobre as pesquisas entre os Sami. Esses questionamentos acabaram levando à dissolução da área de Estudos Sami do Instituto de Antropologia da UiT, apesar do papel estratégico que seus pesquisadores haviam desempenhado em favor dos movimentos etnopolíticos dos Sami, sobretudo ao desafiarem, segundo a colocação de Stordhal, “[...] o universo de sentidos norueguês por meio de suas análises sobre a política de minorias norueguesa”, exercendo também, em muitos momentos, um papel inequívoco de advocacy em relação às reivindicações dos Sami (Stordahl 1996 : 183).

Ao mesmo tempo, também haviam surgido tensões na área de Estudos Sami entre os estudantes samis ⎯ entre os quais a própria Vigdis Stordhal [25] ⎯ e os professores de antropologia. Enquanto a principal preocupação destes últimos era “tornar as partes mais desconhecidas da realidade norueguesa, a saber, os Sami, compreensíveis para os indivíduos noruegueses” (idem:180), havia um enorme desconhecimento dos próprios estudantes samis sobre sua realidade, compondo uma lacuna que reivindicavam suprir, valendo-se de seu background específico como samis. Para muitos deles, a entrada na universidade havia representado a primeira experiência concreta de contato com indivíduos samis de regiões distintas das suas, muitas vezes portadores de formas linguísticas e hábitos culturais diversos, cuja presença criava a possibilidade de obterem um conhecimento de primeira mão que não reproduzia simplesmente o caráter anedótico transmitido pelo sistema escolar norueguês sobre estas diferenças. Além disso, muitos se deparavam pela primeira vez com a produção de conhecimento acadêmico, especialmente etnográfico, sobre seus grupos. Stordhal descreve da seguinte forma o impacto da experiência universitária sobre os estudantes samis de sua geração :

[...] encontramos um mundo novo sobre os Sami nas bibliotecas [...] nas análises históricas, pedagógicas e antropológicas, e ao sermos apresentados aos estudos de ciências sociais. [Além disso,] nós, estudantes de Finnmark, encontramos estudantes samis de Ulsfjord, Manndalen e Skånland. Era libertador e doloroso ao mesmo tempo. Libertador porque adquirimos uma compreensão nova sobre nós mesmos, e doloroso porque percebemos o quanto havíamos sido excluídos de tudo isto antes. Nosso projeto tornou-se então uma parte do projeto sami mais amplo daquela época, que [Harald] Eidheim denominou “the invention of selfhood and peoplehood” (Stordhal 1996 : 181, trad. do orig. em norueguês).

Apesar desse projeto sami mais amplo de “invenção de si mesmos” coincidir com a proposta capitaneada pelos intelectuais do NSI, os estudantes samis de antropologia da UiT passaram a almejar, com o tempo, que o grupo de Estudos Sami da universidade lhes fornecesse os instrumentos teóricos necessários para fazerem a crítica da “política de conhecimento” proposta pelo NSI, que defendia a criação de instituições universitárias e centros de pesquisa controlados exclusivamente por samis, destinados à produção e à disseminação de conhecimentos sobre eles.

Os estudantes de antropologia samis reivindicavam, assim, em outras palavras, o desenvolvimento da capacidade de problematizar ⎯ aquilo a que estou chamando de “reflexividade” ⎯ o papel assumido pelos Sami em relação à produção de conhecimentos voltados para a “representação de si mesmos” ; e isto a partir dos instrumentos analíticos da antropologia e da perspectiva de criar um diálogo entre os membros da comunidade sami, e não apenas entre os samis e os noruegueses. Nesse sentido, criticaram o recuo dos professores noruegueses do Instituto de Antropologia da UiT por terem desistido de manter a área de Estudos Samis, considerando que este fato acabou privando os estudantes samis da possibilidade de cultivarem essa perspectiva reflexiva ⎯ termo empregado por Stordahl ⎯ que se tornou uma das marcas da antropologia entre os próprios samis (idem:184). Nas palavras da autora ao analisar a situação :

As importantes consequências [desse recuo], seja no que diz respeito à compreensão do que ocorria entre professores e alunos, seja na compreensão do que ocorria entre os dois produtores de conhecimento concorrentes ⎯ os meios antropológicos e a intelligentsia sami ⎯ não foram levadas a sério suficientemente. Isto contribuiu, entre outras coisas, para que a antropologia de Tromsø não conseguisse desenvolver um importante lado de sua função crítica, algo que a disciplina, ao menos idealmente, deveria lutar para desenvolver. Ela exercitou uma crítica importante e construtiva sobre a sociedade norueguesa e sobre a compreensão e a administração desta última sobre a sociedade sami, mas o mesmo [...] não ocorreu no caso das proposições sobre o novo papel da elite [intelectual] sami no desenvolvimento da moderna sociedade sami, inclusive quanto ao papel que esta elite política assumiu como produtora de conhecimento (Stordahl 1996 : 184, trad. do orig. em norueguês).

E prossegue, avaliando da seguinte forma as relações entre os estudantes samis e os professores de antropologia :

[...] os meios antropológicos poderiam ter aberto o caminho para o conhecimento crítico em relação à sociedade sami, construindo uma relação de confiança entre estudantes e professores na situação de trabalho, de tal forma que os estudantes ⎯ que também tinham um background cultural que lhes dava legitimidade ⎯ pudessem ganhar segurança para assumir o papel de críticos culturais dos produtores de conhecimento [samis]. Eles poderiam ter desenvolvido o papel de intermediários antropologicamente informados entre o mundo do conhecimento sami e o mundo acadêmico norueguês, funcionando de modo crítico e libertador em relação a ambos. A questão de que a antropologia de Tromsø se situa em um campo de tensões entre o mundo acadêmico norueguês e o contexto da política de conhecimento do 4º Mundo deve ser aceita como um fato. Há, entretanto, novos aspectos nesse contexto que poderiam dar à antropologia de Tromsø e seus parceiros no 4º Mundo uma nova chance para construir relações mútuas de confiança (Stordahl 1996 : 184-185).

As relações de confiança antevistas por Stordhal, se não se firmaram totalmente, ganharam corpo a partir da década de 2000, em grande medida graças à implementação de uma série de iniciativas ligadas ao terreno da cooperação internacional, que dependeram do esforço conjunto e do diálogo de um número significativo de antropólogos da UiT, localizados tanto no Instituto de Antropologia quanto no Museu de Tromsø, com profissionais samis de diversas áreas, distribuídos em outros institutos e departamentos da UiT, bem como no Centro de Estudos Sami da universidade, criado em 1993. Entre essas iniciativas destacaram-se os já citados Forum for Development Cooperation with Indigenous Peoples, realizado anualmente a partir do ano 2000, e o Programa de Mestrado em Estudos Indígenas, iniciado em 2003, gerido pelo Centro de Estudos Samis, contando com a colaboração de antropólogos, historiadores, advogados e professores de literatura samis e noruegueses da UiT, além de professores convidados de outros países ligados ao debate sobre questões indígenas.

O papel dessa universidade como um espaço de diálogo intercultural na Noruega contrasta com o de outras instituições de ensino superior e pesquisa, como o Nordic Sami Insitute e a Sami University College, que apostam em uma postura bem mais “isolacionista” em relação aos intercâmbios e aos trabalhos conjuntos entre pesquisadores samis e noruegueses. Embora esta postura possa ser entendida segundo a lógica da “política de conhecimento” sami, em que a universidade é vista ao mesmo tempo como um campo de produção de conhecimento e um campo político de construção da fronteira étnica, chamo a atenção para os riscos de guetificação decorrentes de tal política, com suas implicações para a qualidade dos conhecimentos produzidos e para o fechamento de portas importantes de diálogo e de consecução de alianças que a história do movimento internacional indígena tem demonstrado ser um elemento estratégico e muitas vezes decisivo para as conquistas de direitos pelos povos indígenas.

Conclusão

Abordámos no presente trabalho a construção do campo da cooperação internacional voltada aos povos indígenas na Noruega, buscando identificar como se deu a articulação de discussões sobre questões nacionais e étnicas nesse país escandinavo com aquelas que foram moldando o movimento transnacional indígena a partir da segunda metade do século 20, bem como o papel estratégico que os antropólogos noruegueses e samis tiveram nesses processos. A inserção da definição de direitos para os povos indígenas no campo da assistência para o desenvolvimento, acompanhada do próprio debate sobre a categoria de indígena, foi uma das marcas centrais da contribuição daqueles antropólogos, dando sequência aos esforços teóricos da disciplina antropológica na Noruega para pensar os grupos étnicos, tanto a partir dos debates domésticos sobre o povo Sami quanto do debate internacional sobre os povos indígenas, que, como vimos, se retroalimentaram em diversas ocasiões.

Na medida em que a Noruega assumiu um lugar no campo do “doador” dentro do universo do desenvolvimento, a cooperação internacional norueguesa ajudou a construir relações de poder e assimetria entre o “Norte” e o “Sul”, o “Primeiro” e o “Terceiro Mundo”, etc.. Contudo, no caso da cooperação junto aos povos indígenas nos vemos diante do surgimento de um outro tipo de perspectiva, que abriu fissuras dentro dessas dicotomias, seja no plano simbólico seja no plano prático, possibilitando a afirmação de identidades que escapavam a elas, e que afirmaram posturas anti-tutelares que vêm ganhando expressão nas lutas políticas contemporâneas de grupos subalternizados, seja em espaços nacionais seja em arenas internacionais de disputa. Na afirmação dessas identidades, a transformação de antigos objetos de estudo em sujeitos de conhecimento tem sido uma característica central, abrindo perspectivas de renovação da disciplina antropológica mais do que bem-vindas.

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[1A autora do presente artigo é membro do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento – LACED do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi professora de antropologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA do mesmo instituto.

[2O presente texto foi elaborado com base nos capítulos 3 e 4 de minha tese de doutorado, Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação : um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas (Barroso Hoffmann 2009).

[3O uso do termo “cooperação internacional” nesse trabalho refere-se ao aparato instituído após a segunda Guerra Mundial, incluindo bancos multilaterais de desenvolvimento, agências do sistema da ONU, agências bilaterais de cooperação, firmas de consultoria, fundações filantrópicas, e organizações privadas laicas e religiosas sem fins lucrativos (com o tempo agrupadas sob a denominação de “ONGs”), voltado à promoção do “desenvolvimento” no “Terceiro Mundo”. Este aparato tem permitido a atuação dos modernos Estados-nação para além de suas fronteiras nacionais, sob os rótulos de “ajuda para o desenvolvimento”, “assistência para o desenvolvimento” ou outras denominações afins, entre as quais “cooperação internacional para o desenvolvimento”, ou simplesmente “cooperação internacional”. Para um estudo sobre a trajetória desses termos e da transformação de seus sentidos, ver Barroso Hoffmann, op. cit.

[4Em torno da virada do milênio, os Sami (conhecidos antes de suas mobilizações etnopolíticas como lapões) tinham uma população estimada em 50.000 indivíduos na Noruega, enquanto o total de imigrantes, segundo números de 1999, era de cerca de 275.000, dentro de uma população total de 4,5 milhões de habitantes. A Noruega é o país que concentra a maior parte da população Sami, estimada, à mesma época, em 20.000 indivíduos na Suécia, 10.000 na Finlândia e 2.000 na Rússia (Península de Kola).

[5Refiro-me aos dois períodos de subordinação, primeiro à Dinamarca, entre 1380 e 1814, e depois à Suécia, entre 1814 e 1905.

[6Em seus primeiros anos de funcionamento, a cooperação norueguesa junto aos povos indígenas concentrou-se em países da América Latina. Com a criação de protocolos e organismos da ONU voltados a esta temática (sobretudo a partir da década de 1980), o avanço dos debates internacionais sobre os direitos destes povos e o reconhecimento de novos grupos dentro da categoria de indígenas, a cooperação norueguesa foi se ampliando e passou a incluir também povos da Ásia, África, Oceania e das regiões árticas da Europa.

[7Refiro-me ao estabelecimento da Década Mundial do Desenvolvimento Cultural (1988-1997), lançada pela UNESCO sob a égide da ONU, que tinha como principal objetivo obter o reconhecimento sobre a importância de se considerar a dimensão cultural nos processos de desenvolvimento.

[8Este argumento serviria de base à adesão de inúmeros atores políticos situados no espectro político da esquerda ao canal das ONGs ao longo dos anos 80 e seguintes no campo indigenista na América Latina, em detrimento dos canais tradicionais nesta arena na esfera do Estado.

[9Para mais detalhes sobre a influência dos autores africanos pertencentes aos movimentos de descolonização sobre as lideranças ligadas aos movimentos etnopolíticos dos Sami, ver Barroso Hoffmann (2009), capítulo 2.

[10Embora os membros do IWGIA não tenham participado diretamente da Conferência de Barbados, reconheceram nela exatamente o tipo de evento que haviam se proposto a promover quando da criação da entidade, não o tendo feito por falta de recursos financeiros.

[11Ver nesse sentido particularmente a Agenda 21 e a Convenção da Diversidade Biológica, ambas estabelecidas em 1992 durante a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – CNUMA.

[12Ver item sobre o PNPI adiante.

[13Apesar da consagração do termo “etnodesenvolvimento” para indicar projetos elaborados a partir das premissas indígenas desde a década de 1980, grande parte dos documentos do IWGIA, pelo menos até os anos 90, usou em seu lugar o termo “autodesenvolvimento”.

[14Ver a esse respeito, por exemplo, as críticas formuladas pela assim chamada Escola de Manchester no âmbito da antropologia social britânica em África (Oliveira 1988).

[15A problematização feita por Gray sobre distinções maniqueístas entre organizações “verdadeiramente” indígenas e organizações “eleitoreiras” aponta para a mesma direção de estudos recentes no campo da antropologia da política no Brasil, que buscam relativizar a compreensão de mecanismos clientelistas nas políticas locais como um “mal” em si mesmo, mostrando que em muitos casos esses mecanismos são o único canal de acesso a determinados bens e serviços públicos, sem o qual populações destituídas de recursos econômicos e políticos não teriam como alcançá-los. Para uma síntese desses estudos, em que se destacam aqueles realizados por Moacir Palmeira e Beatriz Heredia, ver Kushnir (2007). No caso indígena que estamos analisando, este tipo de abordagem poderia ser bastante útil para relativizar perspectivas eurocêntricas sobre a política, infelizmente predominantes entre a maiorparte dos antropólogos europeus e norte-americanos envolvidos com a cooperação internacional junto aos povos indígenas, em que os processos políticos consagrados nas democracias liberais de seus países de origem são considerados os únicos “legítimos”. Cabe ressaltar, contudo, que ficar de fora dos canais tradicionais da política significa, para muitas lideranças indígenas, a única forma de garantir que os índios possam exercer o “controle social” sobre os políticos e cobrar o cumprimento de promessas colocadas por eles, justificando a existência de organizações indígenas sem vínculos com a política tradicional. Para um exemplo desta posição, ver a fala do líder indígena José Adalberto Macuxi no filme Pisa Ligeiro, do diretor Bruno Pacheco de Oliveira, lançado em 2004, sobre as organizações indígenas no Brasil.

[16A revisão da Convenção 107 de 1957 da OIT, de caráter assimilacionista, deu lugar à Convenção 169, de 1989, que garantiu aos indígenas o direito de se manterem como grupo etnicamente diferenciados dentro dos Estado nacionais,

[17Segundo dados divulgados pela NORAD, as seis ONGs que receberam mais recursos para atuar em projetos junto aos povos indígenas no ano de 2001 foram a Rainforest Foundation Norway, que contou com 12 milhões de coroas norueguesas daquela agência, seguida da Norwegian People’s Aid e da Norwegian Aid Church, com 9 milhões cada uma, do SAIH, com 8 milhões, da Save the Children, com 5 milhões, e do IWGIA, com 2 milhões de coroas norueguesas (www.norad.no.files.UrfolkNGO.xls). Por outro lado, dados relativos ao apoio concedido às missões para a mesma finalidade, divulgados em 1999, no documento do governo que traçou as diretrizes para a cooperação norueguesa junto aos povos indígenas (Oppfølginsgsplan for arbeid med urfolk i bistanden), informaram que a NORAD forneceu 15,4 milhões de coroas norueguesas à Den Norske Misjonsallianse para desenvolver quatro projetos na Bolívia ; 5 milhões de coroas à Norske Pinsemenigheters Ytremisjon para seis projetos na Bolívia, na Guatemala e no Paraguai ; 4,5 milhões de coroas à Norsk Luthersk Minsjonssamband para seis projetos na Bolívia, no Peru e no Quênia ; e cerca de 6 milhões de coroas para a Den Norske Santalmisjon, Den Norske Tibetmisjon, Det Norske Misjonselskap e para o Frelsesarmeen (Exército da Salvação) para o desenvolvimento de sete projetos em Bangladesh, Equador, Índia, China e Camarões (http://odin.dep.no/ud/norsk/dok/andre_dok/handlingsplaner/032005-994017/dok-bn.html)

[18A tese, intitulada The Inconvenient Indigenous. Remote Area Development in Botswana, Donor Assistance and the First People of the Kalahari, foi defendida em 1999 no Instituto de Antropologia da Universidade de Tromsø.

[19Entre os casos de sucesso desse modelo em democracias liberais do “Primeiro Mundo”, Saugestad menciona a formação de um Governo Autônomo da Groenlândia, favorecendo a autodeterminação dos Inuit ; a constituição de Parlamentos sami, na Escandinávia ; a criação do território de Nunavut, no Canadá, como um território de governo autônomo dos Inuit ; a formação do tribunal Waltangi, em Aotearoa/Nova Zelândia, que abriu possibilidades de compensação para as perdas territoriais dos Māori ; e o caso Mabo, que suspendeu a doutrina da terra nullis na Austrália, abrindo a possibilidade para o reconhecimento de direito territoriais para os aborígenes australianos (Saugestad 2005 : 25, 32). Poderíamos acrescentar aos exemplos dados pela autora o caso das demarcações de terras indígenas no Brasil a partir do final da década de 80, segundo um modelo de demarcação de grandes territórios, como o dos Kayapó e o dos Yanomami, apenas para citar dois dos casos mais conhecidos, modelo este que foi implantado com o apoio de organizações de cooperação internacional, sobretudo nos marcos da aliança entre interesses indígenas e interesses ambientais.

[20A atuação da NORAD junto ao RADP não teve continuidade devido ao fim da cooperação bilateral entre a Noruega e o Botswana em meados dos anos 90, em função de razões que nada tinham a ver com os San, mas com a reversão do quadro político na região Sul da África, com o fim do regime do apartheid na África do Sul e o sucesso econômico alcançado pelo Botswana.

[21Alguns dos antropólogos envolvidos no debate, além dos citados no corpo do texto, foram Béteille (1998), Bowen & Colchester (2002), Turner (2004), Kenrik & Lewis (2004) e, mais recentemente, Barnard (2006).

[22Refiro-me particularmente às informações que me foram prestadas por Jon Petter Gintal, consultor do Parlamento sami da Noruega, e às entrevistas realizadas com Aili Keskitalo e Leif Dunfjeld, respectivamente, a presidente do Parlamento sami da Noruega em 2006, e um dos representantes sami no Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU. Dunfjeld também representou os Sami em diversas ocasiões no grupo encarregado da elaboração da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU.

[23O NUFU foi criado em 1991 por meio de um acordo firmado entre o MRE e o Conselho Norueguês de Pesquisa, tendo como objetivo estabelecer convênios de cooperação entre universidades norueguesas e universidades dos países em desenvolvimento, sobretudo nos países em que a Noruega desenvolvia atividades de “cooperação internacional”. Em 1999 sua administração foi transferida para a NORAD (Liland & Kjerland 2003 : 172-176).

[24A implantação da área de Estudos Sami do Instituto de Antropologia da UiT foi feita sob a direção do antropólogo Harald Eidheim, que morou durante alguns anos em Tromsø para se dedicar a ela.

[25No segundo semestre de 2006, quando realizei minha pesquisa de campo na Noruega, Stordhal ocupava a direção do Instituto Sami de Psiquiatria na cidade de Karasjok. Além de sua contribuição ao debate sobre a antropologia e os Sami no Norsk Antropologisk TidskriftNAT, publicou ainda naquela revista um artigo sobre Harald Eidheim, em 2005, intitulado “Harald Eidheims betydning for studiet av samiske forhold sett fra et samisk ståsted” (O significado de Harald Eidheim para o estudo das relações samis de um ponto de vista sami), no número especial dedicado aos 80 anos daquele antropólogo, de quem foi aluna e com quem sempre manteve estreitas relações.