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International Encyclopaedia
of the Histories of Anthropology

Um humanista em Timor: biografia de Ruy Cinatti, antropólogo luso‑tropical

Cláudia Castelo

CIUHCT, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

2018
To cite this article

Castelo, Cláudia, 2018. “Um humanista em Timor: biografia de Ruy Cinatti, antropólogo luso‑tropical”, in BEROSE International Encyclopaedia of the Histories of Anthropology, Paris.

URL BEROSE: article1601.html

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Published under the research theme «History of Anthropology and Portuguese Ethnographic Archives (19th-21st centuries)», directed by Sónia Vespeira de Almeida (CRIA/NOVA FCSH, Lisbon) and Rita Ávila Cachado (CIES-IUL, Lisbon).

Ruy Cinatti [1] é uma figura singular da história da antropologia portuguesa, nomeadamente no contexto do Estado Novo e do regime colonial, bem como na transição para o regime democrático [2]. A sua experiência de terreno e o seu trabalho científico multidisciplinar – compreendendo estudos de etnologia, arqueologia e botânica – são relativos a Timor, com frequência considerada a mais remota colónia do império português [3]. Timor foi a sua paixão; paixão que o levou a desejar ter formação antropológica. Nascido em Londres em 1915 [4], foi tardiamente – depois dos quarenta anos de idade – que frequentou o curso de pós-graduação em antropologia da Universidade de Oxford, coordenado à época por E.E. Evans-Pritchard. Este aconselhou-o a seguir a sua vocação e a continuar os estudos. Sem renegar a formação inicial em engenharia agronómica, iniciou um doutoramento em Oxford sob a orientação de T.K. Penniman, conservador do Pitt-Rivers Museum entre 1939 e 1963, cuja visão abrangente da antropologia enquanto ciência do Homem composta não apenas pela vertente social e cultural, mas também pela arqueologia e pela antropologia física [5], encontrou decerto eco na disposição de Cinatti, cujos domínios de interesse antropológico eram assaz diversificados. O seu percurso cruzou-se igualmente com o de figuras de proa da escola portuguesa de antropologia física ou ’Escola do Porto’, liderada por Mendes Correia, cuja obra, dando embora algum espaço para a etnologia propriamente dita, tinha contornos racistas indissociáveis da identificação das capacidades de trabalho das populações colonizadas, o que desagradava profundamente a Cinatti. Espelhando embora influências muito diversas, quer portuguesas, quer estrangeiras, a sua maior afinidade – assim o afirmou explicitamente – era com Gilberto Freyre, numa percepção benévola e relativista das famosas teses luso-tropicalistas do antropólogo brasileiro.

Ruy Cinatti desempenhou vários cargos ao longo da sua carreira, numa trajetória que se tornaria em grande medida antropológica, ou etnológica, sobretudo a partir do momento – 1957 – em que integrou a Junta de Investigações do Ultramar. Teria também um papel de relevo no Museu de Etnologia desde a criação do mesmo em 1965 e até à sua aposentação em 1985. Mas acima de tudo, Ruy Cinatti foi um humanista, um poeta – mais conhecido porventura enquanto tal – cuja primeira formação era indissociável do seu amor à botânica e à natureza em geral, o que o levou a desenvolver uma visão articulada dos meios natural e cultural e uma sensibilidade pioneira em relação a questões de etnobotânica. Além disso, era profundamente imbuído de um sentimento religioso, auto-definindo-se como “católico poeta” (Stilwell, 1995: 69). A sua particular vivência do Catolicismo viria a ser um aspecto central na sua vida, no seu trabalho e na sua poesia. A fé religiosa estava aliás profundamente entrelaçada com o seu ideal nacional baseado na crença numa suposta vocação universalista de Portugal. Esta combinação de fatores chegou praticamente a colocá-lo em rota de colisão com o regime colonial português, ou pelo menos gerou uma constante inquietação, um olhar atento e crítico sobre as condições de vida das populações colonizadas e um desejo de aplicabilidade prática da antropologia que contrastava ainda com o ambiente de purismo funcionalista, focado sobretudo nas realidades pré-coloniais, que testemunhara em Oxford – embora Evans-Pritchard já então promovesse junto dos estudantes a aproximação entre a Antropologia e a História. “(…) [A]s duas disciplinas são indissociáveis”, escreveria Cinatti [6]. Ele próprio fazia questão de sublinhar que o seu curriculum era “de natureza plurivalente”, distribuindo-se “por assuntos interdisciplinares: Botânica (Fitogeografia), Agronomia e Silvicultura, Pré-História e História, Etnologia e, last but not least, a própria Poesia fundamentada no conhecimento ecológico e etnológico [7].”

De poeta-naturalista e engenheiro agrónomo a antropólogo

No final do primeiro ano do curso de Engenharia Agronómica, Ruy Cinatti participou no 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias, iniciativa de O Mundo Português: revista de cultura e propaganda, de arte e literatura coloniais (editada pela Agência Geral das Colónias e pelo Secretariado de Propaganda Nacional), destinada a estudantes e professores da metrópole. Nos meses de Agosto e Setembro de 1935, visitou Cabo Verde, a Guiné “portuguesa” (após a independência, Guiné Bissau), São Tomé e Príncipe e Angola. Na viagem tornou-se amigo do director cultural do cruzeiro, ninguém menos que Marcelo Caetano [8], e de um dos seus adjuntos, Orlando Ribeiro – porventura o mais destacado geógrafo português do século XX – e ainda de José Osório de Oliveira, escritor, poeta, crítico literário e funcionário do ministério das Colónias, responsável pelo gabinete de imprensa do cruzeiro. O objectivo da iniciativa era dar a conhecer “a extensão, a importância e a riqueza das colónias visitadas e estreitar as relações culturais e económicas entre a Metrópole e o Império Ultramarino” [9]. Esta experiência, de exaltação nacionalista, de contacto com a diversidade geográfica, étnica e cultural do império português, e – não menos importante – de deslumbramento sensorial, foi decisiva na opção de Cinatti por uma carreira ultramarina. Depois de regressar do Cruzeiro, decide que o seu futuro passa pelas províncias portuguesas de além-mar. Numa carta de novembro de 1935 a uma amiga inglesa, Amy Christie, Cinatti escreve: «It is settled, I will go to Africa, to Angola, I will go to Timor, I will go to any of the distant provinces of my Portugal. Oh! What bliss it was for me to be in those lands. Those large horizons made me have a broader view of things». (cit. Stilwell, 1995:33) [10].

Jorge Dias, no prefácio a Cancioneiro para Timor, fala do processo de transformação de Cinatti de poeta-naturalista – que se refere aos nomes dos pássaros e das árvores no conto Ossobó (1935) – em antropólogo (Dias, 1996:10). Para esta transformação foi decisiva a sua passagem por Timor. Depois de contactos infrutíferos com o ministro das Colónias, Marcelo Caetano, para integrar uma expedição militar a Timor, foi convidado para secretário e chefe de gabinete do recém-nomeado governador do território, capitão Óscar Ruas (1946-1947). Em 1946 e 1947, Cinatti acompanha o governador em viagens de reconhecimento por todo o território de Timor português, o que lhe proporciona a ocasião de se deslumbrar com o mundo natural, como já acontecera no cruzeiro de férias às colónias. A curiosidade, o interesse e o estudo da botânica, da agronomia e da silvicultura de Timor acabaram por aproximá-lo dos homens; a simpatia pelos timorenses fez com que os defendesse publicamente, denunciasse abusos, prepotências e arbitrariedades da administração colonial e desejasse contribuir para a melhoria das suas condições de vida. A aproximação aos timorenses está igualmente na origem da sua vontade de estudar Antropologia.

Além do deslumbramento imediato com a beleza das paisagens e a exuberância da vegetação, toma contacto com a destruição causada pela ocupação japonesa e o estado miserável da população. À margem das suas atribuições como chefe de gabinete do governador, Cinatti dedica-se ao estudo da botânica e deseja poder contribuir para a reconstrução de Timor nos sectores da agricultura, reflorestação e protecção da natureza. “Sonha com um desenvolvimento do território que integre ética e ciência” (Stilwell, 1995:176). A leitura do livro A ilha verde e vermelha de Timor, do advogado e etnógrafo-poeta Alberto Osório de Castro (que lhe é dado a conhecer pelo bispo de Díli, D. Jaime Garcia Goulart), é uma fonte de inspiração e acção, nomeadamente a frase: «Hoje, a obra de colonização ou é científica ou não é nada». Reúne e envia para a metrópole uma colecção de 60 amostras de madeiras, um herbário com 100 exemplares correspondentes e elementos necessários à classificação sistemática, análise macroscópica e utilização industrial daquelas madeiras.

Durante este primeiro período em Timor, assiste à substituição da administração militar, encarregada de restabelecer a soberania portuguesa do território por quadros administrativos vindos de Angola os quais, geralmente, tinham um comportamento prepotente e arbitrário, revelavam falta de compreensão pela cultura dos timorenses e tomavam medidas avulsas e “empíricas”.

Devido ao seu voluntarismo, entra em contacto com investigadores estrangeiros, nomeadamente com E. Meijer Drees, botânico dos serviços de agricultura da parte holandesa da ilha, que visita Timor oriental a seu convite e com o consentimento do governador. “Sob a orientação do cientista holandês, elabora um primeiro inventário botânico (Stilwell, 1995:184).

Depois de um esgotamento nervoso, consegue convencer o governador a libertá-lo do trabalho burocrático do gabinete para se poder dedicar ao estudo sistemático das potencialidades agronómicas e florestais de Timor. Dá aulas de desenho no liceu de Díli e, no tempo que lhe sobra, percorre livremente e demoradamente o território, recolhendo dados necessários à elaboração da sua tese de licenciatura em Engenharia Agronómica e contactando as populações e os funcionários das circunscrições administrativas. Estas vivências dão-lhe uma visão mais matizada e diversificada do comportamento dos quadros administrativos e, sobretudo, contribuem para a descoberta dos timorenses, enquanto seres humanos como ele, indivíduos com uma identidade própria. «Comecei […] a perceber que os timorenses eram algo mais do que simples figuras exóticas numa paisagem já de si exótica.» (Entr. 1972, cit. Stilwell, 1995:186). A simpatia humana para com os timorenses e o prazer que retira do convívio com eles está patente, nomeadamente, nas «Páginas dum diário poético» (1948) (Stilwell, 1995:187).

Ruy Cinatti regressa a Lisboa em finais de 1947 para apresentar a sua tese de licenciatura e, assim, abrir caminho a um futuro profissional estável. Timor continua no seu horizonte ou, em alternativa, Angola. Num relatório enviado à Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, em Março de 1949, explica que “foi o convívio, mais do que qualquer preocupação intelectual de ordem intrínseca, que [o] levou a receber a lição de geografia humana, etnografia, filologia e, portanto, de solidariedade, que Timor nos oferece. Com ela, [recebeu] a força que define o defensor de uma causa amada. A simples colheita de plantas obriga a desviar a atenção para fenómenos que outras funções estão longe de valorizar. Foi assim que, sem o saber, [esteve] seguindo os métodos de uma ciência nova: a etnobotânica agronómica, que em certos países coloniais já deu provas fundamentadas de utilidade na fixação, educação, elevação do nível de vida do indígena e do europeu [11].” Requer que a Junta o envie em missão científica a Timor, mas apenas obtém um subsídio para estudar, na metrópole, como estagiário, a flora, as madeiras e os recursos económicos de Timor. Publica através da Junta as obras Esboço histórico do sândalo no Timor português (1950), Explorações botânicas em Timor (1950) e Reconhecimento preliminar das formações florestais no Timor português (1950); estes dois últimos com base nos materiais reunidos na sua tese de licenciatura, apresentada no Instituto Superior de Agronomia sob o título Reconhecimento em Timor (2 vols.).

Vai amadurecendo a sua visão de um desenvolvimento integrado do território, capaz de articular as dimensões económica, social e cultural, ao serviço do bem-estar das populações. Contra a falta de planificação da administração, mostra que a investigação científica independente pode dar respostas para resolver os problemas do território.

Na sua segunda estadia em Timor (1951-1955), voltou a viajar pelo território, agora com responsabilidades acrescidas como chefe de Repartição de Agricultura. Esse contacto com a terra e os seus habitantes permitiu-lhe conhecer e compreender a racionalidade das práticas agrícolas timorenses. Com base nesse conhecimento detectou os principais erros da administração colonial em Timor: excesso de “empirismo” – ou seja, ausência de estudos prévios e planeamento da acção política – e desinteresse pelas condições e realidades locais. Paralelamente ao seu cargo de chefe de Repartição e à sua ocupação secundária como colector (bolseiro da Junta de Investigações), Cinatti foca a sua atenção no ambiente humano de Timor: “como o afecto e compreensão que lhe merecem homens da sua ou de outra raça, mais ou menos civilizados” [12]. Alerta várias vezes a administração colonial, tanto em Timor como em Lisboa, para a necessidade de adequar os procedimentos político-administrativos às tradições e mentalidade dos timorenses. A administração de Timor não segue os seus conselhos, embora Cinatti conte com importantes aliados no Ministério do Ultramar. O subsecretário de Estado do Ultramar, Krus Abecasis, irá visitar oficialmente Timor em 1956, devido às informações graves sobre abusos e injustiças sociais praticados pelos funcionários administrativos e pelos proprietários fundiários, que lhe foram transmitidas por Cinatti, e deixará instruções ao governador no sentido de uma moralização da administração colonial local [13]. Entre as medidas determinadas por Abecasis destaca-se o fim dos castigos corporais para compelir os indígenas ao trabalho. Não obstante, a metrópole ficava muito longe e o governo de Timor pôde ignorar aquelas orientações.

Em 1953, a Missão Antropológica de Timor da Junta de Investigações do Ultramar faz a sua primeira campanha no território. O chefe da missão, António de Almeida, é acompanhado por Mendes Correia, presidente da Junta. Cinatti junta-se aos dois cientistas viajando por todo o território. Renasce dentro de si a vontade de ingressar na Junta para se poder dedicar inteiramente à investigação científica. Porém, as condições que lhe são oferecidas não lhe dão garantias de futuro e Cinatti acaba por travar o processo. A excursão pelo interior do território despertou-lhe o interesse pela pré-história de Timor. As pesquisas então empreendidas deveriam ser divulgadas num Congresso antropológico nas Filipinas, numa comunicação assinada pelos três. A falta de preparação de António de Almeida e de Mendes Correia para se dirigirem a um público internacional terá deixado Cinatti envergonhado. As afirmações nada cosmopolitas, antes paroquialmente nacionalistas, de António de Almeida ao Diário Popular confirmaram as suas suspeitas de que a investigação científica em Portugal estava subordinada à conveniência política (Stilwell, 1995:220). Importa lembrar que António de Almeida e Mendes Correia eram deputados à Assembleia Nacional e estavam em sintonia político-ideológica com o Estado Novo.

Cinatti, com vontade de aprender e aprofundar conhecimentos de arqueologia e antropologia, estabelece contactos com professores universitários australianos e norte-americanos, pedindo-lhes sugestões de bibliografia e um programa de estudos. Projecta escrever um ensaio sobre a pré-história de Timor. Os seus esforços mereceram a aprovação e encorajamento de professores de Antropologia e Sociologia da Universidade de Sydney, nomeadamente A. P. Elkin [14], que estudava o problema das relações sociais entre os povos do Sudoeste do Pacífico.

A sua segunda estadia em Timor, mais demorada e vivida, permite-lhe uma ainda maior aproximação aos timorenses, e um conhecimento aprofundado dos seus modos de vida e das suas práticas agrícolas. Tenta, sem grande eco e sucesso, que a administração siga as suas instruções no domínio da agricultura, da silvicultura e da pecuária. Pretende que a economia de Timor não seja “apenas de exploração, mas, simultaneamente de conservação e de valorização” (cit. em Stilwell, 1995:209).

Hélder Lains e Silva, Engenheiro-Agrónomo, em visita Timor no âmbito de uma missão científica da Junta de Exportação do Café (1954), conta com a companhia, conhecimentos e “lições de timorismo” de Cinatti (Silva, 1956:XIII). As propostas concretas e fundamentadas de Lains e Silva para o cultivo do café em Timor, subscritas igualmente por Cinatti, não serão acolhidas pelo governador, capitão Serpa Rosa. O contacto estreito com Lains e Silva faz com que Cinatti valorize a sua classe profissional e se aperceba que, como agrónomo, pode contribuir para a melhoria das condições de vida dos timorenses. O seu “amor pela terra e pelas árvores só se justifica na medida em que o bem-estar do nativo for a preocupação dominante do [seu] espírito.” (carta 24.5.1955, cit. Stilwell, 1995:228). No livro Timor e a cultura do café, Lains e Silva refere que à excepção do seu amigo e colega [15] e de Simões Martinho [16], “todos [os escritores] acusam os Timores de madraços, de bêbados, de jogadores” (Silva, 1956:6). No manifesto “Em defesa dos Timorenses” (1956), Cinatti combateu preconceitos amplamente difundidos sobre a preguiça dos timorenses, o seu desinteresse por qualquer esforço a que não fossem obrigados.

Em 1955 o governo de Díli declara que os homens timorenses não podem usar a lipa (um pano tradicional usado à volta da cintura), argumentando que era atentatório da dignidade do sexo masculino. Cinatti envia um violento protesto para o governo de Lisboa, afirmando que tal proibição denotava prepotência e desrespeito pelas tradições timorenses; além de ser um erro político de consequências imprevisíveis (carta citada em Stilwell, 1994, 220). Escreve também a Gilberto Freyre, denunciando a situação (Freyre, 1961:193). E em 1957 falam pessoalmente em Lisboa [17] sobre aquele e outros factos que atestam que os governantes de Timor se têm desviado nos últimos decénios da tradicional política portuguesa de assimilação:

Ainda o ano passado me referia, sobre este assunto, em Lisboa, factos significativos, um dos mais conhecidos agrónomos portugueses especializados no estudo de solos e plantações da parte lusitana de Timor: o meu amigo Ruy Cinatti, que actualmente estuda Antropologia em Inglaterra. Desses factos, o que mais me impressionou, de entre os referidos por esse informador idóneo, foi o de ter, nos últimos anos, a administração portuguesa em Timor criado embaraços aos tecidos feitos em casa pelos indígenas daquela ilha e aos estilos de traje por eles adoptados, conforme velhas tradições que se conformam com as condições de clima da região, por entender a mesma administração que tais tecidos e estilos, de um evidente interesse artístico, além do higiénico, devem ser substituídos pelos europeus […]. Exactamente o contrário da atitude ou da orientação que devia estar a ser, ou vir a ser, seguida pelos homens do governo português de Timor, se fossem homens esclarecidos pelo estudo antropológico e sociológico do assunto. Mais: se fossem homens de governo mais penetrados do conhecimento das tradições portuguesas de administração de terras e populações tropicais. […]” (Freyre, 1961:193-194) [18]

Cinatti e Gilberto Freyre haviam-se conhecido em Lisboa em Agosto de 1951, antes do poeta regressar a Timor em Setembro. No seu livro Aventura e Rotina (1953), o antropólogo e antropólogo brasileiro afirma que Cinatti “chega a ser, na sua ciência, um voluptuoso das plantas e das cores e aromas dos trópicos. Não conheço hoje português algum que seja, mais do que ele, um tropicalista. Tropicalista pela sua especialidade de botânico e pelo amor com que estuda a natureza tropical” (Freyre, [1954]:34). Cinatti considera-se “o discípulo da última fila” do mestre de Apipucos [19] e acolhe entusiasticamente o luso-tropicalismo, que considera ser a verdadeira e tradicional adesão humana dos portugueses aos valores tropicais (Cinatti, 1987:15). Encara as ameaças à cultura timorense como desvios à tradição portuguesa contrária a qualquer tipo de discriminação racial.

No regresso a Lisboa toma a decisão de estudar Antropologia Cultural. Nesse sentido, requer ao ministro do Ultramar permissão para integrar a Junta de Investigações do Ultramar como investigador e frequentar um curso de Antropologia em Inglaterra. Gostaria de voltar a Timor, após a conclusão do curso, porque se sente “ligado e obrigado a Timor por uma dívida de gratidão que estava ainda por saldar [20].” O despacho que autoriza a sua contratação e a concessão da bolsa é do subsecretário de Estado do Fomento Ultramarino, Carlos Krus Abecasis [21].

Em 1958 desloca-se a Timor como chefe da Missão de Estudo do Habitat Nativo de Timor, criada por iniciativa de Krus Abecasis, que já o havia enviado à conferência internacional sobre Habitação e Urbanização ao Sul do Saara (Londres, Dez. 1957). A Missão integra dois arquitectos, Leopoldo de Almeida e António de Sousa Mendes.

Em Novembro de 1961 regressa a Timor para fazer trabalho de campo para a sua tese de doutoramento oxoniana, provisoriamente intitulada ’The Ecology, History and Material Culture of Portuguese Timor, with special reference to the Native Habitat’ – mas que nunca chegaria a apresentar, apesar de lhe terem sido concedidos vários adiamentos do prazo de entrega. Denuncia então os abusos praticados por portugueses naturais da metrópole em termos de delapidação do património histórico da ilha; já anos antes, em 1955, havia denunciado a destruição do património natural (o abate dos gondões da baía de Díli ou a abertura de picadas em zonas de relevo acidentado para o plantio dos cafeeiros, expondo o terreno aos efeitos desastrosos da erosão). Em Janeiro de 1962 ‘descobre’ três sítios de pinturas rupestres de alto valor arqueológico no contexto do Sudeste Asiático. Para essa ‘descoberta’ contribuiu decisivamente o facto de ter sido convidado a fazer um pacto de sangue com um dos líderes da região, o que imediatamente lhe abriu “portas ciosamente fechada a estranhos: aqueles sítios eram locais de adoração gentílica de grupos genealógicos” [22]. Escreve ao ministro do Ultramar, Adriano Moreira, dando conta do sucedido, pedindo para que seja enviado para Timor o operador de cinema Salvador Fernandes, e requerendo permissão da Junta de Investigações do Ultramar para prolongar a sua estadia. Conclui o telegrama, declarando: «Estou feliz».

Mais tarde nesse ano, em resposta ao seu amigo, o escritor, poeta e dramaturgo Jorge de Sena, então exilado no Brasil, Cinatti explica que não poderia aceitar um lugar de professor de Agronomia numa universidade brasileira porque “morreria de vergonha se abandonasse o seu país num momento em que todos estão contra Portugal.” Acredita que poderá ser útil nos domínios científico e social em Timor, onde já é irmão, por pacto de sangue, de muitos timorenses [23]. Em 1966 faz uma curta visita à ilha, para se encontrar com os membros da Missão Antropológica Luso-Francesa, dirigida por Louis Berthe, e com o antropólogo britânico David Hicks.

Após a mudança de regime, a ligação aos timorenses continua a movê-lo. Em 1975, Cinatti pede autorização superior para voltar a Timor para estudar outros sítios arqueológicos. Mas entre as razões que invoca estão “o contacto com as suas «famílias» timorenses, através de pacto de sangue e o amor pelos timorenses [24].” Ruy Cinatti, que chegou à antropologia pela sua capacidade de amar e respeitar a natureza e os homens e compreender a relação entre ambos, acreditava numa ciência aplicada independente das conveniências políticas. O seu trajeto de vida, como antropólogo multifacetado e “luso-tropical”, o comprova.

Bibliografia de Ruy Cinatti

(selecção de trabalhos relacionados com Antropologia de Timor português):

CINATTI, Ruy. 1962. “Contribuição para o entendimento da religião dos timorenses [I]”. A Voz de Timor. Díli, 24 de Junho, p. 1-4.

CINATTI, Ruy. 1963. “As pinturas rupestres de Timor”. Colóquio. Abril, p. 48-59.

CINATTI, Ruy. 1965. “A pescaria da Bé-Malai: mito e ritual”. Geographica. Vol. 1, n.º 1, p. 33-47.

CINATTI, Ruy. 1965. “Tipos de casas timorenses e um rito de consagração”. Actas do Congresso Internacional de Etnografia. Vol. IV. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, p. 155-179.

CINATTI, Ruy. “Alguns aspectos de mudança social no Timor português”. In: In Memoriam António Jorge Dias, vol. 3. Lisboa, 1974. p. 95-105.

CINATTI, Ruy. 1987. Motivos artísticos Timorenses e a sua integração. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical. Museu de Etnologia.

CINATTI, Ruy; OLIVEIRA, Carlos Ramos de. 1973. “A Ilha Verde e Vermelha de Timor”. Geographica: Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, IX, 36: 20-32.

Cinatti, Ruy; Almeida, Leopoldo de; Mendes, Sousa. 1987. Arquitectura Timorense. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical. Museu de Etnologia.

Bibliografia

CASTRO, Alberto Osório de. 1943. A ilha verde e vermelha de Timor. Lisboa: Agência Geral das Colónias.

DIAS, Jorge. 1996. Prefácio. In: Ruy Cinatti, Cancioneiro para Timor. Lisboa: Editorial Presença, p. 9-11.

FREYRE, Gilberto. [1954]. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e de acção. Lisboa . Livros do Brasil.

FREYRE, Gilberto. 1961. O Luso e o trópico. Sugestões em torno dos métodos portugueses de integração dos povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização: o luso-tropical. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique

HICKS, David. 2011. Depoimento do Professor David Hicks sobre Ruy Cinatti [Entrevista concedida a Cláudia Castelo]. Lisboa: [s.n.], 28 de junho.

HICKS, David. 2012. “A pesquisa etnográfica no Timor Português”. In: Kelly Silva e Lúcio Sousa (org.). Ita Maun Alin… O Livro do Irmão Mais Novo: Afinidades Antropológicas em Torno de Timor Leste. Lisboa: Colibri.

LARSEN, Frances & PETCH, Alison Petch. 2006. ‘Hoping for the best, expecting the worst’: T. K. Penniman – Forgotten curator of the Pitt Rivers Museum. Journal of Museum Ethnography. 18: 125-139. Disponível em http://history.prm.ox.ac.uk/papers_hoping_for_the_best.html (Último acesso em 9.9.2011)

OLIVEIRA, Alexandre. 2006. Olhares sobre Timor [Texto policopiado]: contextos e processos da antropologia de Timor, Lisboa: Tese de mestrado em Antropologia: Patrimónios e Identidades, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa‐ISCTE.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. 1987. Timor de Ruy Cinatti. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical. Museu de Etnologia.

SILVA Hélder Lains e. 1956. Timor e a cultura do café. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.

STILWELL, Peter. 1995. A condição humana em Ruy Cinatti. Lisboa: Presença.

Fontes de arquivo

Biblioteca Universitária João Paulo II, Espólio de Ruy Cinatti.

Museu Nacional de Etnologia, Espólio de Ruy Cinatti.

Arquivo do Instituto de Investigação Científica Tropical, Fundo da Comissão Executiva da Junta de Investigações do Ultramar, Processo n.º 273 – Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes, 5 vols.




[1De seu nome completo, Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes. Agradeço a Frederico Delgado Rosa pela sua leitura crítica do manuscrito e pelas suas sugestões.

[2Recorde-se, aos leitores menos familiarizados com a história contemporânea de Portugal, que o país viveu a mais longa ditadura nacionalista, entre 1926 e 1974.

[3Correspondente à metade oriental da ilha de Timor, no Sudeste asiático. Colónia portuguesa desde o séc. XVI e até à sua invasão pela Indonésia em 1975.

[4Os pais tinham casado no ano anterior em Londres, onde o avô materno, Demétrio Cinatti, filho de um arquitecto italiano, era cônsul de Portugal. A mãe, Hermínia Celeste Cinatti, quis ir ter o filho a Londres. Morreu com 39 anos, quando Ruy tinha apenas dois anos. O pai, António Vaz Monteiro Gomes, foi enviado numa missão do governo português aos Estados Unidos e seu filho Ruy ficou a cargo do avô Demétrio, que então já vivia em Lisboa. Em 1921, com a morte deste, o jovem Ruy foi viver com os avós paternos, o juiz Vicente Luís Gomes e a mulher, Amélia Augusta Vaz Monteiro. O pai casou nos EUA com Flora Stern, com quem teve uma filha, Amélia Vaz Monteiro Gomes. Em 1925, o pai regressa a Portugal com a nova família e Ruy Cinatti passa a viver com eles. Cf. Stilwell, 1995:21-7.

[5Essa concepção, fruto do seu próprio trabalho museológico em Oxford, era já considerada ultrapassada por alguns colegas aquando da publicação do seu livro A Hundred Years of Anthropology (1935). Nos anos 30, opôs-se aos esforços de Radcliffe-Brown de dividir o diploma de Oxford em três qualificações separadas (Larsen & Petch, 2006:125-139).

[6Requerimento de Ruy Cinatti dirigido ao ministro da Educação e das Universidades, a propósito da sua reclassificação, datada de 24.2.1983, fl. 2. Arquivo do IICT, Processo n.º 273, vol. 5.

[7Requerimento de Ruy Cinatti ao ministro da Educação e das Universidades, 24.2.1983, fl. 2. Arquivo do IICT, Processo n.º 273, vol. 5, fl. 2-3.

[8Recorde-se que Marcelo Caetano, futuro ministro das colónias e sucessor de Salazar, era já então uma das mais destacadas figuras do regime.

[9Roteiro do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe e Angola: iniciativa do «Mundo Português» 1935. Lisboa: [Sociedade Industrial de Tipografia Lda.], 1935, p. 7-8.

[10Não será por acaso que a sua primeira ocupação profissional foi como meteorologista da Pan-American Airways (1942-1945).

[11Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes - De Timor. Lisboa: [s.n.], 1949. 51, [12] f. Relatório apresentado à Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais. Acessível no CDI-IICT (CACSL-4626). Sublinhado meu.

[12Requerimento enviado por Ruy Cinatti ao ministro do Ultramar, em 29.10.1956. Arquivo do IICT, Proc. n.º 273, vol. 1, doc. 6.

[13Foi na Juventude Universitária Católica, onde ingressou enquanto estudante, que Cinatti desenvolveu uma especial amizade com Carlos Krus Abecasis – futuro subsecretário de Estado do Ultramar (1955-1958), subsecretário de Estado do Fomento Ultramarino (1958-1960) e presidente da Comissão Executiva da Junta de Investigações do Ultramar (1961-1970), cargos em que se revelaria um interlocutor privilegiado e ‘protector’ do seu amigo Cinatti.

[14Adolphus Peter Elkin (1891-1979). Antropólogo australiano, responsável pelo departamento de Antropologia da Universidade de Sydney, a partir de 1934. Fez a tese de doutoramento no University College, de Londres, sobre mito e ritual aborígene (1927). Em 1933 tornou-se presidente da Association for the Protection of Native Races, um organismo que trabalhava em prol da melhoria das condições de vida dos aborígenes, mantendo-se no cargo até 1962. Foi também membro do Aborigines Protection Board criado pelo governo de New South Wales em 1939 e seu vice-presidente entre 1941 e 1968. Disponível em http://sydney.edu.au/arms/archives/elkinbio.shtml (Último acesso em 9.5.2011).

[15Timoriana (Inédito), Díli, 1952-1955. Não encontrei nenhuma outra referência a esta obra citada por Lains e Silva na bibliografia de Timor e a cultura do café.

[16Problemas administrativos e de colonização da Província de Timor, Porto, 1934.

[17Em Abril de 1957, Gilberto Freyre esteve em Lisboa na 30ª sessão do INCIDI (Institut International des Civilisations Différentes/International Institute of Differing Civilizations).

[18Embora a obra seja publicada em 1961 o texto foi visivelmente escrito em 1958.

[19Carta de Ruy Cinatti para Gilberto Freyre, Timor, 31.1.1952 (Arquivo Documental Gilberto Freyre, Fundação Gilberto Freyre, Recife, Brasil).

[20Requerimento de Ruy Cinatti enviado ao ministro do Ultramar, 29.10.1956. Arquivo do IICT, Proc. n.º 273, vol. 1, doc. 6.

[21O requerimento que Ruy Cinatti dirigiu ao Ministro do Ultramar, em 29.10.1956, é enviado por Krus Abecasis à Junta de Investigações do Ultramar com o seguinte despacho: “Junta das Missões: Estude-se a possibilidade de o Eng.º Cinatti passar à situação de investigador da Junta, analisando o precedente do Eng.º Mouta” Carlos Krus Abecasis. 30.10.1956. Refere-se ao Engenheiro geólogo Fernando Mouta (1900-63), que trabalhou na “Missão Geológica de Angola”, criada por Norton de Matos em 1921, e nos Serviços de Geologia e Minas de Angola. Também se dedicou a estudos de Pré-História de Angola.

[22Carta de Ruy Cinatti para a Comissão de Gestão da JICU, 24.7.1975 (Arquivo do IICT, Proc. n.º 273, doc. 463).

[23Carta, 13.10.1962, cit. Peter Stilwell – Op. cit., p. 303.

[24Carta de Ruy Cinatti para a Comissão de Gestão da JICU, 24.7.1975 (Arquivo do IICT, Proc. n.º 273, doc. 463).