Francisco Martins Lage (1888-1957) fez parte de uma geração, de um grupo de intelectuais, de etnógrafos sem cátedra [1], das primeiras décadas do século XX, que estudaram o povo português e construíram uma cultura demótica, num prolongamento da “sensibilidade etnográfica” [2] da antropologia e etnografia portuguesa, estruturada na 1.ª República, entre 1910 e 1930, e centrada na arte popular (na sua “essência decorativa” e exaltação estética), como veículo para a construção da identidade da nação portuguesa. Este conjunto de ideias, assente numa aproximação ao campo da arte popular, está patente numa visão ideológica do mundo rural, como instância da cultura das tradições populares do povo português, que marcará o discurso/programa do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) [3], organismo estatal do Estado Novo (1926-1974), regime ditatorial dirigido por António de Oliveira Salazar (1889-1970).
Este sistema político, autoritário e conservador [4] surge após o período da 1.ª República (1910-1926), cujo crescente descontentamento, face à forte instabilidade política e problemas económicos e sociais então vividos, levou à insurreição de um grupo de militares (de tendência conservadora), os quais, a partir da cidade de Braga em 28 de maio de 1926, dirigiram um golpe de estado-revolução que pôs fim ao regime vigente.
A revolução, que instalou uma administração transitória de ditadura militar, culminou na promulgação da Constituição de 1933, a qual vigorou em Portugal até 1974. Nascia assim a 2.ª República do Estado Novo e a instauração de uma ditadura soberana, cujas raízes ideológicas e arquétipo se estruturou, com base numa lógica de pensamento doutrinário e numa cultura política de matriz nacionalista, conservadora, antidemocrática e corporativista, organizando-se em torno de um serviço de censura, de uma polícia política, como garante do controlo político-social do país.
Idealmente, o Estado Novo preocupou-se, ainda, em moldar a ideologia da sociedade da época em diversos planos : social, económico, jurídico e cultural, tendo criado em 1933, como referido, o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN).
Este órgão máximo da propaganda e promoção cultural do regime (arte e cultura popular), o SPN, foi dirigido durante os primeiros dezasseis anos por António Ferro (1895-1956), figura do primeiro modernismo, escritor e jornalista que, posteriormente, foi sustentando, como leit motiv da sua acção, a “Política do Espírito” [5]. Este organismo, dando relevância à cultura popular e à etnografia, como salientado, favorecia uma visão idílica do mundo rural, especialmente da arte, entendida pelos etnógrafos do regime como instância da cultura das tradições populares do povo português.
É neste enquadramento político e ideológico/programático, promovido pela ditadura e pelo SPN, que situamos Francisco Lage e a sua relação e visão da etnografia, e do mundo rural, quando, em 1935, ingressou nos quadros do organismo de propaganda estatal (SPN/SNI). Contudo, importa questionar, por via da sua atividade no SPN/SNI, a existência de uma orientação, de um diferencial presente na análise e apropriação da arte popular pelo SPN/SNI, entendida sob uma óptica estética, mas também, em diversas circunstâncias e por critérios de autenticidade, opostos e assumidos por dois atores em presença : António Ferro e Francisco Lage.
Esta questão, como veremos, irá decerto acompanhar algumas realizações no campo etnográfico, aferidas pelo secretariado. Considerando a dicotomia Ferro/Lage, caminham por vezes em sintonia, noutras em distonia, quando resumem o seu pensamento, na enfatização de uma política folclorista.
Não podemos desconsiderar, no entanto, a figura de Francisco Lage como um indivíduo profundamente irmanado com os laços culturais, uma constatação presente numa bibliografia profusa e multidisciplinar, cuja avaliação o inscreve num quadro contextual do seu tempo. O seu modo de pensar tem repercussões no seu labor, consolidado por uma atitude nacionalista crescente, posta ao serviço das manifestações e iniciativas em que se envolveu.
Acresce que Francisco Lage refletiu ao longo das suas iniciativas/obras um protagonismo, embora nem sempre reconhecido, em que valorizou os chamados “recursos populares”, como elementos essenciais em articulação com a idiossincrasia apregoada pelo regime que fazia a apologia da nação.
Todavia, a sua ação, orientada por estes ditames, “agentes sedutores” (ruralidade e identidade de um povo), não pode ser separada de um aproveitamento de elementos da cultura tradicional, subjugados a uma certa estilização, capaz de viabilizar o seu aproveitamento na transposição e junção entre arte popular e arte moderna.
Importa fazer um reparo à “hostilização” refreadora a que, por vezes, Lage terá visto a sua ação votada, vem reforçar a necessidade de dar a conhecer a verdadeira dimensão de Lage, sob o olhar de um repositório de ações contributivas, fundamentais para a consequente história da antropologia – a etnografia portuguesa, em construção permanente –, e entendimento de uma memória de etnógrafos que trabalharam com e para o regime, por vezes votados ao anonimato.
Dramaturgo da cultura popular : ideias e obra
Francisco Lage, homem de cultura erudita e popular, pensamento eclético e saber multifacetado, demonstrou, ao longo da sua vida profissional, o seu dinamismo e ação, quer como ator e dramaturgo, quer enquanto etnógrafo, na colaboração em iniciativas no âmbito do folclore português, e como coordenador e organizador do Museu de Arte Popular (MAP) em Lisboa.
No que respeita à sua naturalidade, aos primeiros anos e à sua educação enquanto jovem, Lage nasceu na região do Minho, no norte de Portugal, mais precisamente em Braga, a 19 de dezembro de 1888, cidade onde passou a infância e adolescência. Foram anos decisivos na sua formação, e já então revelava uma genuína apetência pelas letras, ao completar a sua instrução no Liceu Nacional de Braga, em 1911, no então denominado curso complementar dos liceus. Filho de uma serviçal e de um “capitalista” (designação à época), a sua origem social deu-lhe acesso a um estrato social instruído, o que lhe permitiu satisfazer leituras várias e desenvolver uma sensibilidade humanista e uma curiosidade erudita, as quais decerto foram determinantes para a formação do seu gosto, entre outros saberes, pela arte dramática e pela etnografia.
Neste contexto de formação intelectual de Lage, como bibliófilo, ao analisarmos a sua vasta biblioteca à data da sua morte (1957), não será difícil imaginar um homem cujo saber literalmente se (re)construiu por si próprio, transformando-o no autodidata que foi. Este conjunto bibliográfico reunido ao longo de mais de trinta anos, permite aferir quais as leituras que serviram de modelo de inspiração e fonte de informação, e, simultaneamente, compreender, face à diminuta produção literária que deixou, como se encaixaram as obras nas ações que Lage exerceu a título profissional. Diferentes abordagens interpretativas desse acervo (autores, conceitos, áreas do saber) revelam o interesse de Lage por uma panóplia de temas, que vão da história, à literatura, passando pela antropologia, etnografia, filosofia, arquitectura, moda, alimentação e gastronomia, e que, na essência, constroem o seu ideário e pensamento com foco numa identidade portuguesa, nos diferentes âmbitos. Obras que foram o reflexo/modo como Lage se inspirou e apropriou das ideias e dos autores com os quais mais contactou, e que lhe permitiu praticar teorizando e teorizando praticando, à exceção de um corpus considerável de algumas das obras mais representativas, determinantes para o compreendermos enquanto homem de ação e indivíduo, e como essas leituras se refletiriam na produção da sua obra e desempenho [6].
O universo de vida de Francisco Lage, desde a juventude até finais dos anos 20, foi ainda marcado pela paixão e participação no teatro. Assim, em 1911 Francisco Lage parte para Lisboa, a fim de estudar teatro no Conservatório Nacional, na então designada Escola da Arte de Representar, onde estes anos de aprendizagem se revelaram muito profícuos para o seu desenvolvimento como artista dramático e dramaturgo [7]. Logo após a conclusão do curso, que tinha a duração de um ano, Francisco Lage inicia a carreira de ator e dramaturgo, que se estende sensivelmente até 1926. Em 1922, quando já ocupa uma posição de relevo no panorama teatral português, tem lugar a sua integração na recém-formada companhia Rey Colaço-Robles Monteiro [8], para a qual escreverá diversas peças em que ele próprio irá atuar. No desenlace de algumas performances, enquanto “artista-residente” (membro efetivo da sociedade artística da companhia), Lage atuará com papéis principais, encarnando figuras históricas (nomeadamente Iokanaan, na peça Salomé), [9] sendo alvo de críticas elogiosas na imprensa de teatro da época.
No desejo de afirmação como dramaturgo, sensivelmente entre 1920 e 1926, Francisco Lage, em colaboração com João Correia de Oliveira [10] (1881-1960) escreve, além de outras peças, A Verdade, um drama psicológico que aborda a questão do adultério, e Os Lobos, sobre as tradições rurais, recriando usos, crenças e gestos de uma região rural, na linha dominante do teatro de tendência regionalista, congregando todos os elementos (encenação, conteúdo e simbologia) propícios à exaltação do mundo rural, enquadrada no sentir etnográfico, que Francisco Lage vinha desenvolvendo na escrita de artigos na conceituada revista sobre temas etnográficos, Terra Portuguesa. [11]
Não obstante o êxito obtido no panorama teatral em Lisboa, em finais dos anos 20, o dramaturgo regressa a Braga, cujo percurso na cidade natal é marcado por dois ciclos, relativamente breves, quer como “cronista”, participando na imprensa bracarense e portuense, quer como industrial e político (1927-1931). Estes dois últimos períodos, relativamente conturbados e intensos na vida de Lage, refletem no primeiro, enquanto obreiro da escrita, o seu pensamento e o seu espírito crítico e de humorista, que “revolucionaria” a primeira página de periódicos nortenhos [12], em crónicas e ensaios que exibem uma notável polivalência temática ; no segundo, ao assumir o cargo de diretor da sociedade comercial e industrial designada por Indústrias Regionais, e a fábrica bracarense Tecelagem de Sedas e Veludos. Francisco Lage apostará não só no estudo e preservação de antigos padrões e técnicas, mas também na inovação, qualidade e rentabilidade de uma indústria de tecelagem em reconstrução.
Ao serviço da Câmara Municipal de Braga, Lage atravessa alguns episódios políticos na qualidade de vereador da autarquia, balizados no desdobramento em múltiplas iniciativas locais, no âmbito da defesa do ambiente, património, na organização de uma grande parada de carácter etnográfico (A Parada Agrícola do Minho, integrada nas festas da cidade, o S. João de Braga, em junho de 1929), no embelezamento e modernização da cidade de Braga (1928-1929) e no afastamento voluntário do cargo, que determinou uma viragem no seu trajeto de vida, com a sua mudança para a capital e posterior processo de integração na sociedade lisboeta e nos serviços do SPN, nos anos 30, em que importa acentuar a sua incondicional entrega à etnografia.
Na capital, e após deixar a Câmara Municipal de Braga, Lage inicia a sua carreira profissional no recém-formado SPN, onde logo de início (em 1935), ocupará o cargo de arquivista e com o qual, numa fase posterior (1936-1937), na qualidade de membro do júri dos Prémios Literários, uma iniciativa cultural do SPN, que premiava autores e obras de interesse do regime, manterá uma cooperação durante 23 anos. Ainda em 1935, Francisco Lage faz parte da Comissão de Etnografia Nacional, criada pelo SPN. Esta organização tinha o intuito de facultar os conhecimentos etnográficos necessários à realização de uma grande exposição de “Folclore e etnografia” a ter lugar em Lisboa. Formada por etnógrafos de diversas regiões e investigadores académicos, a associação propunha ainda organizar exposições, criar concursos regionais, e formar subcomissões que abordassem uma temática ligada à música popular, arquitectura e gastronomia. No entanto a sua ação foi efémera, e sem grandes resultados práticos.
No campo da cultura popular, no decorrer dos anos 30 até 1952, o envolvimento de Lage na produção teatral está ainda ligado ao Teatro do Povo, criado pelo SPN em 1936. Até ser extinto, em 1952, este era um teatro ambulante, que atuava como instrumento de inculcação ideológica ; um teatro pedagógico e lúdico, que apresentava atores e peças para uma população específica, as populações rurais, nos mais recônditos lugares de Portugal. [13]
Neste âmbito, Francisco Lage tem a seu cargo a estruturação e desempenho do Teatro do Povo, missão que se estende à de dramaturgo no reportório escrito de peças e exibições teatrais, algumas das quais vencedoras do Concurso de peças para o Teatro do Povo, promovido pelo SPN, tais como (1º Prémio) : Ressurreição, 1938 ; Pão que o diabo amassou, 1939 (Franciscus, pseudónimo, e Ribeirinho) ; Maio Moço (Sagitário, pseudónimo), 1942. Ainda na década de 50 – e até à sua morte – não cessa de redigir argumentos, por exemplo, em 1952 : Chapelinho de penas ; 1953 : Arremedilho de Guimarães e Rei Lear, tradução em parceria com António Lopes Ribeiro (1908-1995), apresentando argumentos inseridos no drama histórico, regionalista e psicológico e Noite dos Reis, de 1957, que são levadas ao palco pelo Teatro Nacional Popular, (designação que vai substituir, em 1944, a de Teatro do Povo, embora mantenha parcialmente os mesmos propósitos), esta agora sob a alçada do renomeado SPN, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI).
A emergência da “pulsão etnográfica” e o seu papel na interiorização de uma arte popular “genuinamente nacional”
Como referido, Francisco Lage “inaugura” através da escrita, nos finais dos anos 10, um dos primeiros encontros com a etnografia – entenda-se, descrição ou colecta de “tradições populares” –, com a publicação na mais prestigiada revista portuguesa de etnografia da época, Terra Portuguesa : Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia (1916-1927), do artigo “Cobertas estampadas”, que narra o processo de fabrico de cobertas, motivos decorativos impressos, materiais e utensílios usados e as etapas da sua confeção artesanal. Esta aproximação de Francisco Lage à etnografia, privilegiando a arte popular, orientará muita da sua atividade enquanto etnógrafo. Na verdade, o interesse de Lage pela etnografia, e o conhecimento que desenvolveu sobre o homem português e pela cultura material/arte popular, levam-no a integrar, em 1936, os serviços da 3.ª Repartição do SPN (secção de etnografia e cultura popular), tarefa que abraçou com energia e dedicação durante 22 anos (1935-1957).
O SPN levará a cabo nos anos 30 uma política folclorista sistemática, em torno da divulgação da arte popular portuguesa, enquanto processo de construção da identidade nacional e de afirmação da nação, sustentado num conjunto de iniciativas de cariz folclórico, dentro e fora do país.
No mesmo horizonte, em termos gerais, uma interpretação do praticar/teorizando de Francisco Lage, através de uma análise hermenêutica e qualitativa por via da sua atividade no SPN/SNI, nomeadamente o estudo de casos acerca das práticas folcloristas do Secretariado, permite compreender a sua relação com e oposição a certos setores/conteúdos e objetivos da política folclorista –, plasmados na autenticidade e na estetização das tradições populares e da cultura popular do SPN/SNI.
Neste entendimento, a sua atividade e desempenho em diversas iniciativas folclóricas promovidas pelo SPN/SNI, quer como encarregado da seleção e aquisição das peças de arte popular, quer como orientador, organizador e diretor de projetos etnográficos, recorde-se, serão por vezes comprometidos por entendimentos inversos manifestados pelo SPN e por Lage, sobre arte popular - estetização versus autenticidade.
Assim, constatamos “tensões” ao longo das várias iniciativas do campo etnográfico, em particular no projeto delineado por Lage para um “Museu do Povo Português” que, apesar de planeado por um etnógrafo, é vencido pela vontade de Ferro em o dedicar à arte popular decorativa. Igualmente a chamada de Lage de um conjunto de etnógrafos, como Sebastião Pessanha e Guilherme Felgueiras, para colaborarem na futura instituição, é preterida por Ferro, quando os substitui por pintores-decoradores.
Contudo, como assinalado, não descartamos alguns exemplos de flexibilidade entre ambos, visíveis em determinadas iniciativas como exposições nacionais e internacionais de arte popular, onde os objetos de arte popular exibidos são selecionados segundo o seu valor decorativo, estético. Neste esteio, o entendimento claro que Lage teria sobre a conceção de uma exposição de arte popular, em oposição ao seu conceito de Museu, que comportava um vasto campo de conhecimentos etnográficos e museológicos, levam-no, por vezes, a optar pela seleção e exibição de objetos, cujo efeito estético das peças, enquanto “imagens” motivantes e apelativas, dirigidas a um público-alvo sensível a uma cultura nacionalista visual e iconográfica, se coaduna com a política folclorista seguida pelo seu diretor.
O tempo das realizações folcloristas
Neste contexto, ao longo dos anos 30 e 40, o SPN vai organizar várias exposições de arte popular no estrangeiro, integradas num programa de “apresentação ao mundo” de Portugal. A primeira realiza-se em Genebra (1935), com seleção e recolha do espólio de arte popular da responsabilidade de Lage. O arranjo modernista da sala, a par da exibição dos artefactos sob critérios puramente estéticos, a cargo de uma equipa de pintores-decoradores, dá início a um modelo que orientará as futuras exposições.
Em 1937, na continuação das exposições internacionais, a de Paris reflete, por excelência, esta política. Lage é de novo responsável por múltiplas funções, distribuídas pela organização da sala do artesanato (ver Fig. 1) e por outras tarefas, decorrentes do planeamento e equipamento (a realizar no Pavilhão de Portugal) das festas (arraial minhoto), resquícios de uma certa “cultura popular”. Na organização e propósitos que definiram a seleção do espólio, Lage não hesita em reunir peças que primam pela ideia de autenticidade, e outras pelo pitoresco (ourivesaria popular), “dogma” fixado numa das diretrizes veiculadas pelo SPN, numa constante dicotomia entre autenticidade e estetização da arte popular.
Na exposição de Paris, é atribuído a Portugal o galardão grand-prix à sala do artesanato português, e a Lage um diplôme d’ honneur pelo seu trabalho na realização dos manequins regionais expostos. A senda das exposições internacionais prolonga-se com a Feira Mundial de Nova Iorque, de 1939, e a sua extensão a S. Francisco. A presença portuguesa na capital americana cumpre uma das apostas do SPN, na pessoa de António Ferro. Nesse certame, a promoção turística do país é parceira integrada e inevitável da arte popular. Os poucos artefactos de cultura material ali expostos, fruto da escolha, em parte, de um pintor-decorador, objetivam Lage com uma colaboração menor.
Finalmente, eventos similares têm lugar em Madrid, no ano de 1943, e em Sevilha e Valência, no ano seguinte. Em Espanha a arte popular marca assim presença em três exposições, com a organização das salas definida pelos decoradores-pintores, num claro enquadramento estético dos objetos de cultura material, selecionados por Francisco Lage.
Ainda nos anos 30, no decurso das exposições internacionais e do êxito alcançado pela nossa arte popular, esta surge legitimada perante uma população urbana. Em 1936 é organizada uma exposição de arte popular portuguesa (ver Fig. 2) nas exíguas instalações do SPN em Lisboa, reunindo o espólio de 1935, significativamente ampliado. Participam na sua realização, planeamento e catálogo, o etnólogo Luís Chaves (1896-1977), coadjuvado por Manuel Cardoso Martha (1882-1958) [14], e o especialista da arte popular Francisco Lage.
No ano seguinte, em 1938, tem lugar o concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” (ver Fig. 3), uma extensão a nível nacional das exposições de arte popular. Pretendia-se que o concurso fosse revelador das virtudes do povo português, das suas riquezas etnográficas e costumes nacionais e regionais, nos mais recônditos lugares e aldeias do país. Com o objetivo de veicular e legitimar os valores de renascimento folclórico e etnográfico nacional, enquadrados pelo organismo de propaganda estatal, a participação de Lage entende-se como uma participação integrada, ou seja, a sua ação é extensível à organização e regulamentação do concurso, além da fixação de toda a logística inerente à iniciativa. Lage foi responsável pela seleção das aldeias candidatas ao prémio, a partir das propostas feitas pelas Juntas de Província, bem como pela coordenação das visitas do Júri Nacional às aldeias a concurso, e pela recolha de peças da respetiva cultura material. Este concurso vem reforçar a constante procura de Lage pela autenticidade das tradições, atitude patente ao eliminar aldeias que não cumprissem traços etnográficos exigidos no regulamento, em contraponto à consciente mise-en-scène de muitas demonstrações, supostamente etnográficas, dos habitantes das aldeias perante os jurados, cantando, dançando, ocupados em afazeres agrícolas.
A maior celebração e mais importante iniciativa do SPN e do regime, no campo da etnografia do mundo rural foi, sem dúvida, a participação na Exposição do Mundo Português, em 1940 [15] através da realização do Centro Regional dividido em secção da Vida Popular, e Aldeias Portuguesas. Em causa estava a celebração da pátria junto dos portugueses, e a realização do Centro Regional, que materializava, na secção da Vida Popular, um programa de “monumentalização” da almejada cultura popular, enquanto na secção das Aldeias Portuguesas, com recinto próprio, tinha lugar uma afirmação física, ou roteiro sobre o país (continental e insular), numa recriação da vida e gentes de diversas regiões de Portugal.
Nesse recinto das Aldeias Portuguesas (ver Fig. 4) criaram-se núcleos de habitações regionais, onde aldeões “encenavam” diversas cenas da vida rural, nomeadamente do seu trabalho artesanal, como forma de os apresentar ao visitante.
Nos pavilhões da secção da Vida Popular (ver Fig. 5) exibiam-se diferentes mostras de cultura material ; artefactos usados nas atividades de diversas fainas (piscatória, pastoril e agrícola), do interior e do litoral do país ; objetos da religiosidade e superstição populares ; representações de modelos dos transportes e arquitetura tradicional ; utensílios e produtos artesanais, resultantes da tecelagem e da olaria. Nestes pavilhões era igualmente dada ao público a oportunidade de observar o labor de artesãos nos seus diversos ofícios, que, numa abordagem etnográfica, trabalhavam ou produziam diversas peças. Incumbido do projeto do centro regional, Lage elabora um primeiro plano da organização dos serviços de Etnografia e Folclore do Continente e Ilhas, programa abandonado pelo SPN por questões orçamentais. Os módulos definitivos (Aldeias Portuguesas e secção da Vida Popular) são entregues aos etnógrafos Luís Chaves e Cardoso Martha no que respeita à conceção e organização, e a Lage, a responsabilidade pela seleção de objetos a expor. Ainda no contexto das comemorações centenárias, é editada pelo SPN a obra de prestígio Vida e Arte do Povo Português (1940), obra de divulgação de ensaios folclóricos, sobre temas como arte popular, traje e transportes, organizada por Francisco Lage, que reúne a colaboração de etnógrafos como Vergílio Correia (1888-1944), António Rocha Madahil (1893-1969), Sebastião Pessanha (1892) e a do artista decorador Paulo Ferreira (1911-1999), na esmerada ilustração gráfica de temas etnográficos.
Ainda nesse ano de comemorações, projetado por António Ferro em torno da “lição de bom gosto nacional”, e inspirado nos Ballets Russes, o SPN cria o grupo de bailado clássico português Verde Gaio, de cunho folclórico, o qual congrega escritores, cenógrafos, músicos, bailarinos e figurinistas, cuja atuação de estreia teve lugar na exposição do Mundo Português (1940), seguida de outras apresentações no estrangeiro e em Portugal.
Pretendia-se, sobretudo numa primeira fase, que os bailados tivessem argumentos genuinamente portugueses. A partir de lendas e outras tradições populares, Lage escreve o argumento para um dos bailados, O Homem de Cravo na Boca (1941), com música de Armando José Fernandes (1906-1983) e figurino de Paulo Ferreira. A sua interação no desenrolar das atividades etnográficas do Secretariado desenvolve-se, ainda nestes primeiros anos de 40, na organização de pequenas exposições evocativas/mostra de peças etnográficas de Monsanto, colchas de noivado de Castelo Branco, trajes regionais de Viana do Castelo (ver Fig. 6), marcadas na montagem e seleção das peças para as exposições, pela forte determinação em aliar o efeito decorativo e estético de algumas peças, à autenticidade de outras.
Em paralelo com iniciativas programadas mas não concretizadas, como a segunda edição do livro Vida e Arte do Povo Português, exposições de olaria, habitação da Beira Baixa, 2.ª edição do concurso a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, a ação de Lage prossegue em 1947 com a organização de concursos de ranchos folclóricos (ver Fig. 7). Registe-se ainda, neste contexto, a particular visão “lageana” sobre as necessárias emendas e mecanismos depuradores sobre este ou aquele tipo de traje, sobre esta dança ou aquela canção, em prol da defesa de um folclore “autêntico”.
No apoio à música popular portuguesa, é Lage que promove inquéritos/levantamentos nacionais sobre a existência de bandas filarmónicas com cunho etnográfico, em defesa das tradições regionais, e que assumissem a sua importância na estrutura social da comunidade.
Um novo élan : a criação do Museu do Povo Português
Entre a realização de exposições e mostras de arte popular no exterior e no interior do país, o desejo – por parte do SPN e do seu diretor, António Ferro – da criação de um museu que congregasse todo o espólio etnográfico reunido veio a ser concretizado. Neste ensejo, é proposto a Francisco Lage “imaginar”, delinear um plano/programa para o futuro Museu do Povo Português, a instalar nos pavilhões da secção da Vida Popular, na Exposição do Mundo Português.
Este ambicioso projecto (1942) para o novo Museu em Belém reforça a vontade de Lage em homenagear o povo português, a etnografia e o folclore nacional, expondo, nas diferentes temáticas presentes nas salas exposicionais permanentes, conteúdos para cada província, com base geográfica (meio), antropológica física (o habitante), os aspetos socio-culturais (vida) e etnográfica (alimentação, trajo, trabalho). O etnógrafo conceberia um local de estudo do povo português. Esta futura instituição iria retratar uma sociedade tradicional, mal conhecida, e abordaria as falas, as técnicas artesanais, os costumes, as crenças, entre outras dimensões da cultura popular associadas, essencialmente, à ruralidade. Lage concebe o museu como uma espécie de memorial, evitando o desaparecimento inevitável de um património de cultura material, já em agonia.
Por questões orçamentais ou por divergências programáticas, este projeto não iria efetivar-se. O projeto de Lage englobava a arte popular apenas como um dos vários campos do programa, e não o conteúdo dominante da exposição, desejo contrário ao de António Ferro e prática comum das anteriores exposições do SPN
Museu de Arte Popular : o fecho da abóbada
As sucessivas alterações ao plano inicial proposto por Lage, e as novas propostas avançadas pelo etnógrafo relevando, aliás, a necessidade de se adaptarem alguns critérios do seu programa inicial, além da colaboração de reputados etnógrafos, como Sebastião Pessanha e A. Mendes Correia (1888-1960), repetem-se até à versão final, que vê substancialmente alterada a sua vocação, espólio e programa do almejado museu. A sua ambição para este museu, que implicava uma aproximação entre geografia, antropologia física e cultural e etnografia, foi obstaculizada pelo facto de o projeto ficar em definitivo sob a alçada do diretor do SPN, António Ferro, sujeito a um processo de instalação e montagem focado na arte popular. Esta escolha – que premeia a intervenção de uma equipa de decoradores-pintores, responsável pela decoração parietal das salas/províncias, culminando com o seu projeto museográfico (decoração e instalação), entregue ao decorador Tomás de Melo – Tom (1906-1990) – cumpre a obra síntese do Secretariado : a prevalência estética e decorativa em detrimento da etnografia.
A Lage é incumbida a tarefa da instalação do museu, desdobrando-se o autor na aquisição de objetos a serem expostos, objetos esses que cumprissem, em parte, os requisitos do seu primeiro programa. Embora muitos representem artefactos de cultura material de arte popular, selecionados em função das suas singularidades estéticas, são apresentados como obras de arte. Lage não descura, em outros casos, a seleção de objetos que justifiquem as suas características de autenticidade/genuinidade.
Inaugurado em 1948, o agora Museu de Arte Popular (ver Fig. 8) não será o ambicionado museu de etnografia programado por Lage, mas sim um museu de arte popular/decorativa visual, que repousa numa escolha educativa, política e propagandística do regime. Não obstante, nos anos seguintes, Lage vai tentar valorizar o museu através da realização de obras de ampliação, com novas instalações para exposições temporárias investindo, igualmente, em serviços de restauro, e desenvolvendo uma política de novas aquisições, propondo mesmo a criação – juntamente com o etnógrafo Sebastião Pessanha – de um Cento de Estudos associado ao museu, o Centro de Estudos de Etnografia, manifestando a preocupação em dotar o museu e as ações do Secretariado com um cunho mais científico e cultural ; no entanto, não foi bem-sucedido, quer devido a alterações na política do SNI (consagrando este maior atenção ao turismo), quer por questões orçamentais.
A partir de 1949, e apesar da saída de António Ferro, Lage continuará a prestar os seus serviços e a transmitir os seus peculiares saberes no seio do SNI, numa área que lhe era particularmente familiar e sobre a qual possuía um conhecimento e experiência privilegiados : a cultura popular. Assim, mau grado a mudança de rota na política do Secretariado, prosseguiu a sua ação no campo da etnografia até 1957, ano em que faleceu.
Decorridos mais de sessenta anos sobre a sua morte, Francisco Lage permanece uma figura desconhecida, quer no panorama da história da antropologia, no que respeita aos 30 e 40 em Portugal, quer no âmbito da historiografia do Estado Novo e das suas ações de propaganda nacionalista, ainda que a sua colaboração em exposições internacionais e nacionais, no concurso a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal tenha sido decisiva, além da sua atividade multifacetada, nomeadamente na edição de livros de temática etnográfica, e ainda como dramaturgo do Teatro do Povo, e dos Bailados Verde Gaio), como gastrónomo (associado às ementas das pousadas regionais), e finalmente na instalação do Museu de Arte Popular.
Nesta aceção, Francisco Lage surge como uma clara figura de interesse antropológico e para a história da Antropologia, como orquestrador que dirige em vários andamentos, embora ocupando um lugar periférico, que não se coaduna com a sua ação e atividade institucional, em prol da etnografia portuguesa. No culminar da reflexão sobre a(s) sua(s) obra(s), e não obstante o distanciamento crítico que as suas conexões ao regime do Estado Novo – e aos seus órgãos de propaganda nacionalista – impõem, importa reforçar a mensagem subjacente do seu lugar merecido enquanto bibliófilo, intelectual, etnógrafo e animateur da cultura popular portuguesa. Empenhado e totalmente entregue, de forma sistémica, ao seu “praticar teorizando”, Francisco Lage, porque assim determinou o seu humanismo, colocaria provavelmente o seu saber ao serviço de qualquer regime.
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