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International Encyclopaedia
of the Histories of Anthropology

Da Desconstrução da dualidade nação‑império à reafirmação da antropologia em Portugal: história e desafios contemporâneos da Associação Portuguesa de Antropologia (APA)

Carla Costa Teixeira

Universidade de Brasília, CNPq

2021
To cite this article

Teixeira, Carla Costa, 2021. “Da Desconstrução da dualidade nação‑império à reafirmação da antropologia em Portugal: história e desafios contemporâneos da Associação Portuguesa de Antropologia (APA)”, in BEROSE International Encyclopaedia of the Histories of Anthropology, Paris.

URL BEROSE: article2484.html

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Published as part of the research theme «History of Portuguese Anthropology and Ethnographic Archives (19th-21st century)», directed by Sónia Vespeira de Almeida (CRIA/NOVA FCSH, Lisbon) and Rita Ávila Cachado (CIES-IUL, Lisbon)

Abstract: There are few studies on anthropology in Portugal that focus on the Portuguese Anthropological Association (APA). Considering this gap, this article seeks to contribute to the understanding of the recent institutionalization of anthropology in Portugal through the work of the APA. It is based on documentary research in the association’s archives and website and on interviews with anthropologists of different generations and from diverse institutional settings. The article makes a pioneering historical analysis of the APA conferences, resulting both from its records and from participant observation in the 2013 and 2019 conferences. Aiming at a bibliographical survey on the anthropology done in Portugal, it first presents a synopsis of the way Portuguese anthropologists tell the history of the discipline – its milestones, its tensions and the way it related to empire-building and nation-building in Portugal; and then situates the APA as co-producer of this trajectories and reflects on the challenges the association has faced in consolidating the field of anthropology, particularly in research and teaching.

A Associação Portuguesa de Antropologia (APA), registada formalmente em 1989, nasceu da reunião de alguns jovens antropólogos que sentiram necessidade de se encontrar, nas palavras de Pina-Cabral [1], como se fosse uma articulação entre amigos. [2]Eram anos de expansão institucional da antropologia em Portugal, no ambiente propício instaurado pela recente redemocratização, momento em que antropólogos formados no exterior puderam regressar e uma nova geração se formava nas licenciaturas recém criadas. Desde então, a APA tem sido um polo dinamizador da moderna antropologia em Portugal: desenvolveu iniciativas voltadas para a inserção das/dos antropólogas/os em diferentes domínios profissionais, fortaleceu redes internacionais com outras associações, organizou sete congressos, realizou dois inquéritos sobre o perfil do antropólogo em Portugal, modernizou a forma de divulgação de informações sobre antropologia e de comunicação com seus associados através da criação de um Website [3], tem promovido outras atividades periódicas como fóruns, concursos para atribuir bolsas de investigação e premiar diferentes categorias de produção antropológica. O reconhecimento da importância da APA expressa-se também no crescimento do número dos seus associados, que passaram de 132 sócios em dezembro de 1989 [4] para aproximadamente 800 antropólogas e antropólogos em 2015 [5]. Aprofundar a compreensão dessa trajetória, com os seus avanços, dificuldades e desafios, é o objetivo do presente artigo. [6]

Introdução

No dia 15 de julho de 1989, o Diário da República publicou a constituição da Associação Portuguesa de Antropologia (APA), com excertos do respetivo estatuto em que os fins da associação são assim descritos:

“promover e divulgar a antropologia, contribuindo activamente para a sua inserção social em Portugal, assim como para a criação de espaços de inter-relacionamento no interior da comunidade científica a nível da antropologia e com outras ciências afins” (Diário da República – III Série, 12 381, No 161 – 15-7-1989).

Haviam passado 15 anos da “Revolução dos Cravos” e o regime democrático florescia em Portugal, trazendo importantes mudanças políticas, económicas, sociais e culturais, assim como a reestruturação das universidades e da pesquisa científica. Consequentemente, isso também teve efeitos no campo da antropologia. São muitos os escritos sobre a antropologia feita em Portugal nesse período, produzidos por diferentes antropólogos que guardam entre si certa cronologia compartilhada dos principais marcos dessa história (Branco, 1986; Pina-Cabral, 1991; Leal, 2000, 2018; Afonso, 2006; Viegas & Pina Cabral, 2014; Bastos & Sobral, 2018; Godinho, 2019). Contudo, dentre tais reflexões, poucas são as que abordam a Associação Portuguesa de Antropologia e, quando o fazem, é de forma breve e pontual. Eis alguns exemplos:

“Throughout this stage the first undergraduate degree courses were established (all in Lisbon), new university departments were founded, and a professional association of anthropologists was established — the APA (Associação Portuguesa de Antropologia) — directed successively by a series of academics” (Afonso 2006: 161).

“Fundada em 1989, a Associação Portuguesa de Antropologia (APA) tem vindo a acompanhar os altos e baixos da disciplina. A APA constituiu-se como uma voz para a disciplina sempre que houve matérias de interesse comum e desde 2005 é membro fundador do World Council of Anthropological Associations” (Viegas e Pina-Cabral 2014: 321).

“With the double purpose of updating a scattered database and achieving an accurate profile of its constituency, in 2015 the Associação Portuguesa de Antropologia (Portuguese Anthropological Association) launched an online questionnaire to be filled in by people who identified themselves as anthropologists” (Bastos e Sobral 2018: 1).

Ou ainda:

“Los congresos de la Associação Portuguesa de Antropologia, fundada em 1989, son populares y merecen el interesés de colegas de otros países” (Godinho 2019: 17).

Tomando como inspiração tal lacuna, este trabalho busca contribuir para a compreensão do processo de institucionalização recente da antropologia em Portugal a partir da atuação da APA e em torno da mesma: os seus congressos, as suas redes e articulações. Toma por base pesquisa documental nos arquivos da Associação situados no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e no seu Website, entrevistas a antropólogos de diferentes gerações e com afiliações institucionais diversas, levantamento dos registos dos congressos da APA (e participação observante nos congressos de 2013 e 2019), bem como levantamento bibliográfico sobre a antropologia feita em Portugal.

Com esse objetivo, primeiro apresentarei uma sinopse da forma como antropólogas e antropólogos portugueses contam a história da disciplina (marcos, tensões e relação com a construção de Portugal), para então situar a APA enquanto co-produtora desse percurso.

Narrativas antropológicas: marcos, pessoas e instituições

A viragem política do 25 de abril de 1974 que pôs fim ao regime do “Estado Novo” (1933-1974) é o divisor de águas fundamental do entendimento dos antropólogos sobre a trajetória do fazer antropológico em Portugal. Uma trajetória cuja memória registada em escritos e relatos orais é muito mais profunda e requer, portanto, que nela nos debrucemos antes de abordarmos esse período mais recente.

Podemos dizer que o passado disciplinar da antropologia social e cultural [7], tal como é evocado por diferentes autores em narrativas essencialmente concordantes, remonta ao século XIX e à influência do Romantismo na recolha de tradições orais, cantos e canções populares, costumes regionais e locais, cultura material, com ênfase no mundo rural, em especial as regiões do Douro e do Minho, conotadas com o “berço” da nacionalidade (Branco, 1986; Leal, 2000; Pina-Cabral, 1991; Afonso, 2006; Bastos & Sobral, 2018, entre outros) [8]. Esse investimento é indissociável do interesse em definir a especificidade do povo português, por meio da construção de certa “ruralidade” como depositária das suas tradições. Em relação a este primeiro momento, que se estende até o início do regime de Salazar nos anos 1930, são destacados os nomes de Adolfo Coelho (1847-1919), Teófilo Braga (1843-1924), Consiglieri Pedroso (1851-1910), Rocha Peixoto (1866-1909) e Leite de Vasconcelos (1858-1941). Uma inflexão é apontada para destacar o quanto o Ultimato britânico de 1890 [9] e a crise da monarquia portuguesa — num reforço mútuo entre ações políticas e produção intelectual — geraram profundo mal-estar nos antepassados da antropologia como Adolfo Coelho e Rocha Peixoto que expressaram a ideia de decadência portuguesa (Leal, 2000).

Quanto ao período do “Estado Novo” (1933-1974), Jorge Dias (1907-1973) e a sua equipa de investigadores – Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990), Benjamim Enes Pereira (1928-2020), Fernando Galhano (1904-1995) e Margot Dias (1908-2001) – são geralmente reconhecidos como os “pais fundadores” da antropologia social e cultural, responsáveis por uma certa modernização teórica e metodológica da disciplina em diálogo com as correntes internacionais. Segundo Cristiana Bastos e José Manuel Sobral, “Dias claimed to pursue the ethnographic enterprise of studying the Portuguese people that had begun in late nineteenth century and at the same time he introduced in Portugal, in limited ways, elements of modern anthropology” (2018:6).

A produção de Jorge Dias é considerada, por si só, ilustrativa dos paradoxos de uma “nova” ciência antropológica desenvolvida em pleno salazarismo. Por um lado, o seu doutoramento foi feito na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial (com uma tese sobre Vilarinho da Furna, nordeste de Portugal, defendida na Universidade de Munique em 1944); por outro lado, algumas das principais figuras alemãs e austríacas com que dialogou nesse período, como Richard Thurnwald (1869-1954; ver Stoll 2020), não eram representativas do racismo nazi, mas do cosmopolitismo universalista anterior ao Terceiro Reich [10]. São destacados os seus primeiros trabalhos de mapeamento da cultura material do mundo rural, bem como a relevância dos seus estudos de caráter nacional sob influência da antropologia boasiana nos anos 1950 – que alguns autores consideram um ponto de viragem na trajetória de Dias (Afonso, 2006: 159) –, ou ainda os estudos de comunidade, considerados um novo momento da antropologia em Portugal (Sobral, 2007: 485). De referir igualmente a ênfase atribuída ao seu envolvimento, marcado por ambiguidades, com os estudos do mundo colonial português sob uma perspetiva culturalista (principalmente os Macondes de Moçambique). [11]

Apreende-se, assim, da leitura dos diferentes artigos e obras aqui referenciados, mas também em entrevistas com alguns dos autores, que Jorge Dias transitou ao longo de sua jornada entre as etnografias da ruralidade portuguesa, com foco na cultura material e no comunitarismo, e as investigações na África portuguesa, de uma perspetiva culturalista. Consequentemente, Dias poderia ser enquadrado, dependendo da obra considerada, ora na antropologia da construção da nação, ora na antropologia da construção do império.

Esse debate sobre a vocação da antropologia portuguesa foi forte a partir, principalmente, do trabalho de Leal (2000). Em meados da década de 2010, parecia já relativamente consensual o ponto de vista historiográfico sintetizado por Viegas e Pina Cabral: “Sempre que o império se tornava politicamente menos relevante, o folclore e a etnologia assumiam centralidade; sempre que crescia a relevância política do império, a antropologia dos povos exóticos dominava a disciplina” (2014: 312). Em entrevista realizada em 29/05/2019, João Leal ponderou que, ao olhar para o campo hoje, o que haveria de novo é que há um conjunto de colegas a chamar a atenção para a importância da antropologia física/biológica; e outros que passaram a se interessar pelos “saberes coloniais” numa perspetiva mais abrangente, incluindo etnografias realizadas por agentes do império que não antropólogos. Tal novidade, segundo avaliou, vem tornar mais complexo o “nosso entendimento” da antropologia portuguesa.

As instituições a que Jorge Dias se vinculou também reforçam a ideia de “navegação” entre as duas vertentes da antropologia – construção da nação e construção do império – inicialmente propostas por Stocking Jr. (1982): Dias dirigiu, a convite de Mendes Correia, a secção de Etnografia do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular (CEEP) na Universidade do Porto (veio a dirigir o CEEP após a morte de Mendes Correia), deu aulas na Universidade de Coimbra, no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos [12] e na Universidade de Lisboa. O protagonismo de Jorge Dias é reconhecido também por ter criado unidades de investigação e de museologia, como o Centro de Estudos de Etnologia (CEE), o Centro de Estudos de Antropologia Cultural (CEAC) e o projeto do Museu de Etnologia – cuja concretização, todos destacam, não chegou a ver por ter falecido precocemente em 1973.

A “Revolução dos Cravos”, em 25 de abril de 1974 [13], é interpretada como uma rutura com a institucionalização em curso, marcada por uma relação de proximidade com o regime salazarista. Duas dimensões são destacadas. A investigação sobre o mundo rural passou, na linha do trabalho pioneiro de José Cutileiro (1977), a ter como foco os conflitos e, desta forma, romperam com o projeto nacionalista em prol de um projeto sociológico (Pina-Cabral, 1991: 40). E como sequela da Guerra Colonial (ou guerra de libertação), os antropólogos viveram inicialmente o que foi denominado por Branco como um “luto intelectual” da incipiente comunidade, expresso pela “abstinência forçada em relação à África” (Branco, 2014: 376). O Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina foi fechado por ordem governamental entre final de 1976 e 1979 (Pignatelli et al., 2016); e quando reaberto, reformulado como Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, ainda se manteve uma “autêntica aversão se alguém falasse da África”. [14]

A leitura predominante sobre as primeiras décadas pós revolução (de meados dos anos 1980 até ao início dos anos 2000) é marcada pela atribuição de forte capacidade construtiva em termos institucionais e políticos, em que pesa o referido “luto” inicial decorrente das elaborações críticas sobre a agora chamada “antropologia colonial” [15]. Estes são os anos da expansão dos cursos de licenciatura em Antropologia criados na Universidade Nova de Lisboa (1978), no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, também em Lisboa (1982), na Universidade Fernando Pessoa no Porto (1990-2003), na Universidade de Coimbra (1992), na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (em Miranda do Douro, entre 1998/1999 e 2008/2009). Se algumas destas iniciativas não perseveraram, as licenciaturas em Lisboa desdobraram-se em mestrados sobre temas específicos em antropologia social e em programas de doutoramento, alguns articulando diferentes universidades. Em 2015, segundo “O Perfil do Antropólogo em Portugal”, existiam: “5 instituições de ensino superior com oferta educativa na área científica da antropologia, com planos de estudos que abrangem os vários ciclos de estudos ao nível de licenciaturas, mestrados e doutoramentos bem como pós-graduações e cursos livres de especialização com durações variadas” (Pignatelli & al., 2016: 33).

Também a ampliação de revistas especializadas em antropologia e o crescimento de centros de investigação são sublinhados, com destaque para o Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) [16] – criado em 2007 – que reúne 87 investigadores e 350 colaboradores [17]; e para a revista Etnográfica [18]. Além do CRIA, é ressaltado o Instituto de Ciências Sociais, que se transformou em laboratório associado da Universidade de Lisboa no início dos anos 2000. A afirmação do movimento de ampliação dos centros de formação pós-graduada e de investigação vem vinculada à constituição de um sistema nacional de investigação científica, impulsionado pelo ingresso na União Europeia – sendo central o nome de José Mariano Gago. [19] Na conceção de Mariano Gago, contudo, a relação entre a consolidação das ciências e a entrada de Portugal na UE não é determinista, visto que, nas suas palavras, já havia antecedentes:

“Assiste-se ao progressivo enraizamento social e político do objectivo de desenvolvimento científico do país (Mário Soares vai mesmo chamar-lhe — e desta forma proclamá-lo — um verdadeiro desígnio nacional), que se torna por fim geral e praticamente consensual” (Pina-Cabral, 2011: 394).

A coprodução entre Estado e ciência coloca-se agora noutros termos e esse já é o período de atuação da Associação Portuguesa de Antropologia (APA), que será daqui por diante o meu fio condutor.

A APA e o campo da antropologia em Portugal

A criação da APA é parte do que tem sido identificado como a antropologia crítica que a democracia permitiu florescer em Portugal, a qual integra, como vimos na narrativa acima, um processo maior de consolidação e expansão da centralidade do desenvolvimento científico no país. Esse processo seria interrompido, em termos de investimentos, com os anos de austeridade instaurados pela chamada “troika” [20] no início dos anos 2010 e permanece, em certa medida, ainda hoje – pelo menos no que concerne à antropologia e por razões que não podem ser compreendidas apenas a partir das restrições financeiras, como veremos na secção final.

Nesta trajetória, os congressos da APA e a sua crescente internacionalização expressam a vitalidade da antropologia em Portugal como veremos na próxima secção. Contudo, um olhar para a reprodução institucional da Associação indica fragilidades mais ou menos acentuadas consoante o período. Pude observar esta dimensão ao examinar os documentos disponíveis no Website da Associação, nos arquivos da sua secretaria localizada no ICS-UL, e ao cotejar as informações sobre os Corpos Sociais que se sucederam desde a sua criação com as entrevistas que realizei e os pronunciamentos públicos no VII Congresso da APA realizado em 2019.

Fig. 1
Pina Cabral (ICS-UL), Susana Viegas (ICS-UL), Brian O’Neill (ISCTE), Clara Saraiva (CEC-UL), Carlos Nuno (ESCS-IPL), José Sobral (ICS-UL), “Sessão de homenagem aos ex-presidentes” da APA, VII Congresso APA 2019, Lisboa. Cabe destacar que Brian O’Neill compôs a Mesa, mas, conforme anunciado no evento, não foi presidente da APA.
Fonte: Acervo pessoal Antónia Lima.

Para dar um exemplo, começo por retomar uma situação que me levou a rastrear informações discrepantes em diferentes registos sobre quem havia sido o 1º presidente da APA. Em entrevista (14/08/2019), pedi a Pina Cabral que me ajudasse a reconhecer as assinaturas no original dos Estatutos da APA que havia encontrado nas pastas e caixas de documentos antigos. De entre os cinco antropólogos assinantes, identificou quatro assinaturas na seguinte ordem: a dele próprio e as de Jorge Crespo, Fernando Freitas e José António Braga Fernandes Dias. Nessa ocasião, também declarou ter sido o 1º presidente da Associação. Contudo, ao consultar o Website da APA, verifiquei que figurava o antropólogo Raul Iturra nesta condição. Recorri, então, às primeiras atas das reuniões da direção da APA, mas a leitura inicial não permitiu identificar quem fora o 1º presidente, visto que não o denominam, referindo-se-lhe apenas como “presidente”. Alguns colegas, um pouco surpresos diante das minhas dúvidas, ponderaram que essa imprecisão poderia dever-se ao facto de Pina Cabral ter sido o presidente fundador e Raul Iturra o 1º presidente eleito.

Retornei às atas das reuniões de direção para uma consulta mais cuidadosa. Localizei, então, na ata no 9, o seguinte trecho esclarecedor:

“Reuniu-se no dia doze de outubro de mil novecentos e noventa a direcção da Associação Portuguesa de Antropologia sem a presença de seu Presidente que se encontra no estrangeiro por razões profissionais.
A reunião foi presidida pelo Vice-Presidente, Jorge Crespo, (…) Sérgio Pereira informou do andamento do projecto do ensino e dos atrasos verificados por motivo de doença do professor Raúl Iturra.”

Parecia, portanto, que Iturra não poderia ser o presidente da APA em 1990. Diante disso e da informação de que Pina Cabral havia estado em viagem de pesquisa a Macau em outubro de 1990 [21], optei por manter a informação dada por ele de que fora o 1º presidente da APA — reafirmada também na sua entrevista ao CPDOC-FGV em 2010 [22] (ver Fig. 3). Nesta decisão considerei também que: o seu nome aparece nas atas anteriores (ao contrário do nome de Iturra, que surge somente na ata no 9 acima transcrita); Pina Cabral integrou a já referida mesa da “Sessão de homenagem aos ex-presidentes” da APA realizada em 4 de junho de 2019, no VII Congresso da APA em Lisboa. Para além disso, a sua informação sobre Jorge Crespo ter assumido, como vice-presidente, a direção, quando Pina-Cabral se afastou para se dedicar à EASA em 1990, parecia adequar-se melhor às informações referidas acima. Posteriormente essa informação veio a ser confirmada quando localizei no Boletim no1 da APA uma pequena nota em inglês anunciando a criação da Associação, na página 5, que dizia: “João de Pina Cabral is the Presidente, Jorge Crespo the Vice-Presidente, and Fernando Santos the Secretary”.

Fig. 2
Composição da 1ª Direção da APA.
Fonte: Boletim no 1 – APA, Dezembro 1989, Website da APA (consultado em 15/09/2021).

Se me detenho em explorar essa imprecisão não é por apreciar anedotas do mundo antropológico ou buscar a “verdade dos factos”, mas sim por avaliar que tem um significado relevante na investigação de processos de institucionalização deste tipo de organizações. Afinal, o cultivo à memória de uma instituição é parte constitutiva fundamental de uma narrativa compartilhada a ser celebrada e, assim, transformada em história factual, com os seus personagens, marcos, datas e realizações. Quando olhamos para os heróis fundadores da antropologia em Portugal, como visto na secção anterior, encontramos um relato relativamente consolidado e pouco disputado. Já quando nos voltamos para a APA, o que vemos logo de início é uma incerteza quanto à correta ordenação dos presidentes na cronologia de seus Corpos Sociais. Uma incerteza que surgiu, ou persiste, após 30 anos de existência.

As dificuldades quanto à sucessão na direção da APA na viragem dos anos 2000 reforça o facto de esta ser uma dimensão delicada da vida institucional. O presidente Carlos Nuno precisou de permanecer durante o ano de 2001, após o final do seu mandato, por falta de listas de candidatura à sucessão no Corpo Social da APA (Ata da Assembleia em 11/03/00) [23]. Neste sentido, o seu sucessor, José Sobral, comentou que quando chegou à presidência em 2002 já não havia o entusiasmo do momento fundacional da APA. A Associação mantinha-se viva administrativamente porque o antigo presidente, Carlos Nuno, e alguns membros do Corpo Social a asseguravam. Assim, José Sobral refere que na sua gestão também encontrou grande falta de mobilização para as pessoas participarem nas atividades da APA. Não se trata aqui de sugerir análises do tipo motivacional ou buscar qualquer outra resposta apressada. O meu intuito com essa breve digressão foi chamar a atenção para a relevância de um olhar cuidadoso sobre informações e formas de registo da vida organizacional que, longe de serem apenas questões administrativas, devem levar-nos a mergulhar no idioma institucional para compreender as relações, práticas, valores e condições de possibilidade subjacentes à APA. Esse “mergulho” será realizado noutro momento, exigindo, sob pena de ser superficial, um investimento distinto do que o que me propus neste artigo.

Fig. 3
Tabela dos Presidentes da APA 1989-2022.
Fonte: Produção da autora com base em entrevistas, dados disponíveis no Website da APA e nos seus arquivos físicos consultados na secretaria da Associação.

Congressos da APA: temáticas e internacionalização

Debrucemo-nos agora sobre os congressos da APA, que expressam o crescimento e o dinamismo da Associação, embora não de forma linear. Como se pode ver no gráfico abaixo (ver Fig. 4), as descontinuidades em termos de aumento do número de inscritos nos anos de 2006 e 2009 não têm relação direta com a mencionada restrição de recursos para a investigação, que seria posterior [24]. O que importa assinalar é que, a partir de 2006, a realização dos congressos tendeu para uma periodicidade mais regular e apresentou clara propensão de amplificação do número de participantes [25] (com crescimento médio de 567,6% no período assinalado) e do volume de trabalhos apresentados – o que indica serem os congressos uma oportunidade de diálogo científico e não um mero espaço de divulgação em que alguns apresentam os resultados de pesquisa para outros que apenas escutam. Em 2006, ocorreram, além das conferências e mesas redondas, 26 sessões paralelas (como eram então designados os painéis, cuja convocação para submissão de propostas ocorreu pela 1ª vez nesses ano [26]), enquanto que em 2009 foram 40 painéis, em 2013 e em 2016, respetivamente, 60 e 91 painéis, e em 2019 esse número deu um salto para 115 painéis.

Fig. 4
Fig. 4. Número de inscritos nos congressos da APA.
Fonte: Produção da autora com base em dados disponíveis no sítio da APA e em seus arquivos físicos consultados na secretaria da Associação.

Sem dúvida, o envolvimento continuado das antropólogas e antropólogos portugueses na realização dos congressos da APA é um elemento fundamental na compreensão do seu sucesso ao longo das diferentes edições. Contudo, não é suficiente, visto que desde 2009 deixaram de ser eventos predominantemente frequentados por antropólogos portugueses. Se o 1º congresso da APA (1993) foi totalmente português [27], em 1999 [28] ocorreram duas mesas redondas sobre a antropologia no Brasil: duas sessões da mesa “Antropologia no Brasil na virada do milênio” (com a participação de cinco antropólogas e três antropólogos brasileiros) [29]; e uma sobre a antropologia em Espanha, denominada “Antropologia em Espanha hoje. Alguns eixos de investigação” (com a participação de uma antropóloga e dois antropólogos espanhóis) [30]. O 3º congresso (2006), por sua vez, já contava na sua comissão organizadora com a presença da então presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Miriam Grossi, e do antropólogo brasileiro Gustavo Lins Ribeiro, que era à época presidente do Conselho Mundial de Associações de Antropologia (WCAA) – além de cerca de vinte antropólogas e antropólogos brasileiros em suas atividades. Daí em diante, o diálogo entre a antropologia portuguesa e a brasileira intensificar-se-á [31], deixará de ser centralizado em torno de alguns nomes já consolidados em ambas as comunidades ou em algumas redes pessoais e generalizar-se-á, distribuindo-se em muitas atividades nos congressos [32]. Guardadas as devidas proporções, o mesmo se verificará com relação à antropologia espanhola.

Fig. 5
Clara Carvalho (CEI-IUL), Juliana Bráz Dias (UnB), Wilson Trajano Filho (UnB), Gustavo Lins Ribeiro (UnB) e Mariano Piçarro. Jantar de Encerramento, III Congresso APA 2006, Lisboa.
Fonte: Acervo pessoal Juliana Bráz Dias.

É imprescindível, portanto, considerar as redes internacionais que são mobilizadas nesses momentos de encontro promovidos pela APA. Num olhar longitudinal, as conexões com as antropologias brasileira e espanhola permanecem as mais densas e significativas, embora em termos de volume sejam claramente distintas – mas há aqui a considerar o tamanho das respetivas comunidades antropológicas. As redes com Inglaterra e França apresentam uma tendência de crescimento, atingindo um máximo de 27 e 22 participantes, respetivamente, em 2019. (ver fig. 2)

Fig. 6
Jean-Yves Durand (UMinho), Miguel Vale de Almeida (ISCTE), Suzana Narotzky (UBarcelona), Federico Neiburg (UFRJ). Sessão Plenária II, IV Congresso APA 2009, Lisboa.
Fonte: Acervo pessoal Antónia Lima.
Fig. 7
Nacionalidade (afiliação institucional) dos participantes nos congressos da APA.
Fonte: Produção da autora com base em dados disponíveis no sítio da APA e em seus arquivos físicos consultados na secretaria da Associação.

Se as conexões europeias não se apresentam tão significativas a este nível, não se deve concluir que não existam. A hipótese mais plausível é que se realizem por outros circuitos. Afinal, em 1990, um ano após a criação da APA, Coimbra sediaria o 1º Congresso da Associação Europeia de Antropólogos Sociais (EASA), cuja comissão organizadora contou com o antropólogo Pina Cabral. Pina Cabral afirmou em entrevista que, tendo presidido à APA logo na sua fundação, afastou-se para se dedicar à também recém criada EASA (1989), que viria a presidir no biénio 2003-2004. Em 2020, Portugal (Lisboa) voltou a sediar o congresso bianual da EASA, na sua 16ª edição, pela primeira vez em modalidade totalmente virtual, sendo considerado o maior congresso já realizado. A EASA, ao longo da sua história, também teve a presença de antropólogas e antropólogos portugueses em vários biénios em diferentes posições do seu comité executivo eleito. [33] Outra associação que vários colegas portugueses indicaram como importante para as suas redes no circuito europeu é a Sociedade Internacional de Etnologia e Folclore (SIEF). Já Jorge Dias havia sido secretário-geral, entre 1954 e 1957, da Comissão de Artes e Tradições Populares, que antecedeu a SIEF, assim denominada a partir de 1964. [34] Além desse envolvimento histórico, há a salientar que Clara Saraiva (presidente da APA entre 2014-2016, 2017-2019 e 2020-2022) foi eleita por três vezes consecutivas (2008, 2013 e 2016) para compor o conselho executivo da SIEF [35]; o 10º Congresso da SIEF (2011) foi realizado em Lisboa, tendo o CRIA como organizador local; e outras antropólogas e antropólogos portugueses também foram conferencistas em congressos da SIEF e membros do seu comité científico.

Fig. 8
Pina Cabral (ICS-UL), Bob Barnes (Oxford), Bill Watson (UKent) e John Davis (UKent). II Congresso EASA 1992, Praga.
Fonte: Acervo pessoal de Pina Cabral.

Um olhar atento sobre esta face pública da APA, os congressos, permite-nos também mapear as principais temáticas da comunidade antropológica portuguesa nas suas interfaces com outras comunidades nacionais que caracterizam tais encontros.

O levantamento de palavras recorrentes no título dos painéis revelou algumas tendências e linhas de interesse. As investigações no eixo temático que aglutina museus, património, memória e tradição destaca-se pelo volume e consistente crescimento – tendo estado presente já no 1º congresso da APA em 1993. Aqui é preciso uma pausa para o entendimento de tal tendência. Museus, património e memória fazem parte da história mais profunda da antropologia portuguesa. Num período anterior a 1974, pela relevância da cultura material de base rural – “cultura popular” (Leal, 2016) – e pela importância dos artefactos trazidos das colónias (com destaque para Jorge Dias, não obstante a existência de significativos antecedentes históricos, inclusive no séc. XIX; ver Barros 2012) para a coprodução científica e política da nação e do império português. Num segundo momento pós-1974, pela relevância das políticas culturais de patrimonialização e da criação (ou renovação) de museus regionais e locais como reflexo da nova vaga de politização da cultura (Wright, 1998) e dos interesses científicos e de inserção profissional dos antropólogos [36].

Também os eixos de interesse em torno de política, governo, poder e resistência; e, em proporções menores, migrações, fluxos, deslocamento e mobilidade apresentam crescimento consistente e encontram expressão nas ênfases das pós-graduações apontadas mais abaixo, a saber: “questões de relevância política contemporânea – e. g. “Direitos Humanos e Movimentos Sociais” ou “Migrações””. Um último comentário: chama a atenção a pouca presença de temas clássicos da antropologia como família, parentesco e conjugalidade; o crescimento recente do interesse em saúde, corpo e terapias [37]; a retomada do termo “cultura” em 2019; e, por fim, é importante esclarecer que o forte interesse em etnografia e trabalho de campo atravessa as várias temáticas que qualificam os painéis (ver fig. 9).

Fig. 9
Eixos temáticos nos congressos da APA.
Fonte: Produção da autora com base em dados disponíveis no Website da APA e nos seus arquivos físicos consultados na secretaria da Associação.

O olhar de Viegas e Pina-Cabral (2014) sobre as pós-graduações em antropologia revela sintonia com o mapeamento temático dos congressos da APA em foco:

“O ensino pós-graduado reflete as áreas de maior interesse temático na disciplina: antropologia visual – e.g. “Culturas Visuais”; “Cultura Material e Consumo”, “Turismo e Património”, “Cultura Visual Digital” –, questões de relevância política contemporânea – e. g. “Direitos Humanos e Movimentos Sociais” ou “Migrações” –, e questões de relevância regional – e. g. “Estudos Islâmicos”, “Estudos Africanos”, “Estudos Indianos” e “Estudos Brasileiros””. (Viegas e Pina-Cabral, 2014: 322)

Se aqui apontamos continuidade entre as temáticas dos congressos da APA e das pós-graduações, o levantamento feito por Paula Godinho sobre a produção antropológica portuguesa dos anos 1990 (2019: 17-23) também é revelador de mudanças nos interesses predominantes nos anos 2000 comparativamente à década anterior. Godinho mapeou 5 temas fortes que guardam similaridade com os eixos principais dos painéis dos congressos da APA entre 2009 e 2019, a saber: memória e mudança social; património e fenómenos de emblematização, mercantilização e turistificação da cultura; fronteira, políticas de identidade e práticas culturais; e sistema de vigilância e controle estatal dos “marginais”. Por sua vez, vida urbana, estudos de género, antropologia e meio ambiente, também mencionados por Godinho, parecem ter sofrido certa desaceleração. Ainda que se deva considerar serem os congressos científicos sobretudo espaços de interação entre investigadores, pelo que a sua conversão em produção bibliográfica na mesma escala não seja necessária, nem esperada.

Fig. 10
João Leal (UNL) e Benjamim Enes Pereira (Homenageado). IV Congresso APA 2009, Lisboa.
Fonte: Acervo pessoal Antónia Lima.

Os congressos científicos são eventos sui generis enquanto palco para a fixação de agendas anteriores e homenagens, mas abrindo espaço para a experimentação de novos saberes científicos. Consequentemente, exibem polémicas e tensões que, digo-o até por experiência própria, se expressam mais abertamente nos pequenos fóruns de discussão formais e informais do que nas sessões plenárias e painéis, onde se busca expressar certo consenso (mesmo que seja em relação aos termos em que as disputas devem ocorrer). Permitem, ainda, tornar permeáveis as separações institucionais e nacionais ao fazer circular num mesmo espaço-tempo pessoas com diferentes inserções, conjugando interação formal e sociabilidade – seja esta improvisada pelos congressistas ou promovida pelos organizadores dos congressos. Com maior ou menor sucesso, os congressos adquirem visibilidade fora dos espaços em que ocorrem e, dessa forma, dialogam com outros ambientes e pessoas, seja por notícias publicadas nos meios de comunicação ou mesmo pela presença dos seus participantes em espaços de convívio e lazer das cidades que os acolhem momentaneamente. A sua dinâmica cria conexões entre investigadores que se encontram em edições seguidas de um mesmo evento, nomeadamente os congressos da APA, ou em outros congressos antropológicos, como sejam os da EASA e da SIEF, mencionados anteriormente, ou ainda as reuniões bienais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e de Antropologia do Mercosul, ou os congressos da Associação de Antropólogos Ibero-americanos em Rede (AIBR), da Associação Americana de Antropologia (AAA) e da União Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas (IUAES) – para mencionar alguns.

Fig. 11
Fig. 11. Carmen Rial (presidente da ABA) e Robert Rowland (presidente da APA), V Congresso APA 2013, Vila Real.
Fonte: Acervo pessoal Raquel Carvalheira.

Tudo isso para afirmar que a APA, por meio de seus congressos, mas não somente, tem inegável relevância sociológica na construção da antropologia portuguesa, embora pouco destacada nos textos consultados. Afinal, atualizar uma comunidade antropológica em termos locais por meio de articulações diversas, integração de antropólogos de diferentes regiões na direção da Associação e circulação das cidades sede dos congressos (Coimbra, Lisboa e Vila Real) – numa realidade de concentração de instituições em Lisboa – não é tarefa fácil. Em especial se considerarmos que a APA, além de propiciar a realização desses “parlamentos científicos internacionais” (Nunes, sd) que são os congressos, promove outras atividades (difusão de informações consideradas relevantes e diferentes interações virtuais e face a face) e busca tornar mais visível o conjunto das antropólogas e dos antropólogos portugueses por meio da produção e divulgação de dados de seu “perfil” (em 1999 e 2016). Assim, constroem-se redes e números que permitem ver e crer na existência da comunidade antropológica, ou seja, a enunciam e assim a constituem. Esses são processos que, articulados, contribuem para a fabricação da tessitura social e simbólica necessária a qualquer campo científico. Todavia, os campos são também constituídos por tensões e lutas de diversas ordens. Justamente, as lutas travadas pela APA referentes à inserção profissional dos antropólogos no ensino e investigação, um dos seus compromissos originários, serão o tema das próximas e últimas seções deste artigo.

Fig. 12
Wilson Trajano Filho (UnB) e Cristiana Bastos (ICS-UL), Dueto III, V Congresso APA 2013, Vila Real.
Fonte: Acervo pessoal Juliana Bráz Dias.
Fig. 13
Festa de Encerramento, VI Congresso APA 2016, Coimbra.
Fonte: Website da APA (consultado em 15/09/2021).
Fig. 14
Fig. 14. Antónia Lima (ISCTE), Lançamento de livro, VII Congresso APA 2019, Lisboa.
Fonte: Acervo pessoal Maria Manuel Quintela.

Desafios de ontem e de hoje (I): a antropologia no ensino secundário

A escolha deste subtítulo não é apenas uma referência ao campo semântico que o termo desafio evoca: obstáculo, adversidade e combate. Visa apontar para o percurso incerto, marcado por avanços e recuos, de uma importante face pública da APA, já presente nos seus estatutos em 1989. Ao definir os objetivos da Associação, o Art.2º refere que a APA se compromete a:

“b) incentivar o ensino, o estudo e a investigação em Antropologia contribuindo para o seu bom nível científico e pedagógico;
c) defender os interesses profissionais dos antropólogos e alargar o âmbito da sua intervenção social” [38]

Ainda na ata da primeira reunião da diretoria em 3 de junho de 1989 lemos que: “O professor Jorge Crespo foi designado para coordenar o grupo de trabalho ‘O Ensino e a Antropologia” [39] – temática que seria mencionada em várias outras reuniões ao longo dos anos. Nos arquivos da APA encontram-se ofícios, publicações no Diário da República, notícias de imprensa, entre outros documentos sobre as negociações entre a APA e o Ministério da Educação acerca do ensino da antropologia no nível básico e secundário que datam de 1993 até 2001. A longevidade desta temática não se encerrou neste período e cruzam diversas iniciativas da Associação: em 2019, a direção da APA promoveu o fórum “Alargar horizontes e construir futuros para a antropologia em Portugal”, no qual a temática da antropologia no ensino secundário foi central.

Muitas foram as propostas feitas pela APA desde o final dos anos 1980 para garantir o acesso dos licenciados em antropologia à inserção profissional nesses níveis de ensino, iniciativas essas que envolveram também articulação formal com todos os departamentos de antropologia. [40] Contudo tais ações não lograram resultados significativos, de modo que a Associação mantém ainda hoje uma atuação continuada nessa direção. No seu Website, na página “Profissão” encontramos, dentre os três desdobramentos selecionados para compô-la, “Antropologia no Secundário”, onde se pode consultar atividades mais recentes desenvolvidas nesse domínio. Tal inclusão é assim justificada:

A APA iniciou na direção anterior (2017-2020) um trabalho/dossier a que chamou Antropologia no Secundário. A atual direção está empenhada na continuação destas atividades e na promoção da Antropologia como disciplina oferecida no secundário, preferencialmente por antropólogos. Se no passado muitas e muitos se lembram desta disciplina no secundário, neste momento é uma oferta residual no país. [41] (o itálico é meu)

Em interessante análise desse processo de transformação da antropologia em disciplina residual no secundário, Santos e Seixas (1997) identificam um paradoxo no seio das reformas que se iniciaram no final dos anos 1980: as reformas parecem ter inspiração (“ideologia”) antropológica – com o uso do conceito de cultura em diferentes textos, incluindo “professor cultural”, também chamado “antropagogo”(1997: 116), para mencionar alguns indícios apontados –, mas ao mesmo tempo excluem as antropólogas e antropólogos do sistema educativo [42]. Tal exclusão, em diferentes documentos, é atribuída principalmente: (i) à condição de a antropologia ter sido transformada em disciplina opcional da área de humanidades com carga horária reduzida; e (ii) ao facto de os antropólogos passarem a ser classificados como tendo apenas “habilitações suficientes” e não mais “habilitações próprias” – o que significa que para o fazer teriam de frequentar um mestrado “via de ensino” na área da Antropologia. A APA mantém uma linha de atuação em busca de reverter esse enquadramento, ora com estratégias de “abrir pequenas fendas” para a antropologia entrar nas escolas, ora com a intenção de “quebrar paredes” – como foi dito no já referido Fórum do VII Congresso da APA em 2019. Para isso, tem promovido atividades de divulgação da Antropologia em escolas secundárias e, desde o início de 2021, procura dinamizar, junto com os departamentos de Antropologia em Portugal, a elaboração de um mestrado via de ensino, com vista a colmatar uma lacuna nas ofertas profissionais. [43]

Desafios de ontem e de hoje (II): o reconhecimento da antropologia nas políticas de investigação

O ensino, contudo, não é o único desafio posto à APA no reconhecimento da antropologia e dos antropólogos em Portugal. Também a política de financiamento de investigação adquiriu relevância recente na sua atuação pública [44]. O facto que espoletou essa linha de ação foi a mudança na classificação adotada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência do Ministério da Educação. Nesta, a Antropologia torna-se uma subárea da Sociologia dentro da grande área Ciências Sociais – de acordo com uma grelha retirada do Manual Frascati da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico/OCDE, desde 1963 tendo várias reedições) [45]. Esse Manual, que é a referência internacional para a avaliação das atividades de Investigação e Desenvolvimento, só incorporou as Ciências Sociais e Humanas na sua 3ª edição, nos anos 70, e destacou na versão de 2002 que poderiam ser toleradas discrepâncias nos padrões para a avaliação das mesmas, com as seguintes palavras que parecem admitir variações nos diferentes países:

“Embora o Manual recomende a adoção de certos métodos padronizados, entende-se que, por várias razões, discrepâncias podem ser toleradas pelas CSH [Ciências Sociais e Humanas]. A experiência não é a mesma em todos os países-membros, alguns argumentam, de facto, que as investigações podem abranger da mesma forma todas as ciências, independentemente do setor considerado, enquanto outros pensam que nem sempre é possível aplicar uniformemente os mesmos métodos” (2013: 25) [46]

É importante observar que no Manual Frescati de 2002, em uso até 2015, o quadro que detalha a grande área das ciências sociais inclui como subáreas científicas: psicologia, economia, ciências da educação e outras ciências sociais. Nesta última estavam incluídas: antropologia (social e cultural) e etnologia, demografia, geografia (humana, económica e social), direito, ciência política, sociologia etc. (2013: 67)

A revisão do Manual feita em 2015 e ainda vigente altera essa grelha, criando novas subáreas científicas: sociologia, direito, ciência política, geografia económica e social, media e comunicações. Como na versão anterior, explicitamente deixa margem para que os países façam alterações ao nível das subáreas (2013: 278). Apesar disso, Portugal decidiu manter a antropologia dentro da subárea científica da sociologia. Desconsiderou, inclusive, a recomendação de alterações (ver fig. 15) por parte do Grupo de Avaliação sobre Avaliação de C&T – contratado pelo próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/MCTE – que, como se pode ver abaixo, elevava a Antropologia à categoria de área científica secundária (equivalente à subárea científica no Manual Frascati):

Diante de tal opção política, a APA centrou os seus esforços em duas direções: argumentar a não razoabilidade dessa decisão – inclusive em termos estatísticos [47] – e apontar as suas consequências. Nesse sentido, foram várias as reuniões com a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e muitos os documentos produzidos desde 2013, em que se destacaram: (i) a perda de autonomia da antropologia, não reconhecendo a sua história e crescimento em Portugal; (ii) a sua invisibilização no sistema e nas estatísticas de C&T; (iii) os prejuízos daí recorrentes para os contratos de trabalho (FCT/Universidades), uma vez que as candidaturas deixaram de ser avaliadas por antropólogos; (iv) as consequências negativas em termos de avaliação de Unidades de Investigação (FCT/Universidades), por não poderem mais indicar a antropologia como área científica; (v) o impacto no currículo científico (Plataforma CIÊNCIAVITAE - Secretaria de Estado da Ciência), por gerar um perfil público como “sociólogo/a” e não “antropólogo/a”; e, por fim, (vi) a documentação da APA alerta para o facto de tal classificação gerar bases de dados equivocadas que podem ameaçar os investimentos feitos pelas universidades nas últimas décadas. [48]

Fig. 15
Proposta de Classificação de Áreas e Subáreas Científicas – Ciências Sociais. Fonte: Relatório Grupo de Reflexão sobre a Avaliação de Ciência e Tecnologia pela Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT) - Outubro de 2016 (:28). A íntegra da proposta para as Ciências Sociais pode ser consultada nas páginas 28 e 29 do referido documento.

Essa luta está em curso e as antropólogas e antropólogos portugueses esforçam-se também por entender a especificidade da subalternização da disciplina em Portugal, reconhecendo que a desvalorização das ciências sociais é um fenómeno mais amplo. As ponderações que ouvi de diferentes colegas em entrevistas e em manifestações públicas foram diversas e, por vezes, apresentaram convergências: tratar-se-ia de um efeito de hegemonia e não de conspiração ideológica contra as ciências sociais e mais especificamente a antropologia; seria parte da visão de que, se as ciências sociais contribuem pouco para certo modelo de desenvolvimento [49], a antropologia o faria menos ainda por ser associada, de forma estereotipada, ao estudo do exótico e do primitivo; um efeito da pouca visibilidade da antropologia na esfera pública e da restrição das possibilidades de profissionalização dos antropólogos em comparação, por exemplo, com a sociologia; e também das estratégias de afirmação de Portugal na União Europeia ao longo do tempo, expressas nas suas diferentes políticas científicas.

Conclusão

Esta última ponderação permite-nos explicitar, como finalização das minhas reflexões sobre a APA e o campo da antropologia em Portugal, uma dimensão fundamental que permaneceu até aqui nas entrelinhas: a relação de coprodução, por um lado, entre processos estatais e de governança (não necessariamente exercida pela burocracia estatal) e, por outro, processos de produção de conhecimento. Ou, em sentido mais amplo, entre política e ciência. Afinal, como bem observou Ezrahi (2004), as instituições legais e políticas lideram ao mesmo tempo em que são lideradas por investimentos, em sentido amplo, da sociedade em ciência e tecnologia – o que nem de longe se confunde com uma relação do tipo contexto e resposta. Quero com isso destacar que a compreensão do lugar das ciências sociais e da antropologia nas políticas científicas em Portugal precisa de considerar a tensão que desde o início dos anos 1990 marcou a modernização da produção do conhecimento científico e tecnológico no país.

Acompanhando a perspetiva de José Mariano Gago (Pina-Cabral, 2011: 397-400), artífice importante desse processo, essa tensão ocorre entre, por um lado, um modelo que inclui todas as ciências e instituições de investigação e ensino, promovendo diálogos com o setor produtivo com vista a criar uma cultura científica na sociedade, considerada fundamental para o projeto de desenvolvimento almejado e para a própria constituição do campo científico; e, por outro lado, um modelo que privilegia as ciências consideradas centrais para o desenvolvimento, entendido no sentido estritamente económico e com ênfase na especialização industrial e tecnológica. Nas suas palavras, tratava-se de uma disputa pela definição de uma política científica baseada em “oportunidades científicas” ou em “prioridades científicas”; ou seja, uma política orientada pela avaliação da qualidade das equipas e dos projetos de investigação, independentemente da sua pertença a uma ciência específica, ou por uma matriz de áreas científicas definidas previamente como de relevância económica, decalcada das hierarquias institucionais estabelecidas. Tal disputa, é importante destacar, não se deu (e não se dá) de forma unidirecional da política para a ciência e nem é específica a Portugal. Basta, para vermos essa mutualidade e não exclusividade, considerar que os especialistas que são sujeitos dos processos de implementação das políticas científicas atualizam-na nos seus próprios termos e produzem efeitos de hegemonia externos e internos ao campo científico em cada contexto nacional – vide o processo mundial de metrificação da produção científica (Shore e Wright, 1999; Strathern, 2000).

Nesse processo, a Associação Portuguesa de Antropologia é produto e produtora do projeto de desenvolvimento científico mais inclusivo e nesta direção continua atuando, nas suas articulações dentro e fora do país. Desta perspectiva, a luta por reinserir a disciplina da antropologia no ensino secundário deixa de ser apenas uma questão de inserção profissional das antropólogas e antropólogos e pode ser ressignificada no conjunto de estratégias de construção de uma base ampliada para as ciências na sociedade portuguesa; enquanto a demanda pelo reconhecimento da antropologia como área científica autónoma expressaria o compromisso com a pluralização do entendimento de ciência, que não deve ser reduzido a interesses corporativos. Ambas as linhas de atuação, somadas à realização bem-sucedida dos seus congressos e conexões internacionais, reposicionam a APA como sujeito de práticas de construção de um campo científico e de uma ordem política democrática em processo e sempre passível de contestação. Nesse olhar que atravessa e articula ciência, poder e valores, procurei vislumbrar uma trama complexa de coprodução do mundo (Jasanoff, 2004), na qual apenas momentaneamente e em determinados contextos locais um desses termos adquire precedência. Espero que, nesse percurso reflexivo, a atuação da APA no que diz respeito às políticas científicas e sociais (aliás bem expressas nas temáticas dos congressos) possa atingir horizontes mais largos do que a alegada pouca visibilidade da antropologia na esfera pública e a sua diminuta influência direta nas políticas de governo e lutas em curso parecem sugerir. Depois da construção da nação e do império, seguida da sua desconstrução, novos desígnios estão hoje em causa na antropologia portuguesa, assumindo a APA um papel de relevo nessa reorientação.

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[1Pina-Cabral na sua intervenção na “Sessão de homenagem aos ex-presidentes” da APA realizada em 4 de junho de 2019, no VII Congresso da APA.

[2Agradeço ao CNPq pela bolsa que me permitiu realizar a pesquisa na qual este artigo se baseia e ao Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa por ter me recebido como investigadora visitante durante o ano de 2019. Sou grata também aos colegas antropólogos e antropólogas portugueses/as que dedicaram seu tempo a me conceder entrevistas e a compartilhar seus registros fotográficos que são parcialmente reproduzidos aqui. À direção da APA e sua secretaria, meu obrigada pela acolhida e disponibilização do acervo físico de registros documentais da Associação.

[4Boletim APA no 1; https://www.apantropologia.org/apa/boletins-apa/ Consultado em 03/05/2021.

[5Dado retirado de “O perfil do antropólogo em Portugal”, Relatório 2016 (pág.10) – informação relativa à organização do cadastro de associados para envio do inquérito a ser respondido. Disponível em https://www.apantropologia.org/apa/pap-divulgacao-de-resultados/ (Consultado em 24/02/2021).

[6A pesquisa em que este artigo se baseia foi realizada durante a minha permanência como investigadora visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) entre março de 2019 e janeiro de 2020 - período em que contei com o apoio de uma bolsa PDE-CNPq. Agradeço a todos os colegas portugueses que dedicaram parte do seu tempo com entrevistas, conversas e sugestões, em especial a Cristiana Bastos e João Vasconcelos que me receberam no ICS-IL e a Maria Manuel Quintela, amiga e parceira de longos anos que, mais uma vez, generosamente me acolheu e, com sua experiência, me ajudou a entender o campo da antropologia portuguesa.

[7A antropologia física ou, como denominada anteriormente, antropobiologia surge no mesmo ciclo (Sobral, 2007; Bastos & Sobral, 2018). As cidades do Porto e Coimbra são irradiadoras dessa disciplina, tendo, respetivamente, como personagens e instituições centrais, Mendes Correa (1888-1960), a Universidade do Porto e a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia; e Bernardino Machado (1851-1944), Eusébio Tamagnini (1880-1972) e a Universidade de Coimbra. Nesta vertente, assim como se verificou em vários outros países europeus, a reflexão sobre a identidade nacional era desenvolvida na busca pela origem de sua população – com destaque para as teorias lusitanistas (Leal, 2000; Leal, 2006; Ferraz de Matos, 2017) e posteriormente para a investigação das “raças do império” (Roque, 2006).

[8Branco, só para citar uma variação narrativa, identifica o século XVIII como central: “afigura-se como mais relevante salientar a actividade desenvolvida a partir da segunda metade do século XVIII, em que o Estado pretende liderar e chamar a si a arte de bem governar e administrar o(s) território(s) sob sua tutela. Daí considerarmos este período decisivo para a lenta gestação dos diferenciados discursos e disciplinas das ciências sociais, nomeadamente duma Antropologia” (Branco, 1986: 76).

[9Após a Conferência de Berlim em 1884-1885 definir a ocupação efetiva do território como critério de posse em África, o Reino Unido deu um ultimato à monarquia portuguesa, em 1890, exigindo a retirada militar dos territórios entre Angola e Moçambique, sob a ameaça do rompimento de relações entre as duas nações europeias.

[10Cabe destacar que o contexto em que Dias desenvolveu o seu doutoramento na Alemanha não é enfatizado nos diversos trabalhos consultados sobre a sua importância na consolidação da Antropologia em Portugal, mas sim a relevância de sua tese sobre Vilarinho da Furna.

[11A ambiguidade de seu envolvimento com a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, criada em 1957, e a qual dirigiu, pode ser lida na qualificação de suas investigações, por um lado, como uma espécie de advocacy antropológica (Afonso, 2006:160) e, por outro, como integrante da “ocupação científica do ultramar português” (Pereira, 1989:67) ou, ainda, como a expressão (Dias e sua equipa) de um “projecto de implícita oposição teórica ao poder político e relativa conciliação prática” (Rodrigues de Areia, 1986:142).

[12Em 1906 foi criada a Escola Colonial – impulsionada pela Sociedade de Geografia de Lisboa (1875), denominada posteriormente Escola Superior (1926) e Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (1954), na qual Dias lecionou, quando se transformou: “em um “instituto especializado” em problemas do Ultramar, diante das necessárias reformas de um país que deixou de ser, formalmente, uma metrópole colonial para se transformar em um Estado-Nacional com territórios dependentes” (Abrantes, 2012:24). Em 1962 recebeu a nova denominação de Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e foi nesse período que Dias criou o Centro de Estudos de Antropologia Cultural (CEAC) referido a seguir.

[13Para um balanço de como os antropólogos têm abordado ou não esse evento crítico ver (Almeida, 2014).

[14Entrevista com Celeste Quintino em 19/11/2019

[15O número de trabalhos que analisam esse período mais recente não são muitos e, além dos já mencionados, sugiro a leitura da secção Memória “Antropologia em Portugal nos últimos 50 anos”, Etnográfica, vol. XVIII(2), 2014.https://journals.openedition.org/etnografica/3629

[16Para maiores informações consultar https://www.cria.org.pt/pt. Acrescento que em consulta recente verifiquei que o CRIA tornou-se, a partir de 2021, um Laboratório Associado do Estado através da sua participação no consórcio IN2PAST - Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território. Agradeço a Rita Cachado a referência.

[17Informação obtida em entrevista com Antónia Lima (entrevista em 22/11/2019).

[18O CRIA é uma rearticulação do Centro de Estudos em Antropologia Social (CEAS-ISCTE) que já aglutinava investigadores de várias universidades. Com essa transformação, a Etnográfica (existente desde 1997) passou a ser editada pelo CRIA. Consulta à http://ceas.iscte.pt/etnografica/ em 12/02/2021).

[19Além de mencionado em diferentes entrevistas pessoais ao longo de 2019 e início de 2020, pode-se aprofundar a relevância do seu papel em Viegas e Pina-Cabral (2014: 322) e através da sua entrevista publicada na Análise Social (Pina Cabral, 2011).

[20Em 2012 Portugal esteve sujeito a um programa de ajustamento financeiro imposto pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional – triunvirato conhecido como troika. Consulta ao Dicionário de termos europeus em 16/02/2021 http://euroogle.com/dicionario.asp?definition=925

[21Consulta por e-mail feita a Pina-Cabral (05/05/2021) sobre a viagem mencionada na referida Ata.

[22http://www.fgv.br/cpdoc/historal/arq/Entrevista1796.pdf (pág.26). Consultada em 18/02/2021.

[23Cabe destacar, ainda, que os períodos da gestão de cada presidente também apresentam variações a depender da fonte consultada: Website ou atas e boletins da APA.

[24É difícil atribuir uma causalidade a tal inflexão, mas pode-se aventar desde certa imprecisão das informações disponíveis até questões conjunturais.

[25É certo que nem todos inscritos efetivamente participaram, todavia o aumento dos inscritos permanece um indicador relevante da expansão e da importância desses congressos.

[26Informação de Robert Rowland, entrevista em 07/05/2019.

[27O 1º congresso da APA ocorreu em 1993 nos dias 10, 11 e 12 de fevereiro e pude localizar a sua programação nos arquivos físicos da Associação.

[28Os documentos disponíveis incluem apenas um artigo sobre o congresso escrito pelo então estudante brasileiro de antropologia Lino João de Oliveira Neves (De Oliveira Neves, 2000); algumas informações em boletins da APA, um programa provisório com título do congresso e temas sugeridos (nos arquivos da secretaria da APA) e não o livro de resumos ou a programação.

[29Mariza Peirano (UnB), Alcida Ramos (UnB), Mariza Corrêa (Unicamp), Bela Feldman-Bianco (Unicamp), Ilka Boaventura Leite (UFSC), João Pacheco de Oliveira (MN, UFRJ), Márcio Goldman (MN, UFRJ), Sérgio Carrara (UERJ).

[30Maria Cátedra (UCM), Joaquín Rodríguez Campos (USC), Joan Pujadas (URV).

[31Caberia realizar levantamento similar sobre a participação de antropólogas e antropólogos portugueses nas reuniões bienais da Associação Brasileira de Antropologia, a fim de mapear essa relação que é, sem dúvida, uma via de mão dupla.

[32Para a relevância do antropólogo brasileiro Gilberto Velho na aproximação entre as antropologias portuguesa e brasileira, ver (Castro & Cordeiro, 2014) e (Bastos, 2017). Já para uma trajetória de construção de redes pessoais com o Brasil, consultar (Bastos, 2014) e também a entrevista de Pina Cabral ao CPDOC-FGV (2010:30-31; 33) disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/historal/arq/Entrevista1796.pdf Consultada em 18/02/2021.

[33São eles: Cristiana Bastos, ICS-UL (2019-2020); Manuela da Cunha, UMInho (2009-2010, 2007-2008); Pina - Cabral, ICS-UL (1995-1996, 1993-1994).

[34Para maiores informações consultar (Bastos & Sobral, 2017) e no sítio da SIEF especificamente SIEF historian (siefhome.org) e History of SIEF (siefhome.org) (consultado em 18/02/2021).

[35Não há informações sobre os conselhos executivos anteriores SIEF Board (siefhome.org) (Consultado em 18/02/2021).

[36Em entrevista pessoal, alguns colegas apontaram para esse nicho de mercado de trabalho como importante, em especial, com o corte de recursos em investigação e desenvolvimento que se verificou a partir da troika em 2011.

[37Neste crescimento há que considerar a linha de investigação desenvolvida por Cristiana Bastos - Repositório da Universidade de Lisboa: Percorrer o repositório (ul.pt); e a linha temática Antropologia da Saúde coordenada por Maria Manuel Quintela e Mónica Saavedra no CRIA - CRIA (Consultados em 19/02/2021). Além da Reunião da EASA Rede de Antropologia Médica em Lisboa em 2017.

[38Arquivo da APA.

[39Documento “Direção da Associação Portuguesa de Antropologia – ACTAS”, arquivos da secretaria da APA.

[40Ver, por exemplo, Boletim APA no 10, disponível em https://www.apantropologia.org/apa/boletins-apa/ (Consultado em 24/02/2021)

[42Efetivamente, o peso relativo do emprego no ensino básico ou secundário caiu de 28,9% em 1989 para 4,8% em 2015 e o desemprego geral duplicou entre 1999 (8,1%) e 2015 (16,3%). Estes dados foram retirados respetivamente do “Inquérito à situação dos antropólogos em Portugal”, Relatório 1999 e “O perfil do antropólogo em Portugal”, Relatório 2016. Disponíveis em https://www.apantropologia.org/apa/pap-divulgacao-de-resultados/ (Consultado em 24/02/2021).

[43De acordo com Rita Cachado, membro da direção da APA, o objetivo é, além da lecionação de Antropologia no 12º ano, incluir a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento lecionada nos 2º e 3º ciclos e no secundário. No entender da APA, os antropólogos têm competências específicas para lecionar esta disciplina, além de Antropologia, que é uma disciplina lecionada residualmente no secundário. Procurando reintroduzi-la de forma mais abrangente, a APA participou na atualização do currícula no âmbito das “novas aprendizagens” (designação do Ministério de Educação), que pode ser consultado em https://www.apantropologia.org/apa/wp-content/uploads/2020/11/12_antropologia.pdf , tal como sugerido no site da APA (Consultado em 26/03/2021).

[44Agradeço à Susana Viegas pelas horas de entrevista que foram valiosas para minha compreensão desse processo.

[45Todas as edições do Manual Frascati podem ser encontradas em Frascati Manual - OECD (Consultada em 25/02/2021)

[46Citação retirada da tradução para o português do Manual Frascati de 2002, publicado em 2013 - disponível em http://www.ipdeletron.org.br/wwwroot/pdf-publicacoes/14/Manual_de_Frascati.pdf (Consultado em 26/02/2021). No original em inglês, tal citação pode ser encontrada na página 20 – ver https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/9789264199040-en.pdf?expires=1614341181&id=id&accname=guest&checksum=A30A16B40E4B11DC8932826497409CE2 (Consultado em 26/02/2021)

[47Em carta encaminhada à FCT em fevereiro de 2019, argumenta-se que estatisticamente a Antropologia é equivalente à Geografia classificada como Área Científica Secundária.

[48Informações retiradas dos documentos da APA disponíveis em https://www.apantropologia.org/apa/autonomia-da-antropologia/ (Consultada em 25/02/2021)

[49Ver https://www.fct.pt/docs/Evaluation_of_FCT_Report_EP.pdf (:45) (Consultada em 25/02/2021)