Personalidade carismática, dada a inflexões nos seus estados de alma, por vezes mordaz, Malinowski tinha o dom de suscitar controvérsias à sua volta [1]. Pai fundador da antropologia social britânica, foi pioneiro dos métodos de trabalho de campo modernos, reinventou a etnografia enquanto género literário, promoveu a antropologia aplicada em África e participou em numerosos debates, tanto dentro como fora da academia. O corpus bibliográfico que produziu sobre os Trobriandeses representa o seu êxito mais duradouro, tratando-se de uma das etnografias mais exaustivas e conhecidas à escala mundial. As suas diretivas a respeito do trabalho de campo tornaram-se um axioma, um guia para todos aqueles que, nas gerações seguintes, tiveram que passar por esse duro e por vezes traumático rito de passagem. A obra de Malinowski continua a estimular, a provocar e a convidar a releituras. E enquanto os antropólogos continuarem a viver entre as comunidades que estudam, continuarão também a ser orientados, pelo menos tacitamente, pelas suas ideias relativas à interdependência funcional dos fenómenos socioculturais que observam. É com a etiqueta do funcionalismo, na interpretação que lhe dá Malinowski, que os seus métodos pioneiros, os seus escritos de referência e as suas aulas inspiradoras revolucionaram a disciplina.
De Cracóvia a Londres
Filho único, Bronislaw Kasper Malinowski nasce em Cracóvia, capital da Galícia, região polaca pertencente ao império austro-húngaro. Os seus pais pertencem à nobreza polaca empobrecida, de confissão católica, à qual o jovem Bronislaw renunciará. O seu pai, distinto professor de filologia eslava na vetusta Universidade Jaguelónica de Cracóvia, morre quando o filho tem catorze anos de idade. A escolaridade de Malinowski é interrompida por recorrentes problemas de saúde ; e a sua mãe, por quem tem uma adoração, encarrega-se então da sua instrução. Juntos, viajam até diferentes países mediterrânicos à procura de um clima mais favorável para a sua frágil constituição. Aos dezasseis anos, Malinowski fala várias línguas e dá mostras de uma postura cosmopolita que revela já o seu gosto pelo distante. A exemplo do seu compatriota Józef Korzeniowski, aliás Joseph Conrad (1857-1924) – o célebre romancista que deixara a terra natal para se alistar na marinha mercante francesa e, depois, na inglesa – Malinowski evocará essas precoces experiências de diversidade cultural para explicar a sua irresistível atração pelo exótico.
É na Universidade Jaguelónica que estuda filosofia, física e matemática, doutorando-se em 1908 com a mais elevada menção. Epicentro da vida intelectual e artística, a Cracóvia do início do século acolhe o movimento modernista Jovem Polónia (Mloda Polska), que promove o erotismo e a ’loucura sensual’. Entre as figuras de vanguarda mais influentes durante esse período da vida de Malinowski, cabe evocar o pintor surrealista, dramaturgo e romancista Stanislaw Ignacy Witkiewicz (1885-1939), que assina Witkacy. Os dois desenvolvem uma relação ao mesmo tempo íntima, apaixonada e competitiva, além de partilharem as suas conquistas sexuais. Ultrapassado pelo génio artístico de Witkacy, Malinowski resolve redirecionar para a ciência as suas próprias ambições criativas. A sua brilhante tese sobre o positivismo de Ernest Mach (1838-1916), intitulada ’Acerca do princípio de economia de pensamento’, contém os germes da sua doutrina funcionalista. Seguindo as pegadas do pai, passa um ano na Universidade de Leipzig, onde desiste da físico-química para se dedicar à Völkerpsychologie de Wilhelm Wundt (1832-1920) e à história económica de Karl Bücher (1847-1930). Se a leitura do célebre The Golden Bough de James Frazer (1854-1941) já lhe despertara na juventude uma centelha de interesse pela antropologia, agora sabe que quer tornar-se antropólogo.
Em março de 1910, Malinowski parte para Londres a fim de prosseguir os seus estudos na London School of Economics, nos domínios da etnologia e da ’sociologia primitiva’, sob a orientação de Charles G. Seligman (1873-1940) e de Edward Westermarck (1862-1939). Anglófilo convicto, consegue conquistar a amizade de ninguém menos que Frazer, mas também a de Alfred C. Haddon (1855-1940) e de W. H. R. Rivers (1864-1922), que são, como Seligman, veteranos da célebre Expedição de Cambridge ao Estreito de Torres (1898-1899). Cada um destes homens desempenha um papel no avanço inicial da carreira de Malinowski. Efetivamente, a sua chegada a Inglaterra ocorre numa boa altura, num momento auspicioso da história da antropologia britânica. Os seus mentores tinham justamente contribuído para a profissionalização da disciplina, fazendo apelo a pesquisas etnográficas mais sistemáticas. Ainda que de forma divergente, professavam o ’culto’ do terreno. Haddon e Seligman entregavam-se a uma etnografia de salvação ainda marcada pelo espírito dos ’questionários’ do século XIX e pela vontade de registar o máximo de pormenores, o que engendrava monografias volumosas, é certo, mas de reduzido valor analítico. Malinowski, por sua vez, cortou com o século XIX antes mesmo de fazer trabalho de campo. Em 1913, publica uma obra que começara a redigir quando ainda estava em Leipzig, The Family among the Australian Aborigines, que será elogiada como um modelo de cientificidade pelo seu futuro rival, A. R. Radcliffe-Brown (1881-1955). A partir de uma avaliação crítica da literatura etnográfica, esse estudo aborda as controvérsias em torno da origem do casamento e da família e procura dar o golpe de misericórdia aos dogmas evolucionistas sobre a existência do casamento de grupo entre os aborígenes e concomitante inexistência da família nuclear. Em contrapartida, a metamorfose de Malinowski no terreno revelar-se-á mais gradual.
A Cólquida melanésia
Em agosto de 1914, quando rebenta a Grande Guerra, Malinowski encontra-se na Austrália, donde deve partir para a então colónia australiana da Papuásia (ex-Nova Guiné britânica). Apesar do seu estatuto de estrangeiro inimigo (súbdito do império austro-húngaro), é-lhe permitida a permanência para levar a cabo as suas investigações, com algumas restrições apenas. É em todo o caso sob muito leve vigilância por parte das autoridades locais que acaba por passar de modo bastante pacífico o tempo de guerra, ainda que seja abalado pelas notícias dos terríveis acontecimentos na Europa e especialmente devastado ao saber, tardiamente, da morte de sua mãe na Polónia.
O seu primeiro terreno, junto de comunidades da costa sul da Papuásia, dura apenas três meses e pouco se afasta do método etnográfico de Haddon e de Seligman. Com a ajuda dos missionários locais e recorrendo a uma lingua franca, dá-se conta dos limites desse tipo de pesquisa. Ao regressar à Austrália por uns meses, escreve a ritmo acelerado « The Natives of Mailu » (1915), um relato estruturado de forma convencional, segundo as categorias, então ainda em vigor, das Notes and Queries in Anthropology. Se bem que essa monografia lhe permita obter um financiamento suplementar por parte do governo australiano e o ajude a obter o grau de doutor pela universidade de Londres, ele próprio a subestima, falando da mesma como de uma simples ’brochura’.
Malinowski regressa à Papuásia em 1915. E enquanto espera a chegada de uma embarcação com destino à costa norte, decide dar um salto às ilhas Trobriand, na parte norte de Massim, uma região insular que Seligman estudara uma década antes. Essa decisão mudará a sua vida para sempre. Ainda que receie pisar os calos etnográficos do seu mentor, Malinowski sente-se intelectualmente cativado pela vibrante cultura dos Trobriandeses. E de qualquer forma, Seligman não se opõe à iniciativa. Malinowski conduz duas expedições de dois anos nessas ilhas, a primeira em 1915-1916 e a segunda em 1917-1918. Isso permite-lhe aplicar as regras metodológicas do seu outro mestre e ’santo patrono do trabalho de campo’, W. H. R. Rivers. Em Kiriwina, a ilha principal, acaba por colher os frutos de uma pesquisa ao mesmo tempo intensiva e minuciosa, marcada desta vez pela circunstância de ’viver verdadeiramente com os nativos’ até dominar a sua língua.
Para evitar o contacto com os colonos europeus, monta a sua tenda na aldeia de um chefe local e apercebe-se rapidamente que a observação atenta das atividades e das interações quotidianas lhe permite alcançar uma perceção inesperada da vida das pessoas. O tempo e o esforço dedicados à aprendizagem da língua de Kiriwina terão as devidas recompensas etnográficas. O registo de situações concretas torna-se o eixo do seu método no terreno. Reúne uma quantidade imensa de dados, de genealogias, de mapas e de plantas esboçados à mão, de fotografias, de mensurações, e, sobretudo, de discursos vernaculares que transcreve diretamente, a respeito de todos os temas possíveis e imaginários. Constrói também quadros sinóticos que lhe permitem sintetizar a informação para melhor identificar as lacunas, mas também as conexões entre as diferentes instituições sociais e culturais. Se Malinowski tende mais a observar do que a participar nas atividades dos nativos, a ’observação participante’ será a palavra de ordem para os antropólogos que se lhe seguirão.
A etnografia enquanto imersão numa outra cultura comporta contudo um pesado preço psicológico. O diário que Malinowski mantém em Kiriwina (e que só será publicado postumamente) revela de forma dramática as dificuldades dessa missão solitária. Uma importante dimensão desses cadernos íntimos diz respeito à sexualidade. Neles se deteta um certo pudor, o que contradiz a sua reputação de mulherengo. Com efeito, muita da sua energia emocional é gasta a conter as suas pulsões sexuais no terreno. O medo da impureza permite-lhe na maior parte das vezes refreá-las ; e se ocasionalmente cede à tentação de ’apalpar’ uma sedutora ’sereia’ trobriandesa, é sempre com remorsos e martirizando-se. Os escrúpulos morais de Malinowski vêm-lhe em parte de uma crença sincera na dimensão espiritual da relação sexual e da sua adesão à ideia, defendida pelo antropólogo evolucionista Ernest Crawley (1867-1924), de que ’o sexo é perigoso’.
No seu diário íntimo, Malinowski anota dia após dia os seus dilemas morais e os seus fracassos, mas também os seus êxitos. E sobretudo, toma consciência que um tal exercício é o contraponto indispensável da sua etnografia, ajudando-o a tornar mais incisiva a sua compreensão da vida dos Trobriandeses e aproximando-o do objetivo final do etnógrafo : captar a maneira de ver o mundo, a Weltanschauung dos nativos.
Malinowski interrompe o seu trabalho de campo e faz uma longa pausa de vinte meses em Melbourne. É nessa altura que faz a corte a Elsie Rosaline Masson (1890-1935), filha de um eminente professor de química escocês. Acabarão por casar e ter três filhas. Apesar dos problemas de saúde recorrentes, esse período australiano revela-se produtivo. Malinowski redige então « Baloma : the Spirits of the Dead in the Trobriand Islands », que publica em 1916. Esse tratado metodologicamente sofisticado sobre a sociologia da religião trobriandesa é dedicado aos alicerces ideológicos do parentesco matrilinear e da negação da paternidade fisiológica.
Durante a sua segunda expedição às ilhas Trobriand, entre 1917 e 1918, Malinowski concentra-se na verificação, na validação e no alargamento dos dados coletados durante a estada anterior. Transcreve peças de literatura oral e consolida o seu domínio da língua vernacular.
O velo de oiro moderno
Quando a Guerra termina, Malinowski regressa à Austrália ’carregado de materiais como um camelo’. No início de 1920, regressa à Europa com a sua noiva – e com o seu tesouro etnográfico. Após uma breve estadia na Escócia, e também na Polónia, onde Malinowski recusa a oferta de um lugar de professor na Universidade Jaguelónica, o casal instala-se por uns meses no Tenerife, nas Canárias espanholas. É aí que ele termina a redação da sua monografia clássica, Argonauts of the Western Pacific (1922). Se inicialmente tinha considerado converter os seus cadernos de campo num volume exaustivo, acaba por abandonar esse projeto gigantesco, optando antes por produzir uma série de monografias temáticas. A primeira é um relato rico em pormenores sobre as viagens de canoa que ligam as ilhas Trobriand a outros arquipélagos de Massim através do circuito kula, marcado por trocas cerimoniais de colares e pulseiras de conchas. Malinowki convida o venerando James Frazer a escrever o prefácio, o que contribui para o êxito do lançamento dos Argonautas. Sem ser um best-seller comparável a The Golden Bough, a obra será constantemente reeditada – até aos dias de hoje.
Nesta monografia ’trobriandesa’ (como nas seguintes), Malinowski estabelece como princípio de honestidade científica a separação entre o que são factos e o que é do domínio da opinião. Na maior parte dos casos, impõe-se o dever de dizer aos seus leitores quais os acontecimentos que ele próprio testemunhou, fazendo do sentido da visão um argumento de autoridade. A obra não tem precedentes. A intenção explícita de Malinowski consiste em elevar a etnografia ao estatuto de arte profissional. Argonauts of the Western Pacific, um dos seus mais belos escritos etnográficos, é uma sábia conjugação de descrições coloridas, de anedotas reflexivas, de comentários nativos enriquecidos de observações teóricas. Ele que sonhava ser o Joseph Conrad da antropologia, terá sido antes o seu Émile Zola.
Os Argonautas são também um texto fundador da antropologia económica e podem ser lidos como uma crítica teórica das visões correntes sobre o homo œconomicus primitivo, uma ’criatura imaginária, fictícia’, movida por um interesse pessoal fácil de perceber. Malinowski introduz aí uma dimensão moral ; com o seu relato do kula (que vê como a mais elevada expressão da noção de valor dos Trobriandeses), deseja destruir esse espantalho e dissipar as conceções racionalistas da humanidade primitiva. Ainda que tenha concebido os Argonautas antes de desenvolver as suas teses funcionalistas propriamente ditas, a estratégia metodológica de Malinowski consiste em associar a magia ao mito e ambos à atividade económica para demonstrar a interdependência das instituições sociais. Neste sentido, pode dizer-se que a obra é funcionalista. Do ponto de vista teórico, a sua estratégia consiste, não apenas em desvendar a Weltanschauung dos Trobriandeses, mas também em construir uma ponte entre a sua cultura e o resto da humanidade.
Seja como for, os Argonautas representam, a par de The Andaman Islanders, de Radcliffe-Brown, igualmente publicado em 1922, uma mudança de paradigma decisiva para a antropologia britânica, em virtude da qual as especulações evolucionistas e difusionistas sobre o passado da humanidade são substituídas por uma antropologia social do presente, assente em monografias que articulam de uma forma ou de outra os dados etnográficos e a reflexão teórica. A revolução pretendida por Malinowski passa por um ataque frontal aos velhos ’antiquários’ : o trabalho de campo intensivo devia transformar a desusada coleta de ’usos e costumes’ em análise sociológica das instituições. Cada domínio etnográfico – a magia e a religião, a mitologia, a língua, a lei, a sexualidade, o parentesco, o casamento e a família – torna-se um alvo dessa tática, que consiste em apresentar os dados de primeira mão em toda a sua complexidade, em toda a sua profundidade. Os antropólogos da velha guarda que Malinowski pretende pôr em xeque não podem deixar de se sentir visados.
As funções do mestre
A ascensão de Malinowski na Universidade de Londres é célere. Logo em 1922, é nomeado professor na London School of Economics, até se tornar titular da cadeira de ’Social Anthropology’ cinco anos mais tarde. Pedagogo estimulante, ele forma toda uma geração de antropólogos através do seu seminário perfeitamente socrático. As suas aulas são eletrizantes e atraem estudantes com formações diversas e vindos de todos os continentes, que contribuem para a efervescência das ideias. Malinowski utiliza aquilo que o seu discípulo e depois colega Raymond Firth (1901-2002) chamará de ’terapia de choque intelectual’, obrigando os estudantes a pensar por si mesmos. A sua paixão, o seu carisma, e mesmo os seus estados de alma inspiram a lealdade inquebrantável de uns ou suscitam a antipatia de outros – nenhum dos seus estudantes fica indiferente à sua personalidade. Os mais talentosos de entre eles, uma vez posicionados, por seu turno, em lugares-chave da Grã Bretanha ou do império, darão à antropologia social a sua fisionomia intelectual característica. Pode-se portanto dizer que Malinowski criou uma escola de antropologia social coerente, que dará os seus frutos durante toda uma geração.
Uma das suas lições consiste em afirmar que a descrição das ’realidades invisíveis’ de uma cultura depende da compreensão da interdependência das suas instituições. É nos seminários da London School of Economics, e mais exatamente a partir de 1926, que Malinowski desenvolve o funcionalismo como sua ’marca distintiva’. Para fazer uma demonstração teórica a partir de casos empíricos, utiliza quadros sinóticos. Mas além de estabelecer que todos os elementos culturais, da família à sexualidade, da lei à economia e à política, estão ligados entre si de forma integrada, a sua tese revela que a finalidade última desses elementos é a satisfação de necessidades biológicas, para concluir enfim que o homem é um animal cultural, que faz da cultura o instrumento adequado para responder a esses fins. Em qualquer caso, o objetivo declarado de Malinowski ao elaborar a sua teoria funcionalista é descobrir leis e regularidades subjacentes à vida social, o que supõe a existência de universais culturais.
O seu funcionalismo tem também uma dimensão metodológica, no sentido em que é uma teoria que, sendo inspirada pelo trabalho de campo, molda por sua vez a praxis etnográfica. É uma abordagem, defende Malinowski, ’que começa no terreno e que acaba por lá voltar’. A observação empírica, diz ele aos seus discípulos, é a principal atividade científica da antropologia, uma vez mais em contraste com as correntes anteriores. É através da observação no terreno que o investigador pode verificar como ’funciona’ um costume ou uma instituição, o que lhe permite compreender para que servem. É aí que se encontra, segundo ele, a via de acesso ao seu sentido e à sua razão de ser. Ensina então aos seus alunos que os factos não são independentes da teoria, e que é nomeadamente a teoria funcionalista que fornece os critérios do que é pertinente observar, selecionar e registar, além de permitir orientar o etnógrafo para novas pesquisas, que por sua vez suscitarão novas questões. Em qualquer caso, o funcionalismo enquanto doutrina etnográfica exige que todos os dados sejam plenamente contextualizados, ou seja, que sejam tratados segundo uma perspetiva holista. A teoria de Malinowski torna-se um antídoto contra os métodos comparativos herdados do século XIX, que dissociavam frequentemente os costumes dos seus contextos respetivos sob pretexto de proceder a uma reconstituição do passado longínquo. Ele coloca definitivamente a tónica nas pesquisas sincrónicas, porque o antropólogo deve estudar a função de uma instituição no contexto social presente e vivo. No seu entusiasmo, Malinowski vê-se a si próprio como um profeta e autoproclama-se ’padrinho e porta-estandarte da escola funcionalista’, inventor de um novo método com vista a renovar a ciência antropológica.
O funcionalismo de Malinowski dá as suas provas enquanto instrumento ou diretiva metodológica para recolher dados, conforme revelam as suas próprias monografias ’trobriandesas’. Cada uma é dedicada a um complexo institucional : a troca cerimonial do kula (Argonauts of the Western Pacific, 1922) ; a sedução, o casamento e a família (The Sexual Life of Savages, 1929) ; a horticultura, a posse da terra e o idioma da magia (Coral Gardens and their Magic, 1935). Depois dos Argonautas, Malinowski publica Crime and Custom in Savage Society (1926), um pequeno livro que descreve os mecanismos quasi-legais das ilhas Trobriand. O seu olhar analítico sobre o ’poder coercivo da reciprocidade’ nas trocas quotidianas e a sua utilização inovadora do método de compilação de casos concretos lançam as bases do que virá a ser a antropologia jurídica e exercem uma influência duradoura. O seu contributo conceptual para a antropologia é portanto detetável nos domínios do parentesco e do casamento, da magia e da religião, da economia, da pragmática linguística e do direito comparado, em particular nas sociedades ’sem códigos, sem tribunais e sem polícia’. Em Crime and Custom in Savage Society, Malinowski põe de facto a tónica na função da lei, e não na forma, sem esconder ’o lado sórdido da lei selvagem’.
A dimensão teórica do funcionalismo de Malinowski é tornada mais explícita numa obra publicada a título póstumo, A Scientific Theory of Culture (1944). A antropologia, verdadeira ciência do Homem, não podia senão ser a ciência da cultura, procurando encontrar os critérios apropriados para comparar as culturas entre si. Reconhecendo embora que a diversidade cultural permanece a razão de ser da disciplina, Malinowski dirige aqui o seu interesse científico para a busca daquilo a que chama ’a identidade subjacente’ (« underlying sameness ») das culturas. Uma cultura é um dispositivo complexo para responder às necessidades humanas, individuais e sociais. A partir da satisfação das necessidades primárias (tais como a alimentação, a sexualidade e o abrigo), ela produz necessidades culturais derivadas, que por sua vez engendram necessidades de terceiro grau. Este ’esquema’ formalista e instrumental, no qual Malinowski tanto investiu, não será poupado à crítica [2]. Se o seu funcionalismo sobrevive enquanto método, encontra-se largamente desacreditada a reputação do mesmo enquanto teoria ambiciosa.
Nos antípodas do complexo de Édipo
Sobre o tema da sexualidade, Malinowski publica dois livros extremamente influentes e influenciados em grande medida pelas suas leituras de Freud (1856-1939) e de Havelock Ellis (1859-1939). Sex and Repression in Savage Society (1927) é uma obra polémica que articula as ideias da psicanálise e as suas próprias descobertas etnográficas, que utiliza para contestar o dogma freudiano da universalidade do complexo de Édipo. Malinowski defende que, em virtude das regras da filiação matrilinear, a configuração emocional da família trobriandesa faz com que seja o irmão da mãe, e não o pai, a assumir o lugar de figura autoritária odiada pelo rapaz, cujo desejo incestuoso recai aliás na irmã, e não na mãe. Ernest Jones (1879-1958), seguidor de Freud na Grã Bretanha, contesta essa perspetiva argumentando que o complexo da família nuclear trobriandesa não é mais do que uma defesa contra o reconhecimento das tendências edipianas primordiais. Malinowski rejeita por sua vez essa noção de ’repressão reprimida’ como sendo pura ’metafísica’ e segue o seu caminho. Retoma a escrita de The Sexual Life of Savages (1929), um relato cultural da sexualidade dos Trobriandeses, concebido sob a influência direta de Havelock Ellis, que conhece pessoalmente através de Westermarck. Ellis sugere que Malinowski, enquanto polaco, não se encontra espartilhado pelas ’tradições do puritanismo anglo-saxónico’, e aceita escrever o prefácio, enquanto Westermarck declina o convite para assinar o posfácio.
Com o seu título provocatório, eis mais uma obra controversa, em torno de uma minuciosa etnografia da corte, do casamento e da vida doméstica nas ilhas Trobriand. Ao mesmo tempo que evita a pornografia, contém suficientes ingredientes eróticos e excitantes para que os livreiros o envolvam em papel celofane antes de a exporem nos escaparates ou nas vitrines. Malinowski procura demonstrar como ’funciona’, numa sociedade matrilinear, uma sexualidade culturalmente codificada. Recorre aos seus dados trobriandeses para abordar um certo número de questões, tais como a regularidade das relações sexuais, a esterilidade entre os adolescentes, a ignorância da paternidade fisiológica ou ainda o incesto, o que lhe permite desconstruir não apenas os recorrentes debates evolucionistas, focalizados nas origens, mas também o etnocentrismo da psicanálise. Revela desde logo que a pretensa licenciosidade sexual dos adolescentes trobriandeses (e também atribuída a outros povos ’primitivos’) não dá lugar a uma qualquer promiscuidade desenfreada, mas que se trata antes de um fenómeno circunscrito e sujeito a regras ; e isto para concluir que a cultura se sobrepõe à biologia ao fazer com que a sexualidade obedeça ao controlo social. A obra pode ser lida como um ataque velado, mas subversivo, contra a hipocrisia e o pudor sexuais euro-americanos. No ambiente pós-vitoriano, de costumes em plena evolução, ela tem um efeito libertador e abre o caminho a outros antropólogos que publicarão monografias sexualmente explícitas, como Raymond Firth, Isaac Schapera (1905-2003), e o ex-missionário e indianista Verrier Elwin (1902-1964).
Convém acrescentar que Malinowski colabora com o British Social Hygiene Council, um organismo estatal que luta contra a transmissão das doenças então chamadas ’venéreas’. Mas em março de 1932, fazendo o seu mea culpa por ter publicado demasiadas obras sobre o assunto, Malinowski declara que há ’demasiado sexo’ na antropologia. É quando o manuscrito de Coral Gardens and their Magic está praticamente terminado que ele anuncia, porventura no seu próprio interesse, que a preocupação central dos Trobriandeses é a alimentação e não a sexualidade. É verdade que, depois daquela data, já só escreve muito pouco a este respeito, ou ainda sobre o parentesco, o casamento e a família, e que recusa que lhe seja colado o epíteto de ’sexólogo’ [3]. Coral Gardens and their Magic (1935) trata de forma exaustiva as práticas hortícolas e os correspondentes rituais, as bases mitológicas e políticas da posse da terra, e o idioma poético da magia. A obra é dedicada à sua mulher. E é justamente em 1935, no termo de uma doença longa e debilitante, que morre Elsie, pouco antes da saída do prelo dessa última monografia ’trobriandesa’. Devastado, Malinowski ocupa-se sozinho das suas três filhas.
’O nativo ainda precisa de ajuda’ : um humanista em África
Durante os seus anos londrinos, bastante prolíficos, Malinowski difunde as suas teses em numerosos ensaios, recensões, artigos de enciclopédia, bem como em longos prefácios às obras dos seus estudantes. Trabalha intensivamente, dando aulas, escrevendo, exprimindo as suas opiniões sobre múltiplos temas sociais contemporâneos : o casamento e a família, o divórcio, a moralidade sexual, o controlo da natalidade, a religião, a raça e a guerra. Colabora com o Mass Observation, que procura produzir uma base de dados sobre os hábitos quotidianos na Grã Bretanha através de questionários e de gravações anónimos. Esta organização fundada em 1937 adota uma palavra de ordem criada por Malinowski : ’anthropology begins at home’ (a antropologia começa em casa). Ele alcança uma popular notoriedade enquanto ensaísta controverso, especialista espirituoso e divertido, que marca presença assídua em emissões radiofónicas. Em 1931, é-lhe concedida a nacionalidade britânica.
Entre os seus estudantes na London School of Economics, contam-se missionários e funcionários da administração colonial que, trabalhando em África, na Ásia ou na Oceânia, desejam dedicar-se ao estudo dos sistemas tradicionais de casamento, da iniciação masculina ou feminina, da sexualidade exótica. Malinowski colabora aliás com o Instituto Internacional das Línguas e Civilizações Africanas e torna-se uma das mais influentes figuras no seio desta instituição fundada em Londres em 1926 sob a direção tripartida do administrador colonial Frederick Lugard (1858-1945), do linguista alemão Diedrich Hermann Westermann (1875-1956) e do africanista francês Maurice Delafosse (1870-1926). Além de publicar a prestigiada revista Africa, o Instituto promove investigações sobre as culturas e as línguas africanas numa perspetiva eminentemente prática, ao mesmo tempo de melhoria das condições de vida das populações colonizadas e de justificação da presença europeia. O próprio Malinowski adota essa via e contribui para o seu desenvolvimento. Sob os auspícios do Instituto, consegue obter o apoio da Rockefeller Foundation para concretizar a sua conceção de uma ciência aplicada e a sua defesa de uma antropologia do ’changing native’, de um ’indígena’ que está a mudar de forma inaudita. Concebe um programa de ação no terreno que garante bolsas para os seus estudantes ; e toda uma coorte de talentosos bolseiros parte para África, tais como Audrey Richards (1899-1984), Lucy Mair (1901-1986), Hilda Kuper (1911-1992), Meyer Fortes (1906-1983) e Siegfried Nadel (1903-1956).
Relacionando-se com as políticas coloniais em África, o trabalho de Malinowski nesse domínio representa uma segunda revolução antropológica. Além disso, exerce a sua influência no ministério das colónias britânico (British Colonial Office) e no International Missionary Council, fundado em 1921 com vista a uma aproximação entre as igrejas cristãs implantadas nas colónias. Em 1934, ele próprio realiza um périplo na África do Sul e na África oriental britânica, visita estudantes seus em missão entre os Bemba e os Swazi e chega a realizar ele próprio breves etnografias, por exemplo entre os Arusha e os Chagga. Os seus escritos ’africanos’, numa veia de antropologia aplicada que visa atenuar o impacto negativo do colonialismo nas comunidades autóctones, serão cuidadosamente compilados a título póstumo pela sua fiel discípula Phyllis Kaberry (1910-1977), com o título The Dynamics of Cultural Change. An Inquiry into Race Relations in Africa (1945).
Liberdade e civilização
Malinowski já estivera nos Estados Unidos em 1926, numa viagem marcada pelo entusiasmo e financiada pela Fundação Rockefeller. Se alguns membros da poderosa escola boasiana não são recetivos à sua mensagem, outros respondem de forma positiva aos seus esforços de aproximação. Em qualquer caso, é convidado por duas vezes a proferir ciclos de conferências ; e aquando da sua estadia de 1926, a Universidade de Harvard concede-lhe o grau de doutor honoris causa. Regressa aos Estados Unidos em 1938, desta vez para uma licença sabática em Tucson, motivada sobretudo por razões de saúde. Nessa altura, tem ocasião de se deslocar a várias reservas índias, além de dar um seminário na Universidade do Arizona e ainda um curso de verão no Smith College, no Massachusetts.
Quando rebenta a 2ª Guerra Mundial, a direção da London School of Economics aconselha-o a permanecer na América. No final de 1939, juntam-se-lhe as suas três filhas. Entre 1940 e 1942, a fim de colmatar os seus escassos rendimentos, participa no curso noturno da New School for Social Research, em Nova Iorque, e aceita um lugar de professor convidado na Universidade de Yale. Sendo ele próprio adepto do realismo jurídico, desenvolve relações construtivas com os membros da respetiva faculdade de direito.
Em 1940, volta a casar-se, com a pintora inglesa Valetta Swann (1904-1973), sua companheira desde há alguns anos. Ainda em 1940 e novamente no ano seguinte, os dois passam o verão no México, onde Malinowski, assistido pelo jovem antropólogo mexicano Julio de la Fuente (1905-1970), faz trabalho de campo sobre o sistema de mercado zapoteca do vale de Oaxaca. Ainda que a versão espanhola do relatório pioneiro daí resultante exerça uma influência considerável nas pesquisas posteriores em torno dos sistemas de mercado, The Economics of a Mexican Market System (1982) não é publicado em vida de Malinowski.
Desde a invasão hitleriana da Polónia em setembro de 1939, Malinowski participa no grande debate sobre o papel dos Estados Unidos na Guerra e, através de conferências e artigos, conduz uma campanha para incitar com veemência os americanos a renunciarem à sua neutralidade e a combaterem a máquina de guerra alemã. A conflagração desperta o seu patriotismo polaco, que estava um tanto adormecido, levando-a escrever com exaltação sobre o flagelo do totalitarismo e sobre a ameaça endémica do nacionalismo, numa série de ensaios de antropologia da guerra, que culminarão na publicação, a título póstumo, de Freedom and Civilization (1944). Malinowski faz tudo o que pode para ajudar numerosos amigos e colegas judeus a escaparem da perseguição nazi, mas tem dificuldade em arranjar-lhes emprego. Com efeito, o seu lugar em Yale permanece provisório e só tardiamente lhe é atribuída uma cátedra.
Apesar da sua imensa energia intelectual, os problemas de saúde perseguem-no toda a vida. Um mês após a sua nomeação definitiva em Yale, sofre um fatal ataque cardíaco. No dia anterior, 16 de maio de 1942, pronunciara o discurso inaugural do Instituto Polaco das Artes e das Ciências na América, de que fora eleito presidente. Por altura da sua morte, aos 58 anos, Malinowski é uma sumidade da ciência, um humanista de envergadura internacional empenhado no combate contra o totalitarismo.
O homem e o mito
Se durante as duas guerras Malinowski domina a antropologia social enquanto estudo comparativo das sociedades ditas ’primitivas’, a sua partida para os Estados Unidos contribui para eclipsar, pelo menos temporariamente, a sua influência na Grã Bretanha, onde o estrutural-funcionalismo durkheimiano de Radcliffe-Brown atrai doravante muitos dos ex-discípulos do primeiro. A reputação do antigo mestre é reavivada no final dos anos 1950, por ocasião da saída de uma obra coletiva em sua memória, Man and Culture (1957), sob a direção do seu discípulo e sucessor Raymond Firth. A maior parte dos contribuidores desta homenagem póstuma louvam as virtudes do etnógrafo incomparável, ao mesmo tempo que minimizam o pensador inconsistente e imperfeito, cujo funcionalismo psicologizante impedira de compreender a prioridade analítica das estruturas e dos sistemas sociais. Mas mesmo os seus discípulos mais críticos reconhecem os seus contributos teóricos em campos tão diversos como o parentesco, a psicanálise, a mitologia, o direito, a antropologia económica e a antropologia aplicada. Também os seus contributos no domínio da antropologia linguística, da semântica e da etnografia da fala foram inovadores e permanecem uma referência, através de conceitos como ’comunhão fática’ e ’contexto de situação’.
A publicação, em 1967, do seu diário íntimo, do tempo das Trobriand, trouxe de novo o seu nome para a berlinda, embora relançando a controvérsia a seu respeito, ao abalar o mito que ele próprio criara, segundo o qual tinha desenvolvido relações amigáveis e descontraídas com os autóctones. A Diary in the Strict Sense of the Term (1967) contribui grandemente para a crise moral e epistemológica da antropologia na viragem dos anos 1970, num momento em que os últimos processos de descolonização colocam os holofotes no passado colonial da disciplina e no seu alegado papel de ’criada do imperialismo’. Mas se as expressões racistas e as fantasias sexuais de Malinowski escandalizam muitos dos leitores do seu diário, este permanece um documento cruamente honesto, profundamente introspetivo e, ao mesmo tempo, terapêutico. Nos Estados Unidos da América, entretanto, os antropólogos pós-modernos conseguem usar esse texto para os seus próprios objetivos retóricos de desconstrução da autoridade etnográfica e de denúncia do positivismo. É irónico constatar que Malinowski antecipara ele próprio, com meio século de avanço, a crítica pós-moderna do exotismo, ao deplorar, na sua obra-prima de 1922, o enlevo romântico dos antropólogos ante o ’bizarro’ [4]. De uma forma ou de outra, a sua ’Introdução’ aos Argonautas permanece incontornável – são sem dúvida as 25 páginas mais influentes de toda a história da disciplina. E no século XXI, Malinowski conserva a sua aura de antepassado venerável e de antropólogo a toda a prova.
Leituras sugeridas
Conley, John and William M. O’Barr (2002) ‘Back to the Trobriands : The Enduring Influence of Malinowski’s Crime and Custom in Savage Society.’ Law & Social Inquiry 27(4) : 847-874.
Ellen, R., Gellner, E., Kubica, G., & Mucha, J. (Eds.). (1988). Malinowski between two worlds : the Polish roots of an anthropological tradition. Cambridge : Cambridge University Press.
Firth, R. (Ed.). (1957). Man and culture : an evaluation of the work of Bronislaw Malinowski. London : Routledge & Kegan Paul.
Firth, Raymond. 1981. “Bronislaw Malinowski.” In Totems and Teachers : Perspectives on the History of Anthropology, edited by S. Silverman, 101–104. New York : Colombia University Press.
Lyons, Andrew P., and Harriet D. Lyons. 2004. Irregular Connections : A History of Anthropology and Sexuality. Lincoln : University of Nebraska Press.
Stocking, G. W. Jr. (1996). After Tylor : British social anthropology. Wisconsin : University of Wisconsin Press.
Thornton, R.J.& Skalnik, P. (1993). The early writings of Bronislaw Malinowski. Cambridge : Cambridge University Press.
Tuzin, Donald. 1994. “The Forgotten Passion : Sexuality and Anthropology in the Ages of Victoria and Bronislaw.” Journal of the History of the Behavioural Sciences, 30 : 114–137.
Wayne, Helena. 1985. “Bronislaw Malinowski : The Influence of Various Women on his Life and Works.” American Ethnologist, 12 : 529–540.
Young, M. W. (Ed.). (1979). The ethnography of Malinowski : the Trobriand Islands, 1915-18. London : Routledge.
Young, M.W.(Ed.) (1988). Malinowski among the Magi : ‘The natives of Mailu.’ London : Routledge.
Young, M.W.(2004). Malinowski. Odyssey of an anthropologist, 1884-1920. New Haven : Yale University Press.