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International Encyclopaedia
of the Histories of Anthropology

Nina Rodrigues e as religiões afro‑brasileiras

João Leal

CRIA / NOVA FCSH, Lisbonne

2020
To cite this article

Leal, João, 2020. “Nina Rodrigues e as religiões afro‑brasileiras”, in BEROSE International Encyclopaedia of the Histories of Anthropology, Paris.

URL BEROSE: article1963.html

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Published as part of the research theme «Histories of Anthropology in Brazil», directed by Stefania Capone (CNRS, CéSor) and Fernanda Arêas Peixoto (Universidade de São Paulo).

Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) – mais conhecido como Nina Rodrigues – nasceu no Maranhão, mas depois de cursar Medicina em Salvador (Bahia) e no Rio de Janeiro, estabeleceu-se em Salvador como professor da Faculdade de Medicina da Bahia. [1] Aí assumiu – entre outras – as cadeiras de Medicina Clínica, Medicina Pública e Medicina Legal, tendo-se tornado numa das figuras centrais da chamada Escola Médica Baiana. Autor de vários livros e artigos, Nina Rodrigues é uma figura incontornável na história do pensamento brasileiro da segunda metade do século XIX. [2] É nomeadamente a ele que se devem os primeiros estudos sistemáticos sobre os negros brasileiros. Mas é também – como tem sido sublinhado – uma figura contraditória. Por um lado, ele foi um dos mais conhecidos intérpretes do pensamento racialista predominante no Brasil na viragem do século XIX para o século XX. Como escreveu Mariza Corrêa, “a questão principal que Nina Rodrigues e seus seguidores se colocavam dizia respeito à nossa definição como povo e à deste país como nação” (2013: 12).

Preocupado com o atraso brasileiro no concerto das nações modernas, Nina Rodrigues buscou a chave para esse atraso na raça. Influenciado pelo pensamento racialista europeu, em particular por Cesare Lombroso e pela “escola italiana” de antropologia criminal (ou criminologia), a raça era para ele “o elemento crucial” que explicaria a “debilidade, física e mental, da população brasileira e, finalmente, a sua debilidade cultural” (Corrêa 2013: 145). De acordo com a sua visão, os negros seriam “um dos fatores da nossa inferioridade como povo” (Schwarcz 2005: 208). Simultaneamente, o atraso do Brasil decorreria do peso da mestiçagem – fenómeno que Nina Rodrigues condenava veementemente – na composição racial do país. Por isso, contrariamente a autores que olhavam para o embranquecimento como solução a prazo para o Brasil, Nina Rodrigues era mais pessimista: os progressos do negro embora não fossem impossíveis, seriam muito lentos e os avanços da mestiçagem tenderiam a agravar a composição racial do país. [3]

Por outro lado, Nina Rodrigues foi também o iniciador do estudo das religiões afro-brasileiras. Consagrou ao candomblé da Bahia um livro pioneiro, O Animismo Fetichista dos Negros Baianos (2006 [1896-1897]), e em 1906 – o ano da sua morte em Paris – tinha pronto um segundo livro, Os Africanos no Brasil (2008 [1933]), que viria a ser apenas editado em 1933. Nele, Nina Rodrigues regressa ao tema das religiões afro-brasileiras, em particular no capítulo VII. Sem que as marcas da sua visão racialista sobre os negros brasileiros estejam ausentes destes livros, aquilo que neles sobressai também é uma aproximação ao candomblé marcada pela minúcia etnográfica e pela empatia. [4] Esta última, embora não seja tão notória em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, é um aspeto central de Os Africanos no Brasil

A vertente racialista da obra de Nina Rodrigues foi analisada numa completa monografia que Mariza Corrêa (2013) consagrou a Nina Rodrigues e foi tratada de forma mais breve por autores que escreveram sobre o pensamento racial brasileiro na viragem do século XIX para o século XX, como Thomas Skidmore (1989) ou Lilia Schwarcz (2005). Quanto à sua pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras, ela é, por um lado, frequentemente invocada em muitos trabalhos contemporâneos consagrados às religiões afro-brasileiras, que sublinham o estatuto de Nina Rodrigues como iniciador desse campo de estudos; e tem sido, por outro lado, objeto de um conjunto de artigos situados no campo da história da antropologia (e.g. Maggie e Fry 2006, Capone 2000). É justamente sobre esta segunda vertente do seu trabalho que se debruça este artigo.

Pese embora o seu comum interesse pelas religiões afro-brasileiras e, em particular, pelo candomblé da Bahia, O Animismo Fetichista dos Negros Baianos e Os Africanos no Brasil são dois livros de recorte distinto. Desde logo – como ficou sugerido antes – pelas circunstâncias que rodearam a sua escrita e publicação. O primeiro foi originalmente publicado, entre 1896 e 1897, sob a forma de sucessivos artigos incluídos na Revista Brazileira. Estes artigos foram depois reunidos numa versão francesa publicada em livro em 1900. Esta viria a ser objeto de uma recensão de Marcel Mauss (1872-1950) em L’Année Sociologique, que a considerou uma “monografia elegante” (Mauss 1900-1901: 224). Só em 1935, no quadro da renovação dos estudos afro-brasileiros na Bahia, seria finalmente editada em livro a sua versão brasileira. O segundo livro, Os Africanos no Brasil, não chegou a ser publicado em vida do autor. Estava quase totalmente impresso à data da morte de Nina Rodrigues – que lhe deu inicialmente o título de O Problema da Raça Negra na América Portuguesa – mas a sua publicação póstuma, já com novo título, teve que esperar até 1933. [5]

Ambos os livros diferem também nos seus objetivos. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos resulta da observação etnográfica de Nina Rodrigues e centra-se exclusivamente no candomblé da Bahia. Embora combine um bom conhecimento da bibliografia antropológica disponível em finais do século XIX com a proposição de algumas linhas interpretativas do candomblé, é um livro em que a etnografia ocupa o posto de comando. Os Africanos no Brasil é um livro menos etnográfico e de temática mais ampla. Embora um dos capítulos seja consagrado ao candomblé da Bahia e o livro contenha inúmeras outras referências à cultura iorubá, o seu objetivo é dar uma visão de síntese da influência africana no Brasil. Conquanto mantenha algumas das referências bibliográficas anteriormente usadas, caracteriza-se sobretudo pela sua abertura à bibliografia sobre as culturas africanas, em particular sobre a cultura iorubá.

Ambos os livros transportam consigo as marcas de uma visão hierarquizadora das raças brasileiras, que coloca os negros numa posição inferior. Mas essa visão exprime-se de forma diferente. Em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos essa inferioridade é tanto cultural como racial e a sua demonstração é uma das linhas argumentativas principais do livro. Em Os Africanos no Brasil, embora se mantenha essa visão, ela já não é tão central na argumentação de Nina Rodrigues e é atenuada pela tentativa simultânea de nobilitação da religião iorubá.

O Animismo Fetichista dos Negros Baianos

Como ficou indicado atrás, O Animismo Fetichista dos Negros Baianos pode ser considerado como a primeira monografia etnográfica sobre o candomblé da Bahia (e sobre uma religião afro-brasileira). O seu ponto de partida é fornecido pela ideia generalizada segundo a qual a população da Bahia seria “monoteísta cristã” (2006 [1896-1897]: 27). Contra essa ideia errónea, o antropólogo brasileiro está interessado em demonstrar “a persistência do fetichismo africano como expressão do sentimento religioso dos negros baianos e seus mestiços” (2006 [1896-1897]: 28), mesmo entre as “soi-disant classes civilizadas” (2006 [1896-1897]: 28). Com esse intuito, o que O Animismo Fetichista dos Negros Baianos propõe é “uma observação documentada” da importância “do nosso fetichismo negro” (2006 [1896-1897]: 31).

A monografia baseia-se em cinco anos de observação e, entre as diversas variantes do candomblé da Bahia, centra-se preferencialmente no candomblé de origem iorubá. A parte mais importante dessa observação terá tido lugar no famoso terreiro do Gantois. Mas abrangeu igualmente outros terreiros como ’a Casa Branca do Engenho Velho, [o Gantois e] o terreiro do Garcia, que serão considerados depois como os autênticos terreiros nagô da Bahia”, referem Yvonne Maggie e Peter Fry. “Mas não só estes terreiros famosos são descritos. O terreiro de São Lourenço, o terreiro de Isabel e ainda a Bica de São Pedro aparecem para demonstrar a complexidade de práticas e crenças, além da ortodoxia nagô dos grandes terreiros” (Maggie e Fry 2006: 11). [6] Baseada nestes vários estudos de caso, a etnografia proposta por Nina Rodrigues em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos é sistemática e minuciosa. Aborda sucessivamente o panteão do candomblé, o espaço do terreiro, a hierarquia interna das casas de culto, os rituais de iniciação – ou de “feitura” – e diferentes aspetos da liturgia do candomblé, como a possessão, os sacrifícios, os ritos funerários e as festas. Como escreve Maggie e Fry, “A narrativa de NR privilegia sempre a descrição detalhada de casos concretos, sejam eles os terreiros em si – o Gantois em particular –, sejam os rituais regulares ou a feitura de santo. Notável nesse sentido é a etnografia detalhada da feitura de Olímpia, que se alongou por alguns dias no terreiro de Tecla” (Maggie e Fry 2006: 11).

É também importante o modo como Nina Rodrigues – apesar do seu endosso das teorias racialistas prevalecentes em finais do século XIX – procura descrever o universo do candomblé baiano nos seus próprios termos, fazendo-se portador de um ponto de vista etnográfico que não era então muito frequente.

Embora a etnografia ocupe o posto de comando, Nina Rodrigues não se inibe de propor algumas chaves analíticas. Entre elas, uma das mais importantes tem a ver com aquilo a que hoje é chamado de sincretismo. Essa expressão está ausente deste livro – assim como de outros escritos – de Nina Rodrigues. [7] Mas é disso que ele fala, quando, em O Animismo Fetichista dos Negros Brasileiros, emprega expressões como “associações híbridas” (2006 [1896-1897]: 28) ou “mestiçamento religioso” (2006 [1896-1897]: 116) entre o catolicismo e o “fetichismo africano”. Embora abordado na Introdução, este tema será sobretudo desenvolvido no capítulo final de O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, intitulado “As Ilusões da Catequese no Brasil” (2006 [1896-1897]: 107-121). [8] Aí Nina Rodrigues regressa à ideia da superficialidade do monoteísmo cristão no Brasil:

[L]onge do negro se converter ao catolicismo, é o catolicismo que recebe a influência do fetichismo, se adapta ao animismo rudimentar do negro que, para torná-lo assimilável, materializa e dá corpo e representação objetiva a todos os mistérios e abstrações monoteístas (2006 [1896-1897]: 107).

Nesse sentido, acrescenta Nina Rodrigues, “a conversão religiosa não fez mais do que justapor as exterioridades muito mal compreendidas do culto católico às suas crenças e práticas fetichistas que em nada se modificaram” (2006 [1896-1897]: 107). Sendo predominante entre os negros, este “mestiçamento” religioso impregnaria a sociedade baiana no seu conjunto: nesta matéria “todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a tornarem-se negras” (2006 [1896-1897]: 116). [9]

É a partir destes pressupostos que Nina Rodrigues desenvolve seguidamente a sua reflexão sobre o que é hoje chamado de sincretismo que é, no campo da antropologia das religiões afro-brasileiras (e das religiões afro-americanas em geral), o primeiro tratamento analítico do tema. Nele avultam sucessivamente: uma definição da expressão mais corrente dessas “associações híbridas”; uma tipologia dessas “associações”; e, finalmente, a indicação de algumas das razões que facilitaram a sua adoção.

Podendo ser apresentadas como resultado da “mescla” (2006 [1896-1897]: 108) entre crenças e práticas fetichistas africanas e o catolicismo dos colonos brancos, as “associações híbridas” daí decorrentes teriam a sua expressão principal na correspondência entre santos católicos e orixás. Quanto à tipologia dessas “associações”, Nina Rodrigues distingue entre duas modalidades principais. Numa delas essa equivalência entre santos católicos e orixás dá-se por “simples justaposição” (2006 [1896-1897]: 109) e não envolve, portanto, a identificação entre os dois grupos de entidades espirituais. Esta associação por justaposição seria dominante entre os negros “africanos” (isto é, nascidos em África). A segunda modalidade seria uma “associação” por fusão, que conduziria, pelo contrário, a uma identificação entre santos católicos e orixás. Esta ”associação” por fusão seria predominante entre os negros crioulos (i.e., nascidos já no Brasil) e entre os mulatos. Finalmente, a aproximação de Nina Rodrigues a estas “associações híbridas” debruça-se também sobre alguns dos fatores que as teriam facilitado. Entre estes avultariam algumas características do catolicismo dos colonos portugueses. Este – sobretudo no tocante ao culto dos santos – poderia ser visto como “um verdadeiro politeísmo para uso das classes menos cultas” (2006 [1896-1897]: 109). Esse facto, bem como o fascínio pelas “exterioridades do culto católico” (2006 [1896-1897]: 28), teria facilitado a “mescla” entre fetichismo e catolicismo. Nesse sentido a sua adoção pelos negros baianos replicaria o que ocorreu com a conversão da Europa politeísta nos primórdios do cristianismo.

Mas o aspeto central de O Animismo Fetichista dos Negros Baianos é o modo como propõe uma interpretação do candomblé da Bahia baseada nos pressupostos da antropologia evolucionista de finais do século XIX. Edward Burnett Tylor (1832-1917) em particular – e a sua tematização do animismo – é um autor fulcral para a reflexão de Nina Rodrigues. Mas entre os autores a que Nina Rodrigues recorre contam-se também os antropólogos Theodor Waitz (1821-1864) ou Charles Letourneau (1831-1902). É com base nessa bibliografia que Nina Rodrigues tenta colocar o candomblé da Bahia na escala evolutiva da religião. Para o antropólogo brasileiro, “fetichismo” seria uma expressão muito larga para descrever o candomblé. Na realidade, “a forma por excelência do fetichismo afro-baiano é o animismo difuso, isto é, a atribuição a cada ser e a cada coisa, de um double, fantasma, espírito, alma, independente do corpo onde faz a sua [residência] momentânea” (2006 [1896-1897]: 33). Mais à frente, Nina Rodrigues tenta uma melhor caracterização do animismo que seria característico do candomblé: os afro-baianos estariam na transição de um “animismo difuso para um animismo condensado. A [sua] conceção religiosa (…) corresponde rigorosamente à doutrina da idolatria da África Ocidental, tal como a formulou Waitz” (2006 [1896-1897]: 47). Mas, por um lado, para os fiéis mais inteligentes, esse animismo atinge já “as raias do politeísmo” (2006 [1896-1897]: 33). E, por outro lado, “essas manifestações de um animismo inferior, não excluem ao contrário coexistem com a adoção de uma mitologia já bem complexa” (2006 [1896-1897]: 48). Estas duas ideias devem ser retidas. Por seu intermédio, Nina Rodrigues matiza a classificação animista do candomblé e empurra-o para uma fase menos rudimentar da evolução religiosa.

Desse ponto de vista, o candomblé da Bahia – de origem nagô – contrastaria com expressões culturais de origem banto também presentes no Brasil. Como Nina Rodrigues escreve, recorrendo a Charles Letourneau:

[O] fetichismo dos bantos é muito mais simples e rudimentar do que o dos negros da África Ocidental (…). De facto, é nesta região que se vai [sic] encontrar como na Bahia, as casas fetiches ou Iará-Orisás, a feitiçaria se organizando em culto, o fetichismo difuso se constituindo em mitologias rudimentares, a idolatria em vias de progresso, etc. etc. (2006 [1896-1897]: 104).

Deve, entretanto, ser sublinhado que, neste seu livro, Nina Rodrigues usa de alguma cautela a respeito deste tema. O que escreve, afirma, é feito “de passagem e ligeiramente” (2006 [1896-1897]: 103), tratando-se de um “ponto digno de ser apurado convenientemente” (2006 [1896-1897]: 103). Pese embora esta cautela, o que aqui vemos afirmar-se é uma perspetiva – marcada pelo nagô-centrismo e pelo contraste hierarquizador entre “os negros” do golfo da Guiné (ou “sudaneses”) e os bantos – que reaparecerá em Os Africanos no Brasil.

Se permite marcar a superioridade do candomblé face a expressões culturais negras de origem banto, o nagô-centrismo de Nina Rodrigues não é suficiente, entretanto, para contrariar uma visão de conjunto da raça negra como inferior. A superioridade nagô seria apenas relativa e é possível encontrar, subjacente a O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, a visão dos negros brasileiros que Nina Rodrigues havia tematizado noutros escritos seus de orientação mais marcadamente racialista. Essa visão é tributária tanto da sua visão racializada da inferioridade “negra”, como do seu recurso ao evolucionismo cultural de Tylor, Letourneau ou Waitz.

O tom é logo dado na introdução, quando Nina Rodrigues se insurge pela primeira vez contra a ideia de que a população da Bahia seria “monoteísta cristã” (2006 [1896-1897]: 27). Essa ideia errada decorreria, entre outras razões, do desconhecimento da “incapacidade psíquica das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo” (2006 [1896-1897]: 27; os itálicos são meus). Este mesmo tom reencontra-se depois noutras passagens de O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. Atente-se por exemplo no modo como Nina Rodrigues conclui a sua descrição do ambiente no terreiro do Gantois:

O sítio ermo e recôndito, as horas mortas da noite, a monotonia grave e triste da música rude e da melopeia africana, o carácter extravagante das danças religiosas, tudo concorria ali para dar ao conjunto um cunho de poesia selvagem e misteriosa que devia falar profundamente ao espírito acanhado e inculto de uma raça supersticiosa ao extremo (2006 [1896-1897]: 51; os itálicos são meus).

Mais à frente, a figura do pai de santo é descrita como sendo a de “um diretor de consciências supersticiosas, ignorantes e fanáticas” (2006 [1896-1897]: 62; os itálicos são meus).

Mas é sobretudo no capítulo em que a possessão é abordada que esta visão hierarquizada dos negros se torna mais evidente. Nele, Nina Rodrigues começa por descartar a possessão como simulação, sublinhando o modo como ela resulta “de uma convicção profunda e da fé sincera” (2006 [1896-1897]: 71). Mas, logo a seguir, caracteriza o transe como um conjunto de “estados de sonambulismo provocado, com desdobramentos e substituição de personalidade” (2006 [1896-1897]: 74), oscilando, a esse respeito, entre dois diagnósticos: a histeria ou a neurastenia. Em ambos os casos a possessão seria a expressão de uma condição patológica que refletiria a inferioridade racial dos negros. Assim, desmentindo aqueles que acham que o histerismo não é uma característica racial dos negros, Nina Rodrigues escreve que “o fundo extremamente neuropático ou histérico do negro põe-se em relevo entre nós de um modo muito saliente” (2006 [1896-1897]: 168). Mais à frente, escrevendo sobre a neurastenia como explicação para a possessão, afirma ser esta uma doença “típica de uma raça com pouco desenvolvimento intelectual” (2006 [1896-1897]: 90).

Os Africanos no Brasil

Enquanto O Animismo Fetichista dos Negros Baianos é um livro exclusivamente centrado no candomblé da Bahia e de recorte predominantemente etnográfico, Os Africanos no Brasil é – como já foi referido anteriormente – um livro mais ambicioso e com objetivos mais amplos. O que nele Nina Rodrigues tenta fornecer é uma visão de conjunto das raízes africanas das culturas negras do Brasil e das transformações que estas conheceram no seu processo de adaptação a um novo contexto.

O capítulo inicial do livro procede a um levantamento das precedências africanas dos negros brasileiros. Nos capítulos seguintes, Nina Rodrigues desenvolve alguns aspetos da história negra do Brasil, abordando sucessivamente “os negros maometanos”, as sublevações escravas – com destaque para Palmares – e finalmente o processo de gradual extinção das “nações pretas” no Brasil. Estabelecido este quadro histórico, concentra-se depois nas “sobrevivências” africanas entre as populações negras do Brasil: na língua e nas belas artes; nas festas populares e no folclore (“sobrevivências” que ele designa de “totémicas”); e na “religião, mitologia e culto”. Nalguns destes capítulos, Nina Rodrigues oscila entre a apresentação de alguns aspetos caracterizadores das culturas negras em África e a demonstração do modo como esses aspetos “sobreviveram” no Brasil. Quanto aos capítulos finais do livro, abordam sucessivamente o “valor social dos povos negros que colonizaram o Brasil e seus descendentes” e “a sobrevivência psíquica na criminalidade do Brasil”. [10]

Embora ao longo do livro se encontrem várias referências ao candomblé da Bahia, é sobretudo no capítulo VII, intitulado “Sobrevivências Religiosas – Religião, Mitologia e Culto” (2008 [1933]: 197-235), que o tema é abordado. Nessa sua abordagem ao candomblé da Bahia, Nina Rodrigues retoma as formulações sobre o estádio evolutivo do candomblé inicialmente empregues em O Animismo Fetichista dos Negros Brasileiros. Como ele escreve: “Trata-se de uma verdadeira religião em que o período puramente fetichista está quase ultrapassado, tocando as raízes do franco politeísmo” (2008 [1933]: 223). [11]

Mas esta é uma das poucas similitudes entre as duas aproximações ao tema. Nos restantes aspetos, a tematização agora proposta por Nina Rodrigues é bastante diferente. Enquanto em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos a bibliografia utilizada era sobretudo de teóricos evolucionistas que haviam escrito sobre as religiões primitivas, em Os Africanos no Brasil as referências bibliográficas mobilizadas dão lugar de destaque a autores que – desde finais do século XIX – haviam escrito sobre África, com particular destaque para aqueles que haviam escrito sobre as culturas “sudanesas” em geral e sobre os iorubá em particular.

Entre esses autores, o mais importante é o coronel Alfred Burdon Ellis (1852-1894), mais conhecido como A. B. Ellis. Trata-se de um militar inglês que depois, de uma estada mais curta na Índia, foi destacado para as colónias inglesas na África ocidental, onde serviu entre 1874 e 1893. Apesar do seu papel destacado em várias operações militares contra populações locais, Ellis desenvolveu um grande interesse pelo estudo etnológico da África ocidental inglesa, em particular pelas culturas fanti, ashanti, ewe e iorubá. Sobre estas últimas, publicou em 1894 o livro The Yoruba-Speaking Peoples of the Slave Coast of West Africa (Ellis 1894). Foi justamente a este livro que Nina Rodrigues recorreu para a sua caracterização da cultura e da religião iorubá. Na sua recensão a O Animismo Fetichista dos Negros Brasileiros, Marcel Mauss – apesar do tom geral elogioso – havia lamentado que Nina Rodrigues tivesse “ignorado os trabalhos do coronel Ellis sobre os iorubá” (Mauss 1900-1901: 224). É justamente essa lacuna que Nina Rodrigues agora corrige. Na realidade, a primeira parte do capítulo VII de Os Africanos no Brasil (pp. 197-210), mais do que um texto sobre as sobrevivências religiosas africanas no Brasil, é um longo exposé da religião iorubá tal como esta havia sido descrita por A. B. Ellis. As referências ao candomblé da Bahia são apenas pontuais e só no final do capítulo há uma secção consagrada ao Brasil – cuja ligação com a primeira parte é frouxa.

Como vimos, o tom geral depreciativo de O Animismo Fetichista dos Negros Baianos era por vezes entrecortado por algumas formulações que pareciam apontar em direções mais favoráveis, como quando Nina Rodrigues considerava que, para os fiéis mais inteligentes do candomblé, este atingiria já “as raias do politeísmo” (2006 [1896-1897]: 33); ou que o seu animismo coexistiria com “uma mitologia já bem complexa” (2006 [1896-1897]: 48). Era na mesma direção que apontava também o nagô-centrismo de que Nina Rodrigues se fazia então eco. Em Os Africanos no Brasil não apenas esse tom mais elogioso passa a ser o tom dominante, como as formulações empregues se tornam bem mais entusiastas. De facto, toda a primeira parte do capítulo é dominada por uma linguagem e por apontamentos analíticos por intermédio dos quais Nina Rodrigues se esforça por proceder uma espécie de nobilitação da religião iorubá – e, por extensão, do candomblé da Bahia.

Assim, logo no início do capítulo, Nina Rodrigues escreve que “os negros nagôs têm uma verdadeira mitologia, bastante complexa” (2008 [1933]: 199), na qual avulta a figura de Olorum, o “Céu-Deus” (2008 [1933]: 199). Esta seria “a representação da mais alta aptidão da raça para generalizar” (2008 [1933]: 199). Embora sem culto próprio e com fraca capacidade de penetração “na massa popular”, esta conceção seria “um sinal de incontestável progresso na evolução do pensamento e do sentimento religioso entre os nagôs” (2008 [1933]: 200). Esse progresso testemunharia a tendência monoteísta da religião nagô: “o negro tende ao teísmo, disse com razão Tylor, e nós poderíamos afirmar [a]o monoteísmo” (2008 [1933]: 201).

Paralelamente, outras conceções testemunhariam a “tendência da mitologia nagô à elevação e ao aperfeiçoamento” (2008 [1933]: 201). Seria esse o caso do culto a Obatalá e a Odudua, que Nina Rodrigues aproxima dos cultos ctónicos das religiões antigas. Seria também nessa direção que apontaria o carácter sistemático e integrado da teogonia nagô. Esta formaria um “sistema (…) coordenado, em que tudo se encadei[a] e subordin[a]” (2008 [1933]: 203), ganhando uma “expressão unitária que não é inferior à dos estádios mentais correspondentes de raças mais cultas” (2008 [1933]: 203). Um outro aspeto sublinhado pelo antropólogo brasileiro é a existência, na religião iorubá, de “um sacerdócio organizado” (2008 [1933]: 213), o que a distinguiria positivamente da religião de “outros povos negros atrasados” (2008 [1933]: 213).

Esta argumentação – agora muito mais sustentada do que em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos – da superioridade da religião iorubá reflete uma ideia mais geral presente na literatura sobre as culturas da África ocidental produzida a partir de finais do século XIX, com a qual Nina Rodrigues estava familiarizado. Como já indicámos, A. B. Ellis é o autor mais citado por Nina Rodrigues. Mas ele recorre também a outros autores. Entre esses autores – no capítulo consagrado às “línguas e belas artes” – refere Samuel Crowther (1809-1891) e Thomas J. Bowen (1814-1875). O que há de comum entre esses autores é o facto de pertencerem àquilo que J. Lorand Matory (2005) chama de Renascimento de Lagos. [12] Este movimento desenvolveu-se em Lagos em finais do século XIX e envolveu intelectuais e missionários africanos – como Samuel Crowther – tendo também contado com a colaboração de alguns estudiosos europeus – como o coronel e administrador inglês A. B. Ellis – ou norte-americanos – como o missionário batista Thomas J. Bowen – fascinados pelas culturas africanas. Apoiados nalgumas teorias evolucionistas que viam os iorubá como o grupo africano mais evoluído (Capone 2000), estes e outros autores iniciaram um trabalho de registo e revalorização da cultura iorubá, assente em recolhas linguísticas e etnográficas. Essa revalorização – segundo Matory – foi particularmente evidente na produção de A. B. Ellis e, em particular, em The Yoruba-Speaking Peoples of the Slave Coast of West Africa, obra que Matory classifica como sendo “the most influential work of the Lagosian Renaissance” (2005: 63). Embora o seu livro “clearly plagiarized Father’s Baudin earlier (…) account of religion in Porto-Novo (…) Ellis (…) added a laudatory tone typical of his Lagosian surroundings during the nationalist Renaissance” (2005: 63). [13]

Foi justamente a Ellis que Nina Rodrigues foi buscar tanto a etnografia sobre a religião iorubá como o tom laudatório empregue no Capítulo VII de Os Africanos no Brasil. A nobilitação da religião nagô – e, por extensão, do candomblé da Bahia – que encontramos em Nina Rodrigues é, portanto, um resultado da nobilitação da cultura iorubá iniciada pelos autores ligados ao Renascimento de Lagos e, em particular, por A. B. Ellis. Nesse sentido, Os Africanos no Brasil pode ser visto como um spin-off brasileiro do Renascimento de Lagos.

O próprio modo como o livro de Ellis chegou ao conhecimento de Nina Rodrigues reflete o carácter transatlântico do Renascimento de Lagos e a importância que nele teve a circulação de pessoas, livros e ideias entre África e o Novo Mundo. Foi graças a esses trânsitos transnacionais que Nina Rodrigues tomou contacto com as ideias do Renascimento de Lagos. A obra de A. B. Ellis, por exemplo, terá sido passada a Nina Rodrigues por Lourenço Cardoso, que segundo Andrade Lima (citado por Matory) era um comerciante de Lagos, que durante uma das suas estadas no Brasil foi professor de inglês e tradutor de iorubá de Nina Rodrigues (2008 [1933]: 2005: 62). Quanto às obras de Samuel Crowther e Thomas J. Bowen, poderão ter sido conhecidas pela mesma via ou, eventualmente, graças a Martiniano Eliseu do Bonfim (1959-1943), que, como também indica Matory (2005: 62), passou a Nina Rodrigues uma gramática iorubá produzida pela Church Missionary Society e intitulada Iwe Kika Ekerin Li Ede Yoruba/The Fourth Primer in Yoruba Language.

É à luz deste olhar nobilitador da religião nagô que podem ser considerados outros aspetos de Os Africanos no Brasil. É o que se passa desde logo com a segunda parte do Capítulo VII. Como ficou indicado atrás, esta parte tem uma ligação frouxa com a metade inicial do capítulo. De repente, Nina Rodrigues vira-se exclusivamente para a Bahia, que até então tinha uma presença discreta no texto. E o tema – sem relação com o exposé laudatório da religião nagô até aí prevalecente – tem que ver com a perseguição policial ao candomblé. Este era um tema já presente em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. Mas aí o tom era mais descritivo, como quando Nina Rodrigues, ao escrever sobre a hierarquia interna dos terreiros, referia a importância dos ogãs na proteção dos terreiros em relação à perseguição policial. Agora o tom dominante é marcado pela denúncia vigorosa da violência policial e pelo elogio da “extraordinária resistência” (2008 [1933]: 222) do povo de santo, que assim garantiria “a vitalidade dessas crenças da raça negra” (2008 [1933]: 222). Como escreve Nina Rodrigues:

Os nossos candomblés, as práticas religiosas dos nossos negros podem, pois, ser capituladas de um erro, do ponto de vista teológico e como tais reclamar a conversão dos seus adeptos. Absolutamente, elas não são um crime e não justificam as agressões brutais da polícia, de que são vítimas (2008 [1933]: 223; os itálicos são meus).

Não é por isso de estranhar que o nagô-centrismo algo tateante de O Animismo Fetichista dos Negros Baianos surja aqui formulado em tom mais enfático, tanto mais que esse era um aspeto central no pensamento dos autores ligados ao Renascimento de Lagos. De facto, para Nina Rodrigues, pese embora a importância dos povos bantos no povoamento negro do Brasil, os “sudaneses” teriam exercido uma influência muito mais determinante no desenvolvimento das culturas negras no Brasil. [14]Como ele escreve:

Por maior que tenha sido a importância dos negros do Sul de África, do grande grupo de língua (…) banto (…), a verdade é que a vantagem numérica não conseguiu levar à dos negros sudaneses, aos quais cabe a primazia em todos os feitos nos quais, da parte do negro, houve na nossa história uma afirmação da sua ação ou dos seus sentimentos de raça (2008 [1933]: 32).

Essa primazia decorre – como em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos – da superioridade intrínseca das culturas “sudanesas”. Entre “os negros”, como escreve Nina Rodrigues, “a predominância intelectual e social, se não a numérica, cabe aos negros sudaneses” (2008 [1933]: 45). [15]

A adesão de Nina Rodrigues a uma visão nobilitadora da cultura iorubá não significa, entretanto, que ele renuncie a alguns dos aspetos nucleares do seu pensamento acerca da inferioridade da raça negra. De facto, tal como ele escreve no início de Os Africanos no Brasil, independentemente de casos individuais de sucesso, “até hoje não se puderam os negros constituir em Povos civilizados” (2008 [1933]: 22). Pese embora a sua “simpatia” pelo “negro brasileiro” (2008 [1933]: 22), ele também escreve – como vimos antes – que “a raça negra no Brasil há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo” (2008 [1933]: 24). Num dos capítulos finais do livro, essa ideia é retomada: “não é a realidade da inferioridade social do negro que está em pauta. Ninguém se lembrou de contestar isso. E não importa contestar uma evidência” (2008 [1933]: 237).

De novo – tal como em O Animismo Fetichista dos Negros Baianos – a superioridade dos nagôs – e de outros povos “sudaneses” – é uma superioridade apenas relativa. Mas ela parece atenuar ligeiramente o pessimismo mais sombrio característico de outros textos de Nina Rodrigues sobre o futuro da questão racial no Brasil. De facto, embora seja “extremamente vagarosa a aquisição da civilização europeia pelos negros” (2008 [1933]: 238), a primazia “sudanesa” poderia ter uma influência favorável nessa marcha lenta do negro em direção à civilização. Como escreve Nina Rodrigues,

está claro que a influência por eles [negros] exercida sobre o povo americano que ajudaram a formar será mais nociva quanto mais inferior e degradado tiver sido o elemento africano introduzido pelo tráfico. Portanto os nossos estudos mostram que, ao contrário do que se pensa em geral, os escravos introduzidos no Brasil não pertenceram exclusivamente aos povos africanos mais degradados, brutos ou selvagens. Aqui entraram pelos tráficos negros dos mais adiantados (2008 [1933]: 242).

Fiel ao seu nagô-centrismo, é nele que Nina Rodrigues parece entrever alguma réstia de esperança para o futuro da questão racial no Brasil.

A herança de Nina Rodrigues

A morte prematura de Nina Rodrigues interrompeu o desenvolvimento da antropologia das religiões afro-brasileiras. De facto, nas primeiras décadas do século XX, o único autor ativo nesse campo foi Manuel Querino (1851-1923) (2006 [1915); 2009 [1919]) e será preciso esperar pelos anos 1930 para que – a partir simultaneamente do Recife e da Bahia – o domínio das religiões afro-brasileiras se transforme num empreendimento mais coletivo e, sobretudo, mais visível no campo intelectual brasileiro.

Na Bahia – onde avultam as figuras de Arthur Ramos (1903-1949) e Edison Carneiro (1912-1972) – esse “renascimento” do interesse pelas religiões afro-brasileiras colocou-se sob o signo de uma nova visão destas, expurgada do racialismo que Nina Rodrigues havia emprestado à sua reflexão. Essa viragem foi favorecida pelo triunfo de uma perspetiva sobre o Brasil – a que associamos geralmente o nome de Gilberto Freyre (1900-1987) – que não só secundarizava a noção de raça, substituindo-a pela de cultura, como procedia ao elogio da mestiçagem e da contribuição africana para a formação do Brasil. As diferenças entre esta nova visão do Brasil e as ideias defendidas por Nina Rodrigues têm sido sublinhadas (e.g. Skidmore 1989). Mas isso não impediu que o autor de O Animismo Fetichista dos Negros Baianos e de Os Africanos no Brasil não tenha conquistado então – a partir da Bahia – o estatuto de pai fundador da antropologia das religiões afro-brasileiras.

Para tanto, para além da relativização da visão racialista defendida por Nina Rodrigues, foi necessário colocar em evidência aspetos mais interessantes da sua obra. O principal obreiro dessa releitura de Nina Rodrigues foi Arthur Ramos. Apresentando-se a si próprio como um continuador de Nina Rodrigues, Ramos não apenas velou pela reedição de algumas das suas obras, como, em muitos textos seus, procedeu ao elogio rasgado do “mestre”. Foi também sua a contribuição decisiva para a relativização da dimensão racialista da sua obra. Como afirmou na sua comunicação ao II Congresso Afro-Brasileiro, realizado na Bahia em 1937 (em grande medida sob o signo de Nina Rodrigues):

Muitas das (…) ideias [de Nina Rodrigues] evidentemente não resistirão à crítica científica do nosso tempo, que já não poderá falar numa “inferioridade antropológica” do negro, ou numa pretensa “degenerescência” da mestiçagem. Mas Nina Rodrigues pesquisou com as “hipóteses de trabalho” da sua época. A sua simpatia humana pelo negro (…), a dedicação de uma vida consagrada à decifração dos mistérios da vida dos negros – tudo isso corrigira, já no seu tempo, as falhas metodológicas que os pósteros haviam de denunciar.
Mas o que os seus críticos não atacarão jamais, é a seriedade, a honestidade, o entusiasmo, o imenso impulso de simpatia, com que as suas pesquisas e seus estudos foram conduzidos (Ramos 1940: 338).

Embora possamos não subscrever os termos dos elogios de Ramos a Nina Rodrigues – Edison Carneiro (1964 [1956]) será a esse respeito mais moderado e certeiro – não é difícil continuar a reconhecer em Nina Rodrigues um papel central na emergência da antropologia das religiões afro-brasileiras (e afro-americanas em geral).

De facto, com ele – e apesar do seu racialismo – tomou corpo um “cânone” para o estudo das religiões afro-brasileiras que se tornou dominante entre 1930 e 1970 e cujos tópicos ainda habitam – embora de forma mais ocasional – algumas reflexões contemporâneas. Para além da prioridade dada ao estudo etnográfico das religiões afro-brasileiras, esse cânone envolveu sobretudo um conjunto de temas e ideias que, como sublinharam Maggie e Fry (2006), se tornaram centrais no tratamento antropológico das religiões de matriz africana no Brasil, com particular destaque para o candomblé da Bahia.

Entre essas ideias está, antes do mais, a visão nagô-cêntrica das religiões afro-brasileiras. Embora matizada por Edison Carneiro – cujo contributo foi de grande importância para a revalorização do candomblé de caboclo (1954 [1948]) –, essa ideia foi importante tanto na reflexão de Arthur Ramos, como, sobretudo, na obra de Roger Bastide (1898-1974) (ver Capone 2004). A segunda ideia que se tornou canónica prende-se com o cotejo sistemático entre o Brasil e África – entre o original africano e a sua adaptação ao Novo Mundo – como dispositivo central de tematização da autenticidade das religiões afro-brasileiras. Foi por aí que seguiu Arthur Ramos – particularmente no seu livro As Culturas Negras (1945) – e foi esse também o caminho de Bastide, para quem os terreiros de candomblé da Bahia eram “pedaços de África plantados em pleno coração do Brasil” (2005 [1958]: 74). Mesmo Edison Carneiro – geralmente mais circunspecto a este respeito – seguiu essa trilha transatlântica em Candomblés da Bahia (1954 [1948]: 213-221). Finalmente, foram importantes os ecos da reflexão de Nina Rodrigues sobre sincretismo em autores como Arthur Ramos e Roger Bastide. Ramos, que foi o primeiro autor a usar essa expressão no campo da antropologia das religiões afro-brasileira (Ramos 2001 [1934]), irá dar grande peso na sua tematização a ideias que estão em Nina Rodrigues, relativas nomeadamente às similitudes entre o politeísmo africano e o quase-politeísmo do catolicismo popular (Ramos 2007 [1935]: 25). Quanto a Bastide (e.g. 2002 [1946]), e pese embora o carácter inovador da sua reflexão sobre sincretismo, é de notar que um dos aspetos mais importantes do seu tratamento do tema – a distinção entre sincretismo religioso (o bom sincretismo) e sincretismo mágico (o mau sincretismo) – retoma a diferenciação estabelecida por Nina Rodrigues entre “associações híbridas” por justaposição e por fusão.

Referências

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Skidmore, Thomas, 1989, Preto no Branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra.




[1Agradeço os comentários e sugestões de Stefania Capone e Fernanda Peixoto à versão inicial deste artigo. Agradeço também as preciosas indicações bibliográficas sugeridas por Frederico Delgado Rosa.

[2Para uma bibliografia completa da obra de Nina Rodrigues, ver Corrêa (2013: 381-389).

[3A produção mais racialista de Nina Rodrigues, foi compilada em 1939, por Arthur Ramos, no livro As Coletividades Anormais (Rodrigues 2006 [1939]). Além desses artigos, inclui ainda As Raças Humanas e a Responsabilidade Pena no Brasil (2011 [1894]).

[4Em Os Africanos no Brasil Nina Rodrigues refere “a viva simpatia que nos inspira o negro brasileiro” (2008 [1933]: 22). Mas logo relativiza essa ideia, ao escrever que “a raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido sos seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que que se revelem os generosos exemplos dos seus turiferários, há de consituir semore um dos fatores da nossa inferioridade como povo (2008 [1933]: 24).

[5Sobre a história algo atribulada da publicação de Os Africanos no Brasil, ver o prefácio de Homero Pires á edição de 1933. Aí, o autor escreve o seguinte: “há 26 anos que esta obra se começou a imprimir, para não mais se lhe tocar, permanecendo assim longamente trancada e interrompida pela superstição e pela morte. Ninguém lhe queria pôr as mãos com receio dos seus nefastos sortilégios” (Pires 2006: 15).

[6Tem também sido sublinhada a importância que o famoso babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim teve na pesquisa de que resultou o livro.

[7A expressão e o conceito de sincretismo só surgirão na literatura sobre religiões afro-brasileiras na obra de Arthur Ramos (2001 [1934]).

[8Este capítulo foi inicialmente publicado sob a forma de um artigo independente do corpo da obra. Por essa razão – embora retome ideias que se fazem presentes na Introdução a O Animismo Fetichista dos Negros Baianos – possui alguma autonomia relativamente ao argumento desenvolvido ao longo do livro.

[9Este ponto já havia sido abordado na Introdução e é retomado de forma pontual ao longo do livro. Por seu intermédio, Nina Rodrigues sublinha a inclusividade social do “fetichismo” africano na Bahia, retomando a esse respeito as teorias de Tylor sobre o poder de contágio das crenças fetichistas em África. Para um tratamento mais detalhado deste ponto ver Maggie e Fry (2006).

[10Nina Rodrigues não concluiu a redação deste último capítulo que parece ser um texto autónomo que os editores de Os Africanos no Brasil optaram, entretanto, por incluir na edição de 1933 do livro.

[11Já antes Nina Rodrigues havia escrito terem entrado os nagôs “numa fase muito curiosa do animismo em que as suas divindades já partilham das qualidades antropomórficas das divindades politeístas, mas ainda conservam as formas externas do fetichismo primitivo” (2008 [1933]: 147).

[12Sobre o mesmo tema, ver também Peel (2003: 278-309).

[13Ver Jenkins (1987) para uma apreciação da obra de A. B. Ellis. Neste artigo Jenkins torna claro que o tom elogioso empregue por Ellis em relação aos iorubás foi facilitado pela sua ligação pessoal a elites africanas locais, uma vez que casou com uma mulher de origem fanti, com a qual teve vários filhos.

[14Como sublinhou Stefania Capone (2000), a oposição entre a superioridade sudanesa e a inferioridade banto – retomada dos autores evolucionistas que escreveram sobre as culturas africanas no século XIX – é uma oposição que, a partir de Nina Rodrigues, influenciará uma parte importante da antropologia das religiões afro-brasileiras na primeira metade do século XX.

[15Embora esta ideia seja mais desenvolvida – por via do candomblé da Bahia – para o caso específico dos nagôs, ela é também visível no modo como Nina Rodrigues se refere – no capítulo que lhes é especificamente dedicado – aos negros muçulmanos do Brasil.